Todos
os dias olho um pouco para a frente – uns minutos de
futuro que logo logo se tornam em passado – olhando para
trás. Nunca saberei se o sentimento de mim no passado
envolve o que chamam a saudade de outros tempos. Sei que
há uma dose de melancolia que não inclui culpa ou
arrependimento. De certo modo, para mim mesmo construí um
estatuto de pequeno nada, um estatuto de partícula de
memória com registos das circunstâncias e dos movimentos
entre elas. Um entre outros, uma partícula entre outras –
acções e reacções, instantes feitos de eternidade, um ou
outro dia a ser o tamanho da vida inteira. Os meus olhos
perdem-se de espanto perante um dia como o 25 de Abril de
1974. Apesar de não guardar senão uma memória de farrapos
de evidências de uma desorganizada fila de espera de
orelhas aptas a ouvir um grito do tipo: dispersaaaaaar ap!
Há quem
aponte a bondade e a segurança do passado contrapondo a
maldade e a insegurança do presente e do futuro, sem
memória de ter feito o mesmo todos os dias da sua vida. Há
quem aponte o aumento do custo de vida e se lembre do que
podia comprar com cinco tostões ou com o escudo guardado
em cofres de memória, ainda há quem fale em fortunas de
vinte mil reis num tempo em que a unidade monetária é mais
ou menos tanto como duzentos mil reis. E há quem compare
os números da corrupção de hoje com os números da
corrupção do tempo da outra senhora que nunca dava a
conhecer os números e muito menos deixava discuti-los na
praça pública. E todos os dias me pedem que fale dos
últimos 35 anos no que valeu a pena, apontando-me todos os
erros de toda a gente como sendo os erros do 25 de Abril e
este dia brilhante dia de 1974 como o primeiro dia de
todos os erros até ao erro de termos chegado aqui.
Resuma,
resuma. Diga numa palavra, vá lá. E eu fico tentado a
resumir tudo na palavra democracia que nos permite
escolher a forma e a composição do poder, da soberania e
dos seus órgãos. E eu fico tentado a pensar na palavra paz
e na palavra independência que tantas vezes escrevi nas
paredes do meu país. Mas não a digo.
Porque é a liberdade que é tudo. Mesmo quando parece nada,
a liberdade é tudo o que preciso para que cada um seja
parte inteira do todo. Uma palavra, um só grito:
Liberdade!
Arsélio
Martins |