In: Os antepassados do sr. Roberto, Revista "ABC", 1920, pp. 1 e 2

NESTA época de brinquedos evoca-se o teatro a brincar, velho como o mundo, mas que diverte sempre as crianças e até o adulto. Quem não conhece o fantoche, o velho fantoche que entra na nossa alma de pequeninos e pela vida fora nos surge e ao qual sempre damos um sorriso?

Quem não conhece Roberto, o hábil, o forte, o vencedor até dos espíritos infernais, com a sua manha, ao começo, com o seu cacete nacional ao cabo das polémicas?

Pois, Roberto, o senhor Roberto, que vence o próprio diabo, tem antepassados e bons.

O fantoche
grego

O fantoche egípcio


O fantoche nacional: o Sr. Roberto

O fantoche de Java

Em Atenas e em Roma, o fantoche era de tamanho natural e figurava nas apoteoses e nos cortejos triunfais vestidos como símbolos. Tinha atitudes, passava como soberano conduzido pelos homens exactamente como imagens, embora não se lhe tributassem os respeitos. No Egipto, na Turquia, por todo o mundo, e sobretudo na Itália de Polichinelo, os fantoches tiveram não só o condão de divertir os pequenos mas também os grandes, não só a honra de aparecerem nas praças públicas mas também nos palácios e para eles se escreveram peças e belos versos, mistérios e simples improvisos.
 

As marionetas ou mariolas tinham e têm, como os homens, sortes diversas, uns arrastados através dos campos lamacentos, figuravam nas feiras, molhavam-se, destingiam, apodreciam, encarunchavam e, estéreis dias eram os seus; outros, vestidos de riqueza, pomposos, magníficos, tinham palcos esplêndidos, plateias fidalgas, casas quentes onde se diziam belos versos. Era tudo o destino, era tudo a sorte.

Os fantoches da Idade Média

Desde a mais remota antiguidade, decerto quando as hostes de Tamerlão fizeram a sua devastadora marcha, nas bagagens dos fugitivos, colhidas à pressa,  ia o fantoche singular da diversão.

Assim, para ganhar a vida, os tziganos, originários desses países devastados e batidos, começaram a mostrá-los às populações a troco de punhados de farinha.

O fantoche foi tudo. Não apareceu apenas de bulhento ou de demónio. Como um actor, foi rei, rainha, príncipe, simples artífice, rico mercador, tudo quanto a imaginação humana pode conceber, vestindo, todavia, ao gosto do seu tempo. O do Egipto usava a estilização do país, o da Índia o seu penteado exótico, o fantoche medieval era atrevido como um bobo. Também tinha respeitos de vassalo e vestia de senhor. Discreteava como eles, tomava atitudes, e recebia imponentemente a vassalagem; mas, quando se tratava de bordoada, ele, que não tinha medo nem do próprio diabo, abatia-se diante do senhor; todavia, ia roubando sempre alguma coisa da sua mesa e, muitas vezes, do seu leito, como um pajem turbulento, já se vê... Em cena.

Caras de fantoches

Quando a revolução chegou, o fantoche também foi guilhotinado; teve medo, não fez mais paródias mas, acabado o terror, surgia nas feiras a desancar Robespierre. Em Portugal ele não era político; apenas entrava nos mistérios ou divertia os garotos da rua, descadeirando o diabo, mas respeitando muito os espiões do sr. Pina Manique.

O fantoche de 1840 em França

A mania política só o atacou muito mais tarde. O fantoche miguelista e o fantoche liberal não existiram; em compensação, apareceu o piadista nas feiras, criticando, umas vezes ou outras, os homens públicos da monarquia e da república mas, sobretudo, demolindo os frades, as freiras, exactamente como fizera esse imperial fantoche – o sr. D. Pedro IV.

Mas a marioneta grosseira, que nós conhecemos, teve também um intervalo de beleza. Foram os articulados do Chaves, do velho e habilidoso actor José Rodrigues Chaves, que os fabricou com tanta perícia como o poeta Murício Boucher, em Paris,

Jamais os fantoches tiveram tão grande amigo, tão cuidadoso defensor, e nunca para eles foram arranjados teatros e compostas as peças com tanta arte. Chegou a fazer conferências em que demonstrava o seguinte:

– Que aos fantoches não falta a poesia, pois forçam os poetas a ser simples e a sua gravidade hierática empresta-lhes beleza;

– Também despertam comoções, tanto dramáticas como cómicas, na sua maneira de se moverem como os actores humanos não o fazem;

– As suas transfigurações são mais rápidas e mais belas do que propriamente as realizadas por actores, isto desde que tenham articulações.

Mas havia ainda um ponto mais perigoso, um óbice, um melindre: a interpretação de personagens sacras pelas marionetas.

Só eles, exclamava o poeta, podem representar os santos sem profanação, pois os actores são sujeitos ao pecado e os meus pobres artistas não têm alma.

Foi com estes argumentos que se fez o Petit Théâtre de Paris, onde representaram os antepassados do senhor Roberto. E que encantadores eles eram! Que sucesso causaram, aí por 1894, representando peças em que havia arte desde as mais belas oratórias aos mais Inocentes contos cor-de-rosa!

Tornou-se uma obrigação dos pais levar os filhos ao salão onde se representavam essas peças. A marioneta tornou-se tão querida como o Pirilau do A B C. Era como o prolongamento dos brinquedos; aquilo que as imaginações infantis podiam ver de mais extraordinário.

Eram os bonecos, ora movendo-se em batalhas, ora navegando fardados de almirantes; umas vezes a história de fadas, outras as de simples sapateiros; as Mil e Uma Noites foram interpretadas por bonecos e os pequenitos, que não podiam ir aos teatros sem cabecearem com sono, tinham as suas matinés bem cheias com a intensa alegria que os fantoches lhes davam.

 Riam muito mais com os vultosinhos articulados e tornados populares que propriamente com os clowns; e as lições de moral saíam dessa série de contos azuis ou cor-de-rosa que um verdadeiro poeta punha em cena.

Os pequenitos portugueses também viram os andróides que pouco duraram. O senhor Roberto, porém, foi o seu encanto. Roberto é um demolidor; e dizemos é, porque Roberto ainda existe e ainda trabalha. Não aparece em bons salões; é grosseiro, e mal talhado, usa fatos mal feitos, mas encarna absolutamente o espírito nacional. Roberto é um pimpão; Roberto tem um cacete nodoso e faz dele um bom uso, porque só bate nos maus. O português não deixa nunca de ser varredor de feiras e Roberto consubstancia este espírito de valentia.

Uma fada de madeira

Porque é assim. Porque deste modo se desenvolve a sua psicologia. É querido e é amado e jamais solta os seus guinchos ou diz as suas graçolas que não paremos estarrecidos, na frente da sua pequena barraca, com um sorriso ou com uma gargalhada.

Outras caras de fantoches

Vem, pois, do fundo remoto dos séculos esse Roberto que tem avós como nenhum príncipe e tradições como nenhum rei, guardando, todavia, o seu espírito democrático, porque fala a toda a gente e a toda a gente tem que dizer. Misto de truão e de vingador, esse Roberto pintado a zircão, mal entrajado e violento, descendente de tantos fantoches, anda por baixo, vive mal mas não morre.

Roberto incarna uma raça que balburdia, mas que quando o espicaçam se lança contra o próprio Satanás.

– Ó senhor Roberto!

– Que é lá?

E Roberto aparece como um neto de príncipes que desse em bobo, fazendo sorrir, levando consigo as nossas simpatias, sendo tanto mais querido quanto mais terra a terra, e andando nos lábios das crianças o seu nome para designar a graça e a valentia. E ser popular entre os pequenitos é a imortalidade.

Autor não indicado.
Texto revisto e actualizado.

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Inserido em
28-09-2009