In: "Visão", n.º 712, 26 de Outubro de 2006, pp. 60 a 64.

ANTÓNIO HESPANHA

AS VAIDADES SÃO CARAS

Responsáveis do Governo queriam fogo-de-artifício. E propaganda. Assim se comemoraram os Descobrimentos. E se gastaram milhões.

PAULO PENA

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ESTA ENTREVISTA DEVIA ostentar uma bolinha vermelha, no canto superior direito da página. É desaconselhada a contribuintes sensíveis ao despesismo. Aqui se conta como, por más decisões, escolhas políticas questionáveis ou programas propagandísticos, se gastaram milhões de contos. E como o resultado desses gastos se esvaiu. Uma ópera, que tanto podia servir para comemorar Vasco da Gama ou «o Gengis Khan», uma fragata que foi reconstruída para ficar, para sempre, ancorada e a apodrecer, arte ao abandono, livros desaparecidos, cd-roms pagos e não editados.

O ex-comissário para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses de 1995 a Janeiro de 1999, António Hespanha, que sucedeu a Vasco Graça Moura, a quem não poupa, implicitamente, críticas, resolve reabrir a ferida. Este professor de História do Direito começa por falar de desencanto. Indigna-se, naturalmente. Mas acaba por lançar ideias e sugestões. À atenção de futuros comissários de futuras comemorações.

VISÃO: Fez, na revista História, um balanço desencantado da sua participação na Comissão dos Descobrimentos. «Sempre que pude disse que não. Só me arrependo de quando disse sim.» Era difícil dizer não?
ANTÓNIO HESPANHA
: Não faço um balanço desencantado da minha participação na Comissão. A lista do que se fez lá é impressionante. O meu desencanto tem a ver com o reconhecimento público das coisas que eu considerava importantes. E o desencontro entre aquilo que, implícita ou expressamente, me era pedido, e aquilo que eu achava que devia ser feito.

E eram-lhe pedidas muitas coisas contrárias à sua estratégia?
Eram. Demorei algum tempo a perceber que, mais importante do que fazer, era saber que se estava a fazer, ainda que não se fizesse. Era criar uma imagem exterior, virtual, se possível grandiosa, embora pudesse nunca chegar a ser feito.

Era, como lhe chama, um «programa de fátuas vaidades»?
É. Normalmente, as vaidades são fátuas. Mas o que são, sobretudo, é caras!

Pode dar um exemplo?
Olhe, uma noite de fogo-de-artifício, no Tejo, que foi uma coisa a que resisti, custava, na altura, 120 mil contos (600 mil euros). Eu, com esse dinheiro, faria 40 livros...

E quem lhe pedia o fogo-de-artifício?
Toda a gente. Eu dependia do gabinete do primeiro-ministro. Quero fazer-lhe essa justiça, não me recordo de, alguma vez, António Guterres me ter pedido uma noitada de fogo-de-artifício. Mas houve pessoas que me disseram «homem, que diabo, é preciso dar visibilidade a isto, faça lá o fogo-de-artifício!» E eram pessoas de responsabilidade governativa.

Não quer nomeá-Ias?
Não, já lá vão alguns anos. Tenho ideia de que o trabalho da Comissão não era muito bem visto no seio do Governo e de alguma imprensa oficiosa porque não dava satisfação àquilo que se entendia ser uma apetência popular por umas comemorações deste género. A que se juntava um outro sentimento, mais político. Já então se dizia que vivíamos num período de crise e «o povo português» precisava de um grande impulso para vencer o desafio europeu, e esse impulso far-se-ia através da criação de um ambiente psicológico favorável. Esse ambiente faz-se pelo cultivo do ego nacional. Recordo que, em meios políticos muito importantes, havia esta ideia: o País precisa de um impulso de psicologia colectiva. Que é uma ideia que os nossos intelectuais defendiam, no século XIX. Está teorizado, é através dos exemplos dos heróis que se cria uma vontade colectiva para vencer esta mediocridade.

Essa é uma tentação inscrita nos genes do poder?
Não. Não acredito em inscrições genéticas. Mas há sempre intelectuais que acham que, em épocas de crise, o povo precisa de ser animado para fazer coisas grandes, isso há. E eu assisti.

Herdou, do mandato anterior, a ópera Corvo Branco, de Phillip Glass. Devia ter-se dito que não?
Claro que teria dito que não. E isto não tem nada a ver com os meus gostos, musicais ou artísticos. Quando lá cheguei, o contrato já estava assinado, e tinha entrado numa fase contenciosa, porque o Glass tinha posto o assunto em tribunal!...

O Estado já lhe devia dinheiro?
Nunca se tinha pago nada! Portanto, eu, por uma questão de pundonor nacional, porque um tipo, a certa altura, tem vergonha na cara... Isto está contratado com o Estado português e eu, naquelas funções, sou mais do que eu. Paguei. Mas era uma coisa que não teria subscrito. Em primeiro lugar, porque era uma verba enorme e o resultado foi pequeno... A ópera, se tinha alguma coisa a ver com o Vasco da Gama, também poderia ter a ver com o Gengis Khan. Ou seja, nada...

Essa ópera teve apenas três representações em Portugal, custou cerca de 1,5 milhões de euros, e nem sequer houve a Possibilidade, contratual, de a gravar em áudio ou vídeo...
Exactamente. A única coisa que tenho é uma fotocópia da partitura escrita. Foi tudo o que ficou da ópera.

Quando foi representada noutros países (Espanha ou EUA), não havia qualquer contextualização nem uma referência a quem a encomendou, ou seja, Portugal...
O que seria interessante é saber porquê. Porquê uma ópera do Phillip Glass? Ele escreveu-a mesmo para estas comemorações ou era uma coisa que ele já lá tinha para estas ou para outras? Confesso que, na altura, pensei que era para estas ou para outras.

Os figurinos foram «emprestado» ao Teatro Real de Madrid, porque não havia, em Portugal, sítio para os guardar...
Aí, entramos noutro assunto, que é o destino do património da Comissão. O Estado está a vender, a preço de saldo, a três contos, a obra completa do Gil Vicente, em cd-rom que é um Estado rico. Na Biblioteca Nacional há lá uns quantos.

Outro caso que herdou, e de que se arrepende, foi a reconstrução da fragata D. Fernando e Glória. O Estado tinha o compromisso de pagar um quarto de uma verba indeterminada. Como é possível?
Não sei... É um contrato mal feito, por um jurista, insensato. Quem é a outra parte? Uma série de oficiais da Marinha que sabem o que estão a fazer. Dei-me logo conta, quando entrei, de muitas coisas estranhas: as pessoas não sabiam orçamentar nem temporizar a obra. Já me abstraio de saber se era uma reconstrução ou não...

Essa recuperação nunca contemplou a hipótese de a nau poder vir a navegar. É normal que se gaste cerca de 10 milhões de euros, num barco encalhado?
Aquilo teria interesse se pudesse viajar, como a Sagres ou o Crioula, Mas havia a ideia de que não podia ter motor, porque a da altura também não tinha. Como, segundo as regras do mar, ela só pode viajar com um barco a motor ao lado, a fragata não podia sair dali. Esteve na Expo, depois foi arrumada, logo mal, em Alcântara, onde perdeu a visibilidade, e agora está a apodrecer no Alfeite. Triste destino. Também devo dizer que fui eu quem começou a pagar. Isto estava tudo contratualizado, mas de dinheiro... nicles. Nada. Os almirantes vieram ter comigo muito preocupados. Era a táctica de assinar os contratos e não os pagar.

No seu consulado foi paga a edição em cd de obras completas como a do Padre António Vieira. Oito anos depois, onde pára essa edição?
Não faço ideia nenhuma. Alguns foram publicados. Um Estado que até vende as casas dos cantoneiros tem património que não valoriza. Um cd daqueles, para um investigador, tem um valor muito alto. Estão a vender um cd desses mais barato que um disco do Quim Barreiros, sem ofensa para ele.

Quem são as entidades envolvidas nesse negócio?
É património do Estado português. Quando a Comissão acabou, o espólio foi recolhido pelo Ministério da Cultura. E é gerido, penso eu, dentro do ministério. Algumas coisas tê-las-á dado. Mas não se sabe bem...

Há muita opacidade?
Total! Há cds terminados e não feitos. Alguns podem já não ter matrizes. Quando vou ao Brasil, perguntam-me sempre pela obra completa do Vieira. Os brasileiros deitam as mãos à cabeça. Ando a perseguir isso, e a tentar, de uma maneira qualquer, que não seja completamente ilegal [risos], que sejam editados por outra entidade qualquer. Por exemplo, a Biblioteca Nacional, já sugeri isso ao director, ou uma universidade.

Há mais exemplos?
Fizeram-se três grandes exposições, no Porto. Cada uma custou cerca de 200 mil contos. A segunda tinha maquetas enormes de fortalezas da Índia. Onde estão? Não faço ideia. Também não tenho de saber... Para a terceira exposição, sobre o Orientalismo, foram restaurados veículos indianos. Estava tudo a cair de podre. Restaurou-se. Onde está isso? Deve estar outra vez podre. Onde estão os livros, milhares, que valem dinheiro?

Tudo o que estava em armazém «desapareceu», após o fim da Comissão?
Houve uma comissão liquidatária. É preciso defender o património do Estado.

Comemorar é criar uma fachada efémera?
É. É isso. Os brasileiros perceberam bem que comemorar é criar instrumentos para a produção de saber. Aqui, fizemos a mesma opção, com amargos de boca. Porque fazer um livro, ou um cd, não é nada! O que fica é a infra-estrutura. O que é que ficou das comemorações do Infante D. Henrique, de 1960? Ficou os Portugaliae Monumenta Cartographica. É evidente que pode ser mais do que isso.

Então, o que deve ser?
Pode ser, também, o tal fogacho. A tal coisa de «interessar o grande público pela história». Mas há uma questão ética. Não se pode levar as pessoas atrás de falsas ideias, porque senão é propaganda. As pessoas distraem-se com a Cultura. A História é uma zona sempre esquecida. Nós temos arquivos que, talvez com a excepção do Reino Unido, digo talvez, são os arquivos mais importantes para a História do Mundo! A Torre do Tombo, o arquivo Histórico Ultramarino, o arquivo da Sociedade Portuguesa de Geografia, que vive numa pobreza envergonhada, e qualquer dia arde, e o arquivo da Ajuda. Cobrem desde a América até ao Japão. E desde o início da Expansão, coisa que os ingleses não têm. Do ponto de vista económico, desde que rentabilizados, estes arquivos davam muito dinheiro. Os historiadores e investigadores estrangeiros tinham de cá vir. E isso quer dizer hotel, restaurante, promoção do País, quer dizer relançamento da História da Expansão Portuguesa, que é uma matéria investigada, praticamente, só por portugueses. A atracção da Espanha é muito forte. Nos EUA, as cátedras de História da Expansão são dominadas por especialistas na Expansão Espanhola. A História podia ter mais atenção. Agora, houve o acordo com o MIT. Porque não se pensa fazer algo de semelhante para a História? Com muito menos dinheiro. Este esquecimento da História é paradoxal.

 

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14-11-2006