In: «Ílhavo na Ilustração Portuguesa», IIª série, n.º 714, Lisboa, Outubro de 1919.

Naufrágio e salvamento do Desertas [1]

«Quando em 23 de Fevereiro de 1916 o governo português requisitou os navios alemães, encontrava-se no porto do Funchal o grande vapor «Hochfeld», construído em 1895 nos estaleiros de Flensburg, de 3.689 toneladas brutas e 6.693 m3 de capacidade de carga, com 112,47 m. de comprimento, 12,75 m. de largura e 7,84 m. de calado, duas caldeiras de dupla frente e uma máquina de tríplice expansão da potencia de 1.300 cavalos. Como a sua tripulação lhe tivesse causado avarias, foram estas reparadas sob a direcção do maquinista da marinha mercante William Lloyd e veio para o nosso porto, onde lhe foi dado o nome de «Desertas» e completou essas reparações, sendo então entregue à casa Torlades, como representante da Furness, no dia 9 de Novembro desse ano.

No dia 15 saiu de Lisboa em lastro para Leixões, onde carregaria toros de pinheiro para Inglaterra, com bom tempo e mar chão, até às 6 horas do dia 16, em que avistou o farol da Luz. Pairou essa noite fora do porto, mas como depois das 16 horas o vento começasse a refrescar pelo S. W., carregando-se a atmosfera, às 19 horas virou para fora e correu para o mar com rumo S. W. para se afastar da costa. Às 18 horas do dia, seguinte, com muito mar e vento fortíssimo, de W. S. W., o navio começou a não obedecer ao leme, «por a pressão nas caldeiras ser pouca» -- diz o comandante -- «e o pessoal de fogo estar quase todo enjoado». Içaram uma vela triangular, mas de nada serviu, tendo de virar para o sul, visto que era grande o caimento para a costa e o navio continuava a não obedecer ao leme.

Às 10,15 o 1.º maquinista comunicou que o condensador fazia má circulação, parando-se a máquina até às 10,30. Mas o navio não obedecia. Às 14 avistaram o farol de Aveiro ao S. 4 S. E. magnético, a 14 milhas, continuando o barco a cair para terra. Vendo que não montava a costa, fizeram sinais de socorro, com foguetões, fogachos e apitos constantes. Às 18,30 içaram os sinais de socorro imediato.

Às 19 horas reunida toda a tripulação, foi-lhe comunicado que o navio não montava a costa, deliberando-se por acordo total, aproar o navio onde fosse mais conveniente, para salvar as vidas, pois ele estava perdido.

Eram 20 horas quando se produziu o encalhe, 20 metros ao norte de Vagueira e a 4 milhas ao sul do farol de Aveiro.

Comunicado o caso para Inglaterra, vieram a Portugal primeiro o capitão Douglas e depois o capitão Shotten, os quais manifestaram a opinião de que o salvamento do navio devia fazer-se pelo lado do mar, através do banco de areia que existe ao longo da costa.

A vinda desses delegados levou, porém, tempo, tendo-se deixado o navio abandonado à mercê do mar e dos habitantes das proximidades, que o saquearam. Os primeiros trabalhos foram morosos, aguardando-se a remessa de aparelhos de Inglaterra e pondo-se ao seu serviço o rebocador «Patrão Lopes".

Em Junho de 1917 surge um conflito entre a capitão Shotten, o comandante e o maquinista do navio, prolongando-se até que estes últimos foram substituídos pelos Srs. José Casimira Rosário e António Mendes Barata, que no seu relatório verificaram nada se ter feito para salvar o "Desertas".

As tentativas de salvamento sofreram uma nova demora, apesar de todas as instâncias em contrário, vindo em Novembro o Sr. Portugal Durão dar-lhes um novo impulso, no intuito de salvá-lo pelo mar, segundo a opinião dos delegados britânicos.

Mas foi sol de pouca dura. A revolução de Dezembro inutilizou esses bons desejos, ninguém pensando mais em salvar o navio.

Em 22 de Janeiro de 1918 um telegrama comunicava que o porão fora arrombado da 3ª coberta para baixo, mas isso em nada alarmou as entidades oficiais. No dia seguinte, sendo comandante do navio o Sr. Jorge Camacho e maquinista o Sr. Ernesto Santiago, foram abordados pelo delegado inglês Douglas, que queria que o navio fosse entregue à «Salvage Assotiation of London», visto que estava perdido por completo e devia, por isso, começar a desmanchar-se. Aqueles distintos oficiais recusaram-se, porém, a entregá-lo, aguardando a chegada do delegado dos Transportes do Estado, Sr. Barata.

Em princípios de Fevereiro, sendo ministro do trabalho o capitão Sr. Feliciano da Costa, foi ali com os Srs. Mendes Barata e Brito do Rio, repetindo os ingleses que o "Desertas" estava perdido. O ministro consultou o Sr. Barata, que foi de opinião que o navio se salvava, desde que se quisesse gastar dinheiro, concordando aquele e pondo à sua disposição todos os elementos de que carecesse para esse efeito e autorizando a cedência da draga «Mondego", de Viana do Castelo.

Começa aqui a grande, formidável odisseia. A burocracia, o péssimo serviço de transportes, a papelada, as greves, as revoluções, tudo se conluiou para cansar a paciência e esgotar a boa vontade dos ilustres marinheiros que meteram ombros à rude tarefa do salvamento.

O que o Sr. Barata nos contou é de estarrecer. Não vale a pena repeti-lo aqui, bastando que se diga que as ferramentas enviadas para Aveiro raro chegavam ao seu destino e que a cedência da draga «Mondego» foi uma tragédia superior a quantas se conhecem, a tal ponto que, podendo o navio ter saído para o mar em Agosto de 1918, só daqui a dois meses o fará.

Todos os dias, a todas as horas surgiam contratempos e contrariedades, sofrendo-se dissabores de toda a espécie.

Apesar de tudo, a faina iniciou-se em seguida à autorização ministerial, começando homens e mulheres a retirar a areia de volta do navio e a colocar estacaria, para melhorar a sua situação.

Só, porém, em 1 de Junho de 1918 pôde iniciar-se a abertura do canal, que ligaria o navio com a ria, pois o Sr. Barata foi de opinião de que o salvamento não podia fazer-se pelo mar, devendo meter-se o «Desertas» pela terra dentro até alcançar a ria, ao longo da qual ganharia depois a barra de Aveiro.

A tentativa era arrojada, mas confiava-se no seu êxito. O valor do navio orçava então por 1.200 contos. Valia a pena salvá-lo.

Orçada a despesa provável dos trabalhos a realizar, verificou-se que ela não iria além de 300 contos, dando assim o salvamento um saldo positivo e imediato de 900 contos.

Mãos à obra, pois. Com boa vontade da parte de todos, o «Desertas» continuaria a navegar, contribuindo para a vitória dos aliados.

A despesa diária com a draga «Mondego» foi orçada em 483$00, gastando-se mensalmente com o pessoal 910$00.

O canal seria do comprimento de 900 metros, com 30 de largura, para o que seria necessário
dragar 360.000 m3 de areia. Calculando-se uma dragagem aproximada de 4.800 m3 por dia, o canal estaria aberto no prazo de 75 dias.

A abertura do canal custaria 64.722$00, com uma despesa diária de 483$00.

A despesa total seria, pouco mais ou menos, a seguinte:

 

Dragagem do canal

64.722$00

Dragagem na ria

4.830$00

Trabalhos em terra e a bordo

18.000$00

Despesa com o pessoal durante 5 meses a 2.000$00 por mês

10.000$00

Pessoal extraordinário

12.000$00

Abertura de uma ponte e colocação da definitiva

6.000$00

Soma

115.552$00

 

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Reparação do rombo

90.000$00

Reparação das caldeiras e chaminé

6.600$00

Reparação dos guinchos e molinete

38.000$00

Reparação das instalações eléctricas

8.000$00

Outras despesas

18.000$00

Soma

160.600$00

 


ORÇAMENTO TOTAL

 

Para tirar o navio

115.552$00

Reparações

160.600$00

Imprevistos

22.350$00

Soma total

298.502$00

 


Os 300 contos a que aqui acima nos referimos. Os cálculos, porém, falharam, a favor e contra o Estado. A «Mondego» chegou a dragar 300 m3 por hora, mas em vez das 3,5 toneladas de carvão que lhe estavam arbitradas por dia e se pagavam a 100$00 a tonelada, chegou a consumir 6 e 7. E, a par dos que a burocracia originou, outros contratempos surgiram: o violento temporal que rebentou em 20 de Setembro daquele ano (1918) e inutilizou em grandíssima parte os trabalhos já realizados da abertura do canal, e a necessidade de dragar a ria em consideráveis extensões para que o navio pudesse navegar. Aquele poderia ter-se evitado, se os serviços oficiais e ferroviários, as revoluções e as demoras burocráticas o tivessem querido, pois quando o temporal rebentou, o navio estaria já no mar.

O trabalho nesse momento foi brutal, conseguindo os trabalhadores construir uma barreira em 7 horas, para evitar nova invasão do canal. E quatro dias depois do prazo marcado para a abertura do canal, estabelecia-se a ligação com a ria, «malgré tout». Aquele construíra-se, pois, em 79 dias, Em 4 de Novembro de 1918 estava de novo restabelecida a ligação da bacia do navio com o canal e no dia 9 do mesmo mês começava o «Desertas» a entrar nele.

Deu-se ainda uma nova invasão do mar, que destruiu uma barreira, mas o prejuízo reparou-se.

Até hoje o «Desertas» percorreu já cerca de 4 quilómetros, faltando-lhe ainda aproximadamente 2 quilómetros para chegar à barra, o que fará, segundo cálculo do Sr. Mendes Barata, em menos de dois meses. Ainda há dias se recebeu em Lisboa comunicação de um avanço de 200 metros. "

A rude labuta de trabalhadores e marinheiros está a findar.

A engenharia portuguesa ficará tendo no salvamento do «Desertas» um dos seus actos mais brilhantes, honrando-a aos olhos de toda a gente. Quando todos supunham o «Desertas» perdido para sempre, um ilustre engenheiro português, o Sr. António Mendes Barata, entrega-o ao seu país são e salvo, pronto a receber no seu formidável arcaboiço as mercadorias indispensáveis para o governo da nação, levando a toda a parte no alto dos seus mastros a bandeira de Portugal.

MÁRIO SALGUEIRO


[1] In: «Ílhavo na Ilustração Portuguesa», IIª série, n.º 714, Lisboa, Outubro de 1919. Foram omitidas as gravuras que acompanhavam o artigo e efectuou-se a actualização ortográfica do texto. Para conhecimento visual do naufrágio e salvamento do «Desertas», deverá consultar-se a rubrica «Naufrágios» em  «Memórias de Aveiro». Ver a versão fac-similada no índice da secção de História dos Recortes ou clicar no botão para a página anterior.

 

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07-02-2022