Artur de Sá, Timor, Sociedade de Geografia de Lisboa. Semana do Ultramar, 1952, 84 págs.

Capítulo II

Geografia Humana

1) População

A população de Timor, segundo o censo referente ao mês de Setembro de 1951, está calculada em cerca de 442.378 habitantes, assim distribuídos:

 
         
  Indígenas ..................................................... 436.448  
  Mistos .......................................................... 2.022  
  Amarelos e outros ...................................... 3.340  
  Europeus ..................................................... 568  


Como se vê, o número dos europeus, quase todos empregados no funcionalismo, e o dos amarelos e mistos, geralmente comerciantes ou colonos, é pouco representativo. A grande massa da população é formada pelo timorense.

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A sua origem antropológica constitui um problema que vem interessando vários homens de ciência, sem que tenham conseguido, ainda, dar-lhe solução definitiva. As diferenças somáticas, a variedade de tipos, a mescla de caracteres, a sua heterogeneidade, constituem modalidades até hoje indecifráveis, supondo-se que a ilha, por sua situação geográfica especial, tenha sido, em tempos, centro cosmopolita a que afluíram vários exemplares de raças humanas. É de esperar que na actual fase de renovação e progresso em que Timor entrou surjam também as condições necessárias a estes estudos e o problema possa ser aclarado.

Entretanto, pode afirmar-se, como certo, que o tipo predominante da população timorense é indonésico, forçosamente influenciado por factores locais, assinalando-se, além disso, a presença de elementos e núcleos estranhos, cuja origem se tem ido buscar à Melanésia e à Papuásia, o que faz crer em remotas emigrações. Esta teoria, porém, deverá ser demonstrada com argumentos mais sólidos e, mesmo que deva admitir-se, ainda resta provar se tais afinidades, de facto, vieram de fora, ou se não andariam já inoculadas em qualquer ramo indonésico.

Além destas incógnitas sobre antropologia local, um outro caso ocupa a atenção dos estudiosos e que diz respeito a três grupos típicos, com certo individualismo somático. São eles os «Caladis», situados na região de Fatu-Massin; os «Lamak-Hitos», acolhidos aos montes de Boboraro; e os «Firácus», / 21 / espalhados pelo interior de Baucau. Pretende-se ver no sentido destes vocábulos ocultas reminiscências étnicas, havendo quem lançasse a hipótese de que os ditos grupos poderiam ser contados entre os primitivos habitantes da ilha. Tal hipótese, porém, nos dois primeiros grupos, não resiste à etimologia dos termos, que são designativos toponímicos e não raciais. Quanto aos «Firácus», o nome é de significação étnica e poderá fornecer à antropologia alguns subsídios no estudo destes estranhos habitantes da montanha, continuando sujeita a estudos mais sistemáticos e profundos a sua classificação antropológica.
De um modo geral, o timorense é física e moralmente fraco, qualquer que seja a sua descendência racial. Exceptuando alguns bons exemplares, robustos e bem proporcionados, oriundos quase sempre da montanha, a maioria da gente apresenta um estado de compleição impressionantemente débil, e uma tendência acentuada para definhar. Na mulher o brilho da mocidade esvai-se precocemente, e o homem cedo perde a capacidade de trabalho. A vida prolonga-se-lhes pelas leis da inacção, como que embalsamada em múmia, descobrindo-se, por vezes, no segredo de povoações escusas, velhos que aparentam séculos.

Esta fragilidade orgânica é, geralmente, classificada de preguiça, exemplificada com fotografias, postas a correr, de indígenas amontoados para mover uma pedra de peso insignificante. Mas a verdade / 22 / é que indivíduos, com possibilidades económicas de boa alimentação, já se revelam aptos e decididos ao esforço. Fundamentalmente, importa criar-lhe outro sistema alimentar mais sadio, que lhe active os instintos dinâmicos de que dá sobejas provas na fúria das guerras, no delírio das caçadas, no entusiasmo dos batuques, etc.

Em compleição fisicamente atrofiada o espírito vive também adoentado. Inconstância da vontade, indiferença de sentimentos, inércia da inteligência, são os males que apagaram no timorense instintos superiores ou ânsias espirituais, apanhando-se-lhe, no fundo da sua psicologia, urna certa expressão fatalista. Se tiver que subir a um coqueiro para colher um fruto, há-de preferir o mais alto, explicando que, se cair de uma árvore baixa, ficará ferido ou aleijado para toda a vida; mas se cair muito de cima, morre e acabou-se... Acrescente-se a estes apontamentos o desalento apático de uma certa nostalgia ancestral e teremos que a silhueta do pobre timorense é a de alguém parado, a olhar para trás. E contudo, temos o facto passado de régulos a governar, com acerto e inteireza, aquela possessão, em nome de el-rei de Portugal, e o exemplo de muitos indígenas educados, cujas faculdades intelectuais chegaram até muito alto: ao quadro superior administrativo, ao sacerdócio.

Espera-se, por isso, que venham a conseguir-se melhores condições de robustez moral e física, para despertar naquela terra as necessárias forças do / 23 / espírito e de mão-de-obra, capazes de erguer o seu povo àquele nível de civilização que se pretende.

 

Imagem 5, inserida na página 24.


2) Regime político-social

Quando os portugueses chegaram a Timor, encontraram a ilha dividida em múltiplos reinos, mais ou menos extensos e poderosos. Esta divisão tem-se mantido através dos tempos, acontecendo, apenas, que muitos destes reinos, preponderantes em tempos idos, perderam a sua importância; ao passo que outros, menos influentes outrora, constituem hoje os reinos principais da ilha, mercê de circunstâncias várias.

Estes diversos reinos mantinham uma independência absoluta, entre si, embora procurassem, muitas vezes, alianças mútuas, a fim de resistirem a confederações inimigas, formadas noutras zonas. Todas estas manobras de guerra tinham em mira a devastação, o espólio e a captura de escravos.

A sua organização política é idêntica; cada reino está dividido em «Sucus», espécie de distritos, e estes, em pequenas povoações («Leo» ou «Cnua»). A autoridade suprema é constituída pelo régulo (Liu-Rai) que nos respectivos distritos tem os seus representantes (Datos); estes, por sua vez, transmitem as ordens reais aos chefes de povoação (Catuas) que são os agentes directos da autoridade, junto do povo. Semelhante organização ainda hoje se mantêm, / 25 / corrigida de certos excessos indígenas, como precioso auxiliar na administração pública.

O poder dos régulos foi, em tempos, absoluto, dispondo das pessoas, de suas coisas e de seus haveres, arbitrariamente, embora a condenação à morte e outras medidas de maior monta estivessem reguladas por disposições especiais, aprovadas por seus usos e costumes. Foi para não perderem este direito, quase tirano, que muitos destes régulos contrariaram a acção civilizadora dos portugueses.

O regulado exerce-se por direito de sucessão directa; em caso de poligamia, só os filhos da primeira mulher são considerados de estirpe real. O filho mais velho entra na posse de suas regalias, só por morte do pai e este, ainda que venha a tornar-se incapaz de exercer suas funções, mesmo assim, continuará a ser na veneração do indígena o seu Lui-Rai. Na falta de filhos legítimos, ou seja, os da primeira mulher, não são os filhos bastardos, mas sim os parentes mais próximos do régulo, irmãos ou primos, que lhe sucedem.

O «Dato» recebe instruções, directamente, do régulo; não só as que dizem respeito à vida indígena, entre si, mas também as que dimanam das autoridades portuguesas. O termo vai caindo em desuso pelos nossos territórios, substituído pela designação portuguesa «Chefe de Sucu). Compete-lhe, no seu distrito, convocar o pessoal obrigado ao trabalho nas hortas do régulo ou nos serviços do Estado e, em / 26 / caso de guerra, convocar homens capazes de pegar em armas.

Os «catuas» são os auxiliares dos Datos nas respectivas povoações; por sua avançada idade, escola da experiência e do saber, se lhes outorga o privilégio de presidirem nos lugares em que vivem. Estes respeitados anciãos têm sido substituídos por gente mais nova, com melhores condições de trabalho e actividade, e chamam-lhes Chefes de Povoação.

As autoridades portuguesas intervêm, quando convém, a fim de que sejam eleitos para estes cargos indivíduos, os mais idóneos, procurando esquecer os costumes indígenas. No entanto, o povo mantém surdamente o direito de sucessão e têm-se visto régulos, servidos e respeitados por seus povos, ainda que preteridos pela administração portuguesa.

Em Timor não há nada que se pareça com o sistema de castas, e hoje, nem mesmo qualquer distinção de classes, propriamente dita. Existe o povo e uma certa hierarquia de poderes. Alguns escritores antigos parecem querer indicar, naqueles sítios, a existência de uma classe social, de sangue azul, sob a designação de «Sangue de Pate». A expressão é malaia e o correcto seria «Sang Adhipaty», que se traduz por Senhor, Soberano, título honorífico de reis e príncipes.

Alguns dialectos de Timor conservam determinadas expressões que parecem denunciar ali a existência remota de incógnitas classes sociais da vida indígena. Os «Badais» (artífices), pelo seu nível de / 27 / vida, um pouco superior, por uma certa solidariedade comum, fazem lembrar, em Timor, os artífices da índia, constituídos em classes, muito mais organizadas e definidas. Os «Açua'in» (heróis da guerra) poderão ser talvez vestígios de uma antiga classe guerreira que, por força das circunstâncias, foi perdendo as características próprias. Todos estes apontamentos pouco esclarecem já o sistema de viver timorense, em tempos idos.

Praticava-se também, na ilha, uma espécie de escravatura, a que ficavam sujeitos os vencidos da guerra; mas aqui, tão nefanda instituição não assumiu o aspecto degradante, verificado noutras partes do globo. Inclusivamente, os escravos, se o mereciam, acabavam por ser adoptados e fazer parte da família. Devemos esclarecer ainda que a palavra «Ata», comum a certos falares timorenses e que muitos traduzem por escravo, se em algum tempo foi designativo destas pobres vítimas, hoje chama-se assim qualquer serviçal, empregado na guarda de rebanhos com plenos direitos de exercer qualquer outra profissão.

Quanto a instituições sociais, a única que se pode assinalar, entre os timorenses, é a família, organizada segundo os moldes patriarcais, com obrigações de contrato rescindível e liberdades poligâmicas. Referimo-nos aqui, evidentemente, ao matrimónio gentílico, pois que para os cristãos o «Sacramento Caben Nian» (sacramento do matrimónio) é celebrado, segundo as normas e princípios da Igreja / 28 / Católica. Ao seu contrato matrimonial chamam os gentios «Barlaque», palavra que também designa o conjunto de prendas que o noivo oferece ao pai da sua bem amada. Passam por fabulosas as somas que os pretendentes despendem em ouro, objectos e animais, para conseguirem a filha dum régulo. Em caso de assentimento, a noiva também mimoseia a família do rapaz. Então, os esponsais consideram-se celebrados e, no caso de serem desfeitos, as prendas já ofertadas terão que ser mutuamente restituídas, o que é sempre motivo de grandes questões junto das autoridades. As prendas das noivas são apenas simbólicas, mas os pretendentes são obrigados a corresponder-lhes, generosamente, e com valores reais. Aquelas ficam, então, a peso de ouro, tratando-se de representantes de casas nobres. A influência do cristianismo vai corrigindo estes excessos, mas ainda aparece quem se permita semelhante ostentação de grandeza, mesmo entre cristãos. Conta-se do heróico D. Aleixo que, sendo-lhe advertido o dispêndio que fazia para casar um de seus filhos com a representante da casa real de Ossu, este respondera: «se o Mate-Bian é grande, o Tata-Mai-Lau ainda é maior».

Convém saber que o Mate-Bian é a segunda montanha de Timor, em altitude, e o Tata-Mai-Lau, a primeira. Aquela situa-se em terras de Ossu; esta, nos reinos do Buro, que o valoroso D. Aleixo cobriu de glória.

No dia das bodas, um ritual gentílico consagra a união dos cônjuges, que será perpétua, se não surgir / 30 / qualquer motivo para o divórcio. Neste caso, e dado que a culpada seja a esposa, o marido poderá reaver os valores entregues aos pais desta, por ocasião do contrato. O novo lar constitui uma família à parte, mas integrada na casa donde a esposa é proveniente. Com esta casa contrai o marido obrigações especiais, tendentes ao seu engrandecimento e expansão. Desta maneira se organizaram casas poderosas, como as de Camnace, dos Hornais, Costas, etc. É a constituição da família segundo os princípios patriarcais, onde todos os cuidados estão voltados, não para o futuro, para os filhos, mas sim para o passado, para os anciãos. Semelhante conceito, que em Timor está profundamente arreigado, tem prejudicado muito o progresso daquele povo.

A poligamia é praticada por toda a parte, dentro de convenções estabelecidas. Qualquer indivíduo desposado, gentilicamente, poderá tomar ainda tantas mulheres quantas possa sustentar, desde que pague o respectivo «barlaque»; esposa será sempre e só a primeira mulher com quem se uniu. A obra da evangelização e o espírito da política portuguesa têm combatido a prática da poligamia, que tende a desaparecer.

Entre os seus usos e costumes aparece, com uma certa projecção social na vida indígena, o «Pacto de sangue». Este pacto ou aliança era celebrado entre vários reinos que se coligavam, entre si, para a guerra, com um ritual próprio, entre cerimónias de feroz significado. Reuniam-se representantes dos / 31 / vários reinos que prometiam aliar-se, presididos por um feiticeiro, geralmente, num ponto escuso, para conservar secreta a coligação. Organizava-se um festim, durante o qual todos os representantes misturavam o próprio sangue, colhido numa pequena incisão do corpo, com uma bebida qualquer ou com o sangue de um animal simbólico. Depois, todos bebiam desta poção, em sinal de aliança mútua e de fidelidade perpétua, para a vida e para a morte. Tanto os indígenas se julgavam obrigados a este juramento que, em tempos passados, capitães portugueses, para evitarem a deserção de reinos fiéis, tomaram também parte nestes pactos, misturando o seu sangue com o dos indígenas e bebendo-o, depois, pela tigela comum, para que Timor continuasse a ser português.

Podemos. referir-nos, aqui, também aos jogos, danças e mercados, como cenas de certo aspecto social. Quanto a jogos, o timorense tem-se deixado viciar por modalidades que lhe vieram de fora. Na cidade de Díli, nos bairros circunvizinhos de Motael, Bidau, China-Rate e Santa Cruz, joga-se animadamente, à meia luz do candeeiro, arriscando no azar das cartas o que lhes falta para comer. Nesta escola do jogo se vem formando uma qualidade de gente, os «bainós», que se habituaram a não fazer nada. A moda vai pegando, infelizmente, entre indígenas mais em contacto com estranhos, chineses e árabes, jogadores inatos, que vêem nas cartas mais um processo de exploração indígena. A intervenção das / 32 / autoridades, para reprimir abusos, é intensa, mas a paixão do jogo no timorense é inextinguível.

Para o grande público de todas as zonas a modalidade preferida é o «Jogo do Galo», tipicamente indígena. Os dois animais representam sempre dois partidos e não combatem só pelos seus donos, mas por duas povoações ou por dois reinos. Então, entre os assistentes, o combate das apostas aquece ainda mais do que a sanha, entre os adestrados animais. É, de facto, um espectáculo emocionante,. não só pelo esforço, destreza e coragem que os galos põem na luta, mas ainda mais, pelo delírio com que ambas as falanges apoiam o seu animal preferido. Dados os excessos que nestes combates se praticam, e ainda porque o timorense é capaz de jogar nas apostas o único trapo que trouxer vestido, procura-se «civilizar» um pouco estes combates, em certo modo bravios e de influência perniciosa à índole da população indígena.

As danças são, como em toda a parte, manifestações públicas de alegria. O género praticado em Timor pelo indígena é o batuque (Tebe-Dai) não o batuque africano, descomposto e selvagem, mas o batuque malaio, rítmico e artístico, mesmo quando, durante orgias nocturnas, desce à mímica de sentido erótico (Lico), ou quando exulta selvaticamente a vitória, perante esgares espectrais das cabeças inimigas decepadas (Loro-Sáan). Também nestes quadros da vida indígena há ainda muito que «civilizar», o que se vai conseguindo e, graças a intervenção / 33 / da política portuguesa, a dança do Loro-Sáan, hoje, executa-se como mera representação.

Finalmente, digamos alguma coisa sobre os mercados, ou bazares, como se diz em Timor, aonde os indígenas de afastadas regiões se encontram, vendem ou permutam variados produtos agrícolas, curiosos artefactos, espécies de animais, desde o búfalo até à catatua que se esforça por dizer alguma coisa para chamar sobre si as atenções. Donde é fácil imaginar o colorido do espectáculo, animado pelos combates de galo ou pela música dos batuques. Estes mercados realizam-se por toda a parte, em dias e lugares determinados, com modalidades idênticas às das nossas feiras, mas com muito mais interesse e bulício, podendo afirmar-se que o bazar é, em Timor, o teatro da vida pública indígena.

 

Imagem 6, inserida na página 24.

3) Sistema ético-religioso

A lei natural e as normas de seus usos e costumes constituem o código de moral para os indígenas ainda não convertidos ao cristianismo, ou mais renitentes à influência civilizadora da colonização portuguesa. Mesmo estes praticam um nível moral de vida, relativamente perfeito e longe de se poder classificar de indigno da natureza humana. A lei natural não se perverteu em suas consciências, quanto aos princípios essenciais, e seus costumes tendem à perfeição do indivíduo e não à sua degradação.

/ 34 / Os conceitos de propriedade e justiça são exactos, constituindo grave crime o furto de qualquer valor, ainda que de pouca importância. Aconteceu, um dia, apresentar-se na secretaria de Baucau um indivíduo, com uma cabeça de homem decepada de fresco. Vinha apresentar-se e explicar que um ladrão, (Nauc-teen) cuja cabeça ali estava decepada, entrara na sua horta para roubar favos de mel, suspensos nos troncos das árvores. Quis fugir, mas foi apanhado e deu-lhe tantas que o matou (ha'u bacu nia to mate). Agora trazia ali a cabeça para que o senhor administrador visse!... (atu ita boot haré!...)

É costume, entre eles, colocar nos ramos das árvores frutíferas um objecto indicativo do direito de posse e do castigo a aplicar a quem se atrever a colher uma peça de fruto. E o certo é que ninguém ousa violar o aviso publicado de maneira tão singular.

No campo jurídico os seus processos são já muito mais complicados, já porque o direito de propriedade é regulado por princípios característicos de seus costumes, já porque uma questão apresentada toma sempre proporções enormes que envolve famílias, povoações e reinos. Casos de «barlaques», de animais tresmalhados, de bens do reino, etc., são sempre um quebra-cabeças para as autoridades administrativas. Certo administrador, vendo que o tempo se lhe ia em resolver questões desta natureza, adoptou o sistema de obrigar a trabalhar, durante três dias, queixosos, testemunhas e quantos faziam / 35 / parte da comitiva, antes que desse início à solução do caso. O expediente resultou, porque as queixas começaram a rarear na Secretaria.

Os próprios indígenas acham, por vezes, tão intrincadas as suas questões que entregam a Deus a respectiva solução, pela prova do fogo ou da água quente. Os queixosos pegam num ferro quente, ou metem a mão numa panela de água a ferver, e aquele que não puder resistir é declarado culpado, a quem Deus abandonou.

Deve registar-se também o sentimento hospitaleiro e generoso do timorense. A nossa entrada na ilha foi possível, graças ao bom acolhimento dispensado aos primeiros mercadores que ali aportaram. Para o amigo ou forasteiro que chegue haverá sempre um pouco de «tuaca» (vinho de palma) num bambu, alguma carne seca no fumeiro e, no melhor canto da palhota, uma esteira para dormir, ainda que os donos hajam de passar a noite aconchegados à volta da fogueira. Acusam o indígena de ser ingrato, pelo facto de não se registar nos seus falares qualquer vocábulo designativo deste sentimento. A assistência que a população deu aos portugueses foragidos, nos anos nefandos da última guerra, a coragem com que alguns chefes se arrastavam até aos limites de Liquiçá, onde muitos portugueses estavam concentrados sob a vigilância feroz inimiga, transportando géneros escondidos, com risco da própria vida, parece que são casos da mais eloquente gratidão, concluindo-se que os dotes da alma / 36 / indígena não devem ser aferidos pela pobreza do seu vocabulário.

Em religião, o timorense é monoteísta; acredita num Senhor Supremo, «Maromac», no dialecto mais comum da ilha. O conceito que possa ter de Deus deverá ser simplicíssimo a julgar pelos actos de culto que lhe tributa, invocando-o somente em auxílio da sua inocência ou da sua fraqueza, em qualquer aflição.

Relativamente à existência duma outra vida, as suas práticas revelam tendências animistas. As almas continuam a viver, após a morte, vagabundas por lugares escusos, ou retidas no antro das montanhas sagradas, ou encarnando em animais e objectos, para exercerem seus malefícios, quando não sejam lembradas com cerimónias. propiciatórias. A crença em Deus e numa outra vida constitui toda a doutrina da sua religião, muito deturpada já num sistema ridículo de superstições, inspiradas por uma ideia totémica (Lulic) que está presente em todos os momentos da sua vida. Assim, para o timorense tudo é «lulic» (supersticiosamente temível) e passa a vida a fazer «estilos» (cerimónias rituais) para esconjurar o mal.

 
Imagem 7, inserida na página 29.


4) Cultura

Embora seja injusto considerar-se o povo timorense bárbaro ou selvagem, contudo, não se pode dizer que possua uma cultura, propriamente dita. / 37 / Apenas se vislumbra na sua linguagem um certo estilo clássico e em muitos dos seus artigos manufacturados, manifestações de arte primitiva.

Falam-se em Timor, e referimo-nos só ao território português, nove dialectos, sensivelmente diferentes. Cada um destes dialectos admite ainda certas variações que formam enclaves de pouca extensão. Dos nove dialectos são indonésios o Tetun, Galoli, Mambai, Tucuded, Quemac e o Vaiqueno, no enclave de Oe-Cussi. Os outros três, Dagadá, Macassai, e o Bunac, afastando-se essencialmente dos primeiros na fonética e na semântica, ainda não foi possível identificá-los.

De todos estes dialectos o mais conhecido é o Tetun, falado também fora de Timor, nas Flores, Ende, etc. Foi este o dialecto adoptado pelos missionários na catequese e pelos serviços administrativos nas relações com os indígenas, pelo que será fácil encontrar, por toda a parte, gente que o fale. Independentemente das expressões e vocábulos tomados do português, este dialecto é o mais rico em termos e forma expressiva, e neste poderemos observar melhor as notas linguísticas que nos permitimos registar.

Em primeiro lugar devemos distinguir o Tetun popular do Tetun clássico, permita-se-nos a expressão. O Tetun popular é usado na linguagem corrente por quem o sabe falar, enquanto que o Tetun clássico, só os «catuas» (velhos) de certas regiões, como / 38 / Viqueque, Luca, Lacluta, Samoro, conservam ainda o seu estilo e nele serão capazes de se exprimir. É este o Tetun usado nos brindes dos banquetes, nos discursos, etc.; e não basta saber o Tetun comum para se poder entender o que estes «Catuas» dizem, quando discursam. O emprego constante das metáforas, das analogias, a ordem dos discursos, as omissões frequentes, a conjugação dos verbos, que o tetun popular baniu, todas estas belezas de estilo deixam em branco a maior parte dos ouvintes.

O mesmo dialecto possui ainda um género de poesia, suave, cadenciada, em estilo de salmo, com uma estrutura idêntica. Neste género de linguagem conservam os indígenas, nas regiões do Tetun, as suas lendas, as suas tradições e os seus cantares. Estes vestígios literários que o Tetun conservou, apesar de sabe-se lá quantos anos de isolamento na ilha, demonstram a sua proveniência de uma língua rica e culta.

Sobre arte indígena pouco mais poderemos dizer do que registar a natural propensão do timorense para trabalhos deste género. Orientados por um ou outro europeu, têm aparecido trabalhos de escultura rudimentar, feitos por indígenas, que já não são toscos bonecos. Propriamente de seu engenho têm um trabalho de gravura a fogo em bambus. Os motivos costumam ser figuras, ramagens e desenhos geométricos. São também dignas de admiração as cenas que conseguem reproduzir nos panos que tecem, assim como os enfeites das bolsas em palhinha entrelaçada.

Estes ligeiros apontamentos pouco dizem, de facto, mas poderão sugerir a ideia de se educar o timorense em vista a promover na ilha um estilo próprio de arte indígena.

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18-06-2015