Américo Teles, Bondade Heróica, in: "Beira-Mar", n.º 434, 9 de Março de 1930, pág. 1.

 

BONDADE HERÓICA

 

Duas palavras, apenas. Mas duas palavras muito sinceras e muito sentidas pelo herói e pelo amigo.

Pelo herói, que o foi, nesta terra e neste país, entre os maio­res. Pelo amigo, em quem sempre reconheci extremos de imerecida dedicação e uma sinceridade sem limites.

Em Arrais Ançã, conjuga­vam-se, admiravelmente, duas personalidades, que eram, toda­via, no fundo, muito distintas: a alma de um herói e a alma de uma criança. E foi, sem dúvida, esta superior dualidade espiri­tual que fez de um humilde e obscuro pescador o homem ex­traordinário, que, em esforçada e destemida luta com as vagas al­terosas de um mar indómito, conseguiu arrancar à morte mais de noventa náufragos, para os lançar, depois, com rude mas enternecedora humildade, nos braços carinhosamente acolhedores da família angustiada!

Arrais Ançã era um bom. E quem existirá, aí, que não conhecesse e não tivesse sentido, ao menos uma vez, a extrema e tocante bondade do nosso grande e gloriosíssimo Arrais? Mas, quem melhor sentiu e conheceu de Ançã a alma compadecida e boa, foram aqueles velhos e desprotegidos pescadores que dele receberam ge­nerosamente, conforto de pala­vras, conforto de agasalho e de pão...

Repitamo-lo: Arrais Ançã era um bom. E, foi sempre, desde moço, tão largamente acentuada a sua bondade de coração, que o Destino, querendo reservá-lo para os mais altos feitos marítimos, logo o foi dotando com o arcaboiço e corpulência de gigante. Para que os seus músculos de aço pudessem servir pronta e admiravelmente os seus elevados sentimentos de humanitarismo, traduzidos, mais tarde, por actos da mais audaciosa e extraordinária bravura, roubando às fúrias do mar alteroso, esbravejante e enraivecido, muitos dos seus semelhantes!

Em Arrais Ançã, como aliás em todos os verdadeiros heróis, o coração era o centro e o fulcro da sua mais portentosa energia. E era ainda o seu coração quem gritava, na iminência do perigo, a primeira voz de comando, à qual sempre correspondiam os mais altos e inexcedíveis feitos de heroísmo e de bravura. E, por isso, podemos seguramente afirmar que foi com o coração que o velho Arrais, afinal, dominou e venceu o mar!... E o mar então, sempre vencido, ululante de fúria e de vingança, um dia, traiçoeiramente, rouba-lhe um filho...

E, pela primeira vez, o velho e gloriosíssimo Arrais ficou vencido!

Américo Teles

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Actualizado em
20-04-2018