In: "Expresso", 13 de Novembro de 1982, págs. 31-R e 32-R

Jacques Tati, o mal-amado

A morte de J. Tati veio-nos lembrar que ele e o seu cinema estavam vivos, apesar do silêncio. Do génio e do risco de Tati, nosso contemporâneo, fica-nos – por exemplo – "Playtime", essa obra completa que é o maior monumento do cinema francês e uma lição para o olhar.


António-Pedro Vasconcelos

"A tragédia é a vida em grande plano, a comédia a vida em plano de conjunto." – Charlie Chaplin
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Só é digno de ser levado a sério aquilo de que se riu ao menos uma vez."– Nietzsche

A VERDADE é que nos tínhamos todos esquecido de Tati. E eis que, de repente, a notícia da sua morte nos veio lembrar que ele estava vivo. Tati morreu em Paris, esquecido, inactivo e mal-amado. E, no entanto, ele deu à França e aos franceses o maior monumento do seu cinema, esse filme invulgar e genial que é "Playtime" e que podia ser por si só as suas "obras completas" e garantir-lhe a eternidade.

A França parece dar-se mal com o excesso e a desmedida e aborrecer o que perturba o seu gosto da pequena escala. Mesmo Versalhes, feito para dar testemunho da grandeza soberana do Rei Sol; é um modelo de harmonia ao lado do Escorial, que é feito à medida do poder e da glória de Carlos V. Paris é uma cidade / pág. 32-R / harmoniosa, horizontal, onde nem Haussmann nem depois Napoleão conseguiram inscrever a marca da monumentalidade e a medida imperial. Não é por acaso que foi na única colina da cidade que se fez o Sacré-Coeur, que é uma nódoa na paisagem, um monumento de mau gosto. Mesmo o "Balzac" de Rodin, concebido como um parto feroz da Natureza, lá está ao fim do Boulevard Raspail, disfarçado sob o arvoredo. Paris são as estátuas de Maillot nas Tulherias e o Jardim do Luxemburgo, o Pont Neuf e o Vert Galant – e mesmo a Torre Eiffel é para ser vista de longe, como uma peça de "Meccano", uma filigrana delicada e não uma montanha de aço a dominar a cidade.

A França amou Hulot e as suas Férias, mas detestou Jacques Tati e o seu "Playtime", esse filme que rivaliza com "O Nascimento de uma Nação" e outras audácias americanas. Dois anos para construir uma cidade transformada em estúdio, 15 000 metros quadrados de "décor", 5000 metros cúbicos de betão, 4000 metros quadrados de plástico, 1200 de vidro. Há nisto qualquer coisa de um Gaudí ou de um Lloyd Wright, não de um Corbusier. Tati, cineasta de ideias largas, cai em desgraça por uma questão de escala – como Ophüls, o único antes dele a tentar fazer uma superprodução em França, esse filme único que é o apogeu do barroco, feito por um vienense impenitente, "Lola Montez".

Mas os mal-entendidos são muitos: "Playtime" não é uma obra-prima do cinema cómico, mas do cinema "tout-court", a que abre as portas, mais do que qualquer outra, à modernidade. Com ele, a ditadura do "découpage" fica fora de moda, mesmo se é, como acontece com tudo, para reaparecer sob outras formas uns anos depois. A comicidade (mas o mesmo vale para qualquer género) não nasce aqui nem das caretas dos cómicos nem, como em Jerry Lewis – esse outro grande autor do burlesco caído em desgraça – da multiplicação dos planos e do efeito pavloviano das surpresas da montagem. Em "Playtime", como diz Tati, a causa e o efeito são dados no mesmo plano, sem nunca forçar grosseiramente o olhar do espectador, que vagueia, à procura do motivo, preso de diversas seduções. Cada plano de "Playtime" é como uma tapeçaria oitocentista ou um quadro de Brüeghel, um "puzzle" prodigioso de achados lançados para o "écran" de forma perdulária. Conheço poucos filmes (na realidade não me ocorre nenhum outro) onde a mecânica do "gag" seja tão perfeita mas que ao mesmo tempo nos dê a sensação permanente do "deixa-correr", poucos onde a banda sonora seja tão cuidada mas que nos deixe porém a impressão do improviso, nenhum outro onde a direcção de actores seja, como aqui, quase maníaca mas onde resulte, apesar disso, o sentimento de um filme feito apenas com figurantes – quase diria com o público.

Que a crítica da época o tenha acusado de falta de imaginação (quando há 50 ideias por plano) ou de se tratar de uma visão apocalíptica dos tempos modernos (que diríamos então do filme de Charlot?!) ou mesmo de um ataque à arquitectura dos nossos dias, e que assim tenha não só passado ao lado do maior filme do cinema francês depois de "Lola Montez" e da "Regra do Jogo", mas ajudado a destruir a carreira de Tati, eis o que bastaria para dar um remorso eterno aos autores de tão levianas barbaridades. Que o Estado francês não tenha feito a tempo mais do que o gesto recente do Governo socialista de querer resgatar essa injustiça, dando-lhe dinheiro para filmar, em vez do fatal reconhecimento póstumo que se deve aos génios como outrora aos santos, eis o que escandaliza e entristece, sobretudo quando, como em Tati, o seu cinema nos queria apenas fazer rir um pouco.

O mundo à medida do 70 mm

É que por detrás do sr. Hulot pouca gente soube ver a inteligência de Tati, como no "idiota" dos filmes de Tashlin e depois dos seus próprios, poucos souberam reconhecer o grande realizador que era Jerry Lewís ou, como no maior deles todos, Buster Keaton, era difícil ver mais do que a máscara do Pamplinas.

E, no entanto, Keaton – mais do que Chaplin, "clown" genial mas realizador medíocre – era um legítimo herdeiro de Kafka ou de Samuel Beckett, e os filmes de Jerry Lewis, mais do que os de Woody Allen, são o melhor retrato da solidão americana da crise de identidade do homem comum. Tati, esse, era um construtor rigoroso, um cineasta intransigente, um visionário. Ele defendia-se de ser um crítico do mundo moderno – é o que não falta, pelo contrário, no cinema de hoje – mas apenas um observador amável cujo propósito era o de trazer um pouco de humor a cada situação. Como o inspector Maigret, que descobria o "louco de Bergerac" da janela do seu quarto, Tati via o mundo duma janela larga, à medida do 70 mm, em plano de conjunto, para que cada um dos comparsas do quotidiano pudesse ter, aos seus olhos e do público, a mesma dimensão e as mesmas "chances": o riso não lhes desmascara o ridículo, aproxima-os pela simpatia.

Ao contrário de Chaplin, "Deus ex machina" de todas as situações, centro do mundo e do "écran", Hulot era um actor sem privilégios, cujo único papel era cada vez mais o de nos fazer ver que qualquer pessoa em qualquer altura se pode parecer com ele.

Dizia Cocteau, uma das mais belas "boutades" que «os americanos podiam um dia rir-se de Einstein mas não podiam rir-se de Picasso.» Tati, como Keatan, ChapIin ou Jerry Lewis, era um dos poucos artistas deste século que poderia esperar corrigi-Io: os marcianos, um dia, podem rir-se das teorias de Einstein ou de Marx Plank mas vão sorrir por certo com "Playtime".

António-Pedro Vasconcelos
 

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Actualizado em
24-5-2007