In: "Notícias Magazine", 12 de Dezembro de 2010, pp. 118-120.

HISTÓRIAS DE ÁFRICA
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Manuel Faria de Almeida

Lourenço Marques
1934 – 1960

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A maior censura da história do cinema

Texto de RITA PENEDOS DUARTE
 

Mil parabéns. Ganhámos Catembe», assim dizia o telegrama enviado em 1964 a Manuel Faria de Almeida por António da Cunha Telles. De Lisboa para Paris, onde o cineasta estagiava no IDHEC, anunciava-se o apoio ao filme Catembe – Sete Dias em Lourenço Marques. Na mesma altura, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) enviava ao ministro do Interior Santos Júnior uma nota secreta dizendo que «havia conhecimento de que uma equipa de filmagem da metrópole tencionava deslocar-se a Lourenço Marques a fim de produzir um filme sobre o tema "a paixão de um pescador negro da Catembe, de vida miserável, por uma prostituta, parece que de raça branca", tendo conseguido apoio das entidades competentes metropolitanas». A nota seguiu para o SNI (Secretariado Nacional de Informação) com um cartão do ministro que dizia «Que diabo é isto? Sabe o que se passa?»

Ainda o filme Catembe não tinha começado a ser rodado e já o seu destino estava traçado. Apesar do apoio financeiro do SNI, conseguido pelas Produções Cunha Telles, o filme foi censurado, remontado e, finalmente, proibido durante o Estado Novo. Os 103 cortes a que foi sujeito fizeram-no entrar no Guiness Book of Records na categoria de filme com mais cortes feitos pela censura na história do cinema.

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«Sempre gostei muito da região da Catembe. É o lado de lá de Lourenço Marques», diz Manuel Faria de Almeida, autor do filme.

Natural da capital moçambicana, cresceu a observar a vida que decorria na outra margem. «É uma aldeia de pescadores. Têm muito trabalho, mas conseguem muito pouco peixe ou camarão. A recompensa é muito pequena para o esforço diário que fazem.»

Faria de Almeida,

autor do filme que mais cortes sofreu na história do cinema.

O filme que idealizou pretendia fazer um retrato da vida nas duas margens irmãs, usando alguns aspectos documentais e pequenos episódios de ficção – o chamado cinema directo. A acção começava no Rossio, em Lisboa, onde se entrevistavam pessoas que mostravam não fazer ideia do que se passava em terras do ultramar. Seguia-se depois a história ficcional de Catembe, a personagem feminina, cujo nome fazia a ligação com a terra, e que se encantava por um rapaz.

«Apesar do financiamento, havia muito pouco dinheiro. Tinha a planificação e nada era repetido. Tudo era feito à justa. Ainda tentámos alguns apoios junto da Câmara Municipal, mas ninguém deu nada, à excepção do hotel onde ficaram a dormir o Augusto Cabrita e o Tropa. Eu fiquei em casa dos meus pais.»

Filmaram durante cerca de três semanas, seguidos de perto pela imprensa local e pelos habitantes da região. Contou-se, aliás, com a colaboração destes para a realização de algumas cenas ficcionadas, as pequenas histórias dentro da história.

Dado que o orçamento era limitado, nem tudo foi filmado. Três das cenas foram acrescentadas posteriormente. «Aproveitámos a oportunidade de ter a Filomena Lança, a actriz que encarna Catembe, a estudar em Lisboa, e filmámos o que faltava nos terrenos da Tobis, onde colocámos umas barracas a fazer lembrar Lourenço Marques.»

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Filmagens - Rodagem de cenas de Catembe, em Moçambique

Depois de montada a primeira versão, o filme foi visionado por representantes do Ministério do Ultramar, que propuseram algumas emendas. De seguida, foi visto pela Agência Geral do Ultramar, que levantou inúmeros problemas. Manuel Faria de Almeida cita um exemplo, tal como vem referido no documento da censura: «Em vários passos das entrevistas feitas no início do filme, os entrevistados referem-se à metrópole falando "em Portugal", como se Lourenço Marques não fosse também Portugal. Crê-se que este inconveniente deverá e poderá ser eliminado.» O «inconveniente» foi eliminado, em conjunto com todos os outros. Ao todo, foram 103 cortes no projecto original, que tinha a duração de uma hora e vinte. «Um grupo de entidades visionou o filme cortado e disse que estava bem. Mas, como é evidente, não era possível apresentá-lo assim. Remontei o filme que ficou com 45 minutos», revela Faria de Almeida. No entanto, o esforço foi inglório. A 28 de Fevereiro de 1966 a Censura comunicou ao distribuidor que decidira «suspender o filme por não ser oportuna a sua exibição».

Só depois do 25 de Abril foi possível conhecer esta obra que olhava as colónias de uma forma diferente do cinema de propaganda do regime. «A primeira vez que passou na Cinemateca, depois de uma entrevista ao Canal Dois com o jornalista Carlos Pinto Coelho, a sala encheu. As pessoas tiveram de se sentar no chão, nas coxias. Correu muito bem». Já em Setembro de 2010 o movimento Chão passou o filme no cinema Nimas e a 27 de Novembro a investigadora Maria do Carmo Piçarra também o apresentou na IV Mostra de Cinema e II Simpósio Novos Cinemas nos Países Lusófonos (Anos 60-70), na Universidade de Coimbra, onde contou com a presença do autor.

«Eu gosto do filme assim como está mas, quando foi apresentado à Censura que o proibiu, peguei no negativo e depositei-o na Cinemateca.»

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Catembe - Os actores que no filme encarnam o pescador negro e a prostituta.

 

Manuel Faria de Almeida nunca mais fez nenhum filme, embora tenha realizado diversos documentários. A Lourenço Marques só voltou. mais uma vez em trabalho, em 1968. "Fica-se desesperado quando se leva assim um revés. Deixei de pensar em fazer mais filmes.» De qualquer forma não fugiu totalmente ao seu destino, traçado desde cedo na terra natal. Foi membro fundador do Cine Clube de Lourenço Marques em 1957. Mais tarde, contou com o apoio do Fundo do Cinema Nacional para estudar cinema na London School of Film Technique e ganhou o primeiro prémio do Festival Cinestud de Amesterdão, com o filme feito durante o curso, Streets of Early Sorrow, inspirado no massacre de Sharpeville na Africa do Sul. Estagiou em França, no IDHEC (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos) e trabalhou nos arquivos da Cinemateca. Foi presidente da Tobis Portuguesa e do Instituto Português de Cinema, chefiou o Centro de Formação da RTP – Radiotelevisão Portuguesa e participou na criação da Televisão de Macau. Trabalhou ainda no lançamento da Europa TV e da RTP Internacional e passou pela Direcção de Programas e Direcção de Cooperação.

Tem várias obras sobre a história do cinema e sobre realização. A qualidade da obra e o currículo do autor justificam a curiosidade sempre que Catembe se mostra. Ainda assim, é com modéstia que Manuel Faria de Almeida se apresenta. «Pouca gente sabe que o filme existe, já foi feito há cinquenta anos. Mas quando se diz que vai passar, ainda há muita gente que o vai ver. E claro que há muitos outros que, com certeza, nem se mexem.»

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13/12/2010