GOMES DE SOUSA, Revista “ABC”, Ano I, N.º 20, Lisboa, 25 de Novembro de 1920

Parque de Santa Cruz de Coimbra em 1920

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Parque de Santa Cruz em 1920. Cliché do Sr. José Maria dos Santos, gentilmente cedido ao A B C)

O Parque de Santa Cruz era um recinto ricamente arborizado onde os cónegos regrantes de Santo Agostinho tinham o seu jogo da bola. As suas obras são atribuídas ao reformador da Congregação dos Crúzios, Gaspar da Encarnação, que foi ministro de D. João V. Era uma dependência da chamada Quinta de Santa Cruz, que, em 1839, foi mandada pôr em praça pelo governo e comprada pelo Desembargador António Joaquim Coutinho.

Vendida no ano seguinte ao negociante Frutuoso José da Silva, ficou por morte deste pertencendo a seu filho, o Comendador José António Leite Ribeiro. Em 1885, adquiriu-a a Câmara Municipal e nela se edificou o Bairro de Santa Cruz, cujo alvitre já em 1872 era apresentado no jornal “O Conimbricense”, de 14 de Fevereiro.

Ficou o jogo da bola com o seu parque, mas sujeito a variadas orientações, que, por vezes, comprometem a sua conservação, encarada não somente pelo critério histórico, mas também pelo que encerrava de belo e útil.

Sendo visitado em 1886 pelo antigo Bibliotecário da Sociedade de Geografia, Borges de Figueiredo e pelo americano Apollos Robison, refere-se o primeiro, no seu livro Coimbra Antiga e Moderna, ao estado deplorável em que encontraram a cascata que forma o fundo do jogo da bola, e julgam os visitantes o lindo retiro condenado a desaparecer.

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Parque de Santa Cruz em 1920. Cliché do Sr. José Maria dos Santos, gentilmente cedido ao A B C)

Dezenas de anos são decorridos, e, realmente, ainda lhe não foi dispensada a atenção que merece, tendo-se por vezes produzido alterações na sua feição característica e por outras lançado ao mais completo abandono.

Sendo hoje um recinto aberto e mal guardado, tudo ali se destrói. Desapareceram os bancos primitivos, e, dos que os substituíram, só restos existem, como acontece com os buxos que orlavam todas as ruas e com a magnífica e apertada vedação de cedros de ramos entrelaçados, que circundava o tanque central, e que, em 1881, “O Conimbricense”, rectificando uma local dum jornal da capital, afirmava que nada haveria no país que a pudesse igualar. Desapareceram muitos azulejos dos muros da escadaria que liga o jogo da bola com a fonte situada na parte mais elevada do parque e conhecida pela Sereia, e outros encontram-se despedaçados, assim como imensas peças de cantaria, e, presentemente, até a água desapareceu, que era em abundância, o que está comprometendo a existência de arbustos e plantas herbáceas. Não será difícil descobrir o critério que presidiu à escolha da primitiva flora do parque. Povoado com belos cedros de folhas escamiformes e com exemplares da flora mediterrânea, caracterizada por árvores dicotiledóneas de folhas espessas e persistentes, pretenderam os cónegos regrantes livrar o recinto da impertinência duma constante queda de folhas, incompatível com o fim a que o destinavam e que modificaria por completo o seu aspecto. Pois são choupos, plátanos e tílias, as árvores que ali se têm plantado, e que, começando nesta época a despir as folhas sobre canteiros de difícil limpeza, os transformam em verdadeiros monturos.

Na parte que confina com a Rua Lourenço Azevedo praticou-se um vasto terrapleno destinado aos jogos desportivos da Academia. Joga-se ali com frequência o foot-ball, mas estudantes poucas vezes ali se vêem; nem este jogo será o preferido por alunos de cursos superiores. A algazarra inerente ao jogo, as nuvens de poeira que ali se levantam, o vestuário que se exibe, tudo mostra claramente que não é no interior das cidades que tal jogo se deve praticar, e muito menos no local que para tal fim se apropriou. Em dias de certame a multidão distribui-se pelo parque e não há ramo ou arbusto que prejudique a observação, ou dificulte uma passagem, que não seja de pronto condenado a desaparecer. Uma das originalidades da cidade de Berlim é ter um extenso parque interior (Thiergarten) com árvores seculares, e que por tal forma têm sido respeitadas, que, quando se estabeleceu uma linha de eléctricos na rua principal, deram-lhe um importante desvio para que algumas árvores não fossem prejudicadas.

Dada a tendência para Coimbra se desenvolver para os lados da Cumeada, Montes Claros, Matadouro e Penedo da Saudade, o Parque de Santa Cruz ficará no centro da cidade, o que lhe beneficia extraordinariamente a sua estética.

Continuará sendo o melhor refúgio para quem necessite de alguns momentos de repouso, ou afastar-se do bulício das ruas. Raros serão os sanatórios estrangeiros, (que com este nome não passam de hotéis para descanso) que tenham uma dependência tão apropriada ao seu fim.

Os últimos festivais ali realizados, se tiveram todos os inconvenientes a que o Conselho de Arte e Arqueologia se refere no seu protesto, dirigido à Câmara Municipal e distribuído pela cidade, tiveram também a vantagem de fazer sair da indiferença grande parte culta de Coimbra, no propósito de mostrar que o Parque de Santa Cruz só poderá ser considerado inútil, como são todas as coisas por quem lhe não saiba reconhecer o seu valor, julgando urgente tirá-lo do abandono em que se encontra e procurando restituir-lhe quanto possível o seu aspecto primitivo, que em nada se coaduna com os fins para que o têm desviado. A isso se propunha em 1917 o ilustre professor da Escola Superior de Farmácia, Sr. Vicente Seiça, como se observa pelo relatório publicado no jornal “A Província”, relativo à sua estada numa vereação que só durante dez dias esteve à frente do município de Coimbra e é ainda com este intuito que ao mesmo professor sugeri a ideia da organização dum grupo de amigos do Parque de Santa Cruz, que não poderia ter tido melhor acolhimento, e, na verdade, a população de Coimbra é das que melhor poderá compreender o valor dum recinto daquela natureza, no seu primitivo aspecto.

Não sendo uma parte das câmaras municipais preenchida por técnicos de carreira, como sucede nalguns países, mas sim todos eleitos por um critério político, difícil será que as sucessivas vereações dispensem ao Parque as atenções que ele merece, dentro da mesma orientação. Critérios diferentes fazem e desfazem, e o Parque continuará perdendo o aspecto primitivo e toda a sua beleza. E como se não trata dum vulgar jardim municipal, para o que em geral bastam os zelos de qualquer jardineiro, precisaria estar dependente duma colectividade, que pelas suas funções ou conhecimentos especiais fosse garantia da sua restauração e conservação.

É grande a corrente intelectual que pretende salvar o antigo Parque. Tem hoje, portanto a Câmara Municipal muito quem a auxilie para uma solução que dê todas as garantias futuras sobre a sua conservação, o que certamente se obterá com uma serena conjugação de esforços.

GOMES DE SOUSA

In: Revista “ABC”, Ano I, N.º 20, Lisboa, 25 de Novembro de 1920.

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20-04-2018