Lá
pelos anos oitenta iam, lado a lado, dois barcos moliceiros a
conversar baixinho. Os outros vinte, espalhados pelos 6.000
hectares da laguna, andavam noutras fainas. Mas neste dia 8 de
Setembro, dia do S. Paio da Torreira, todos se aperaltavam com
as suas melhores roupagens.
Engalanados
com um ramo de flores campestres amarrado à bica da proa e
bandeirolas multicores espalhadas ao longo do bolinão, na
aresta recuada da vela e até na ostaga. Num ou outro, há um
cabo ligado desde a ostaga à bica da ré, também cheio de
bandeirolas. No topo do mastro, há os mais patriotas que
encimam a bandeira nacional.
Noutros,
há bandeiras dos países de emigração, onde alguns
“camaradas” mourejavam.
Hoje,
o “A — 923 M” e o “A — 951 M” vão de velas
novas e os painéis e o costado retocados: o costado negro de
pez-louro, os bordos de amarelo torrado, a parte superior dos
bordos e o castelo da proa com uma demão de serradura por
cima do pez-louro, os tostes também, mas só de um lado.
As
vinhetas e os ornamentos decorativos de várias cores
circundam os painéis, onde os mais variegados motivos
representam figuras reais com a frase “O Rei da Varela”,
como exemplo, ou uma mulher avantajada com a frase “A
Vaidosa do Lameiro”.
No
leme, a divisa em signo-saimão do construtor como o mestre
José Labôura e outros tantos já desaparecidos. Tudo muito
álacre!
O
ancinho de sete palmos e meio e sessenta dentes, o vertedouro,
as forcadas, estão como novos. A jarra de barro vermelho vai
fresca e bem segura, debaixo da entremesa do bico da ré.
Na
proa, as chaleiras cheias de mantimentos vários e, no chão,
esteiras de bunho, cobertores de papa e mantas de farrapos
para a pernoita, em invernadas geladas. Cá fora, entre
cavername, uma panela de três pés, em ferro fundido, deixa
sair o vapor fragrante duma caldeirada, misturado com o cheiro
da resina das achas que crepitam na fogueira.
...Ora
essa, os camaradas governam manejando a escota, o bolinão ou
o cabo que vai desde os golfiões da proa ao xarolo do leme.
Estes
dois navegam pelo Canal da Veia e, como a maré é preia-mar,
vão a bolinar, ganhando o barlavento.
Do
lado do estibordo, o “A — 923 M” tem, no seu painel da
proa, a legenda “Cuidado com as curvas”; o outro, o “A
— 951 M” tem a legenda “Não tenhas receio”.
No
painel da popa, o primeiro clama “O respeito vai à proa”
e o outro “Dá-me um beijo amor”. Do lado do bombordo, à
proa, o primeiro “Não tenhas receio e o segundo “Em
primeiro o matrimónio”. À ré, “Como és tão tentadoura”
e “Num me toques que me desafinas”!
Passou
por eles, em sentido contrário, um mercantel que lhes mandou
uma “boca” um tanto despeitado: “Onde vão tão
bonitos?”. Os moliceiros impinaram a proa e ripostaram:
“Ora este que não nos larga!”; e rodopiaram o leme, com a
sua chança, tomaram a direcção do esteiro do Gramato.
A
marinha “Ceboleira”, à sua direita, já tem grandes
cambeias e, o palheiro, com o emblema do Beiramarzinho pintado
na porta, tem as cores esmaecidas, e ameaça ruína.
Do
lado esquerdo, a marinha “D’El-Rei” já é um autêntico
lamaçal.
...E
a conversa de coisas miúdas e banais, tomou o seguinte rumo.
Diz
o “A — 923 M” — Sabes, a “boca” do mercantel é um
pouco de despeito por causa de não ter painéis lindos como nós
e esta silhueta donairosa e elegante.
Diz
o outro — gostava de saber quem inventou a nossa bela
silhueta e os lindos painéis que nos ornamentam.
O
primeiro tentou esclarecer — Já dizia o pai do meu pai que,
segundo certos historiadores, uns descendemos dos barcos dos
Vikings, aqueles “barcos-serpentes”, mas parece que eles não
passaram por cá e, se passaram, ainda não havia o cordão
litoral, o estuário, nem o moliço.
Outros
houve, que disseram que descendemos das galeras romanas. Ná!
Que estas tinham aqueles ar feroz com aquelas carrancas
medonhas.
Uns
até dizem que a nossa proa se parece com o bico duma gaivota!
Cá por mim, o revoltear das ondas inspirou os nossos
criadores.
Ao
contrário dos outros, só temos cinco palmos de pontal,
porque navegamos em águas baixas para apanharmos o sirgo, o
limo, e outros moliços; e o inspirado autor dos nossos belos
e garridos painéis inspirou-se nas cangas policromadas dos
animais de tracção e, talvez, nas “alminhas” que em
alguns pontos ladeiam os caminhos das aldeias, por onde o moliço
vai estrumar os terrenos que se tornam férteis.
Se
calhar, ao princípio, só se pintavam motivos religiosos, mas
os mestres pintores foram, ao longo dos tempos, inventando
outros motivos; uns jocosos, outros críticos da sociedade.
Tiveram
de se separar os dois barcos, porque o esteiro não permitia
navegar a par, pois os seus setenta e cinco palmos de
comprimento e doze e meio de boca dificultam a manobra e,
mesmo assim, a vela tem de ser substituída na locomoção
pela sirga amarrada aos golfiões ou pelo uso do moirão
encostado ao calo do ombro dos “camaradas”.
Ao
chegarem ao Parrachil, cruzaram-se com uma “marinhoa” que
os saudou com “Bom dia” respondendo-lhe “Bons olhos te
vejam”. Já no Canal do Espinheiro, e com a vela içada, vários
moliceiros e outras embarcações rumavam direitos ao canal da
carreira de Aveiro, passando entre a Gaga e o Travessadouro,
desembocando no Canal de Ovar, rumo à Torreira.
Os
nossos dois conhecidos, com a vela trapezoidal de 24m2 agarrada
com os envergues à verga de vinte palmos e esta ao mastro de
quarenta palmos, bolinam impantes com o toste a aguentar a
“penada”. Lá vai o ano de 1954 em que uma dúzia de
moliceiros subiam o Canal de S. Jacinto na “gasosa” só
com o bordo tocando a marola e, de repente, numa manobra
arriscada, um deles, mesmo em frente à Berbigoeira e num
baixio ficou com o fundo à vista! Todos acorreram e, enquanto
o diabo esfregou um olho, já estava a navegar.
À
entrada do Canal de Ovar, já se viam e ouviam o “Terretéutéu,
pum” do foguetório.
Arranjar
lugar para espetar os “moirões” foi um caso sério, pois
além dos moliceiros e mercantéis, havia as mercantelas, as
marinhoas, as erveiras, as patachas, as labregas, as caçadeiras,
as da chincha, as mugigangas, as moliceiras de Canelas, e até
iates e outro barcos de recreio! Parece um canavial com o
cocuruto colorido.
Sanfonas
obrigam a um pé de dança, e elas, as belas mulheres morenas
da borda d’água, garridas e de farnel à cabeça no cesto
merendeiro, caminham com os seus pares ou em ranchos
familiares, até ao Santo-Menino S. Paio, com o pretexto de
arranjar noivo de momento ou para sempre, mas para muitos é
ocasião para grandes “carraspanas”!
Ao
outro dia, é o regresso, moídos e bebidos na noite de folia.
A viagem torna-se penosa, pois o vento não ajuda e só o
aproveitar da vazante impele os nossos dois amigos até S.
Jacinto. Depois, velas desfraldadas seguem pelo canal da
Gafanha, Canal da Cidade e, por fim, atracam nos “moirões”
da “Veneza” de Portugal.
O
“A — 923 M” e o “A — 951 M” foram perdendo
companheiros de viagem e, um dia, aí há meia dúzia de anos,
quase no limite da sua existência, o que tinha “Cuidado com
as curvas” embateu num bloco de cimento submerso e que tinha
caído duma “bomba”, fez um rombo, foi ao fundo, apodreceu
e agora só se vê a carcaça na maré-baixa, levando as
lanchas rápidas a desviarem-se com desprezo.
O
outro sobreviveu, o viúvo “Não tenhas receio” encalhou
varado por falta de braços. Os camarários compraram-no,
vestiram-lhe novas roupagens, e atracaram-no bem amarrado às
estacas que não são de cá, e o pobre vaidoso deixa-se
fotografar por forasteiros que comentam “que lindo é, deve
ser único no mundo”. Só se chateia quando, em vez de moliço,
o carregam cheio de “japoneses” guarnecidos de objectivas.
Mas o pior é atracarem-lhe uma maquineta que o faz andar a
grande velocidade sem vento e contra a maré!...
JOÃO
PEREIRA DE LEMOS
13/7/1998
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