Hierarquia superior

A OBRA COMO ESCRITA DA VIDA OU ESCRITA DO SILÊNCIO: AO ENCONTRO DE «QUEM É O HOMEM?»

 

A desesperada procura de uma forma última pelos escritores, os de ontem como os de hoje, revelou-se sempre como um modo de forçar as fronteiras do dizível: se o texto significa a conquista de novas realidades, fala-se de sonho, se o texto se assume como uma fala própria, remete para o silêncio. Mas que silêncio se tudo, afinal, é uma questão de linguagem, e não só desta língua portuguesa, que como outras foi criada em Babel para lançar a confusão no mundo? Será o silêncio a última expressão de um conflito com a língua? Teremos que proceder a uma discussão sobre o problema da resistência que oferecem as fronteiras da língua?

 

Os escritores, os poetas, os filósofos, são levados às últimas consequências deste desafio. E por esta via se renova a tentativa de ir de encontro ao apelo da metáfora, que vale agora, já não pela sua capacidade integradora, mas por querer apelar directamente ao Ser das coisas, apesar das sombras que sempre assomam. O escritor, Vergílio Ferreira, quer falar para além fronteiras, atravessar as fronteiras por cada palavra. E mesmo que uma saudade a apague, a palavra sintoniza-nos com cada lugar. O momento desta fractura é ele mesmo o mergulho no silêncio que gera a metáfora como fórmula a recordar. Digamos que quem escreve dispõe de fórmulas numa memória, de maravilhosas “palavras antigas”, das palavras originais para uma pedra ou uma folha, por exemplo, ligando-se ou explodindo em novas palavras, novos sinais para a realidade, perante a decadência de todos os valores e a degeneração da própria linguagem. E quem cria estas fórmulas mergulha também nelas com a sua respiração, que vale como prova não exigida para a veracidade dessas fórmulas.

 

Mas que imagens nos trazem essas fórmulas para o entendimento da Vida? Quando começa a sua liberdade? Ou quando começa o seu despotismo? Onde podemos encontrar a sua capacidade de nos fazer comungar vivências?

 

Vergílio Ferreira instala, de certo modo, o seu radical programa de silêncio e de mal-estar, em virtude dessa insuficiência da linguagem para dizer o mundo, os sentimentos e a Vida, sempre marcado pelo desassossego, pela inquietude, perante a crise axiológica do seu/nosso tempo, a queda dos mitos[1], a crise de identidade da sua/nossa geração. E para que nos servem as fórmulas? Para que nos servem as palavras no seio desta realidade sem identificação? Esta realidade que é sempre um outro de si mesmo?

 

Tudo se desfaz em pedaços, os pedaços novamente em pedaços e nada se deixa abranger por um conceito. As palavras abstractas de que a língua se serve naturalmente para qualquer juízo, despedaçam-se como cogumelos podres. De um lado temos a fugacidade das vivências e, por outro, a estagnação passiva das “fórmulas feitas”, que não cabem nessa escrita de vivência, nessa escrita da Vida que é a escrita de Vergílio Ferreira.

 

Sabemos com o autor que o mundo é composto por factos completamente independentes uns dos outros, que as frases universais são impossíveis, que as frases da lógica não passam de "puras tautologias". As únicas frases que fazem sentido são as frases da experiência, as frases que emergem da Vida, da nossa Vida concretamente vivida, as frases que correspondem aos factos do mundo.

 

Como refere a este propósito o poeta Ingeborg Bachmann, em O Tempo Aprazado, «deste lado das “fronteiras” estamos, pensamos, falamos nós. A sensação do mundo como um todo delimitado é-nos sugerida porque só, enquanto sujeitos metafísicos, não somos já parte do mundo, mas sua “fronteira”. O caminho através da fronteira, porém, foi-nos vedado. É-nos impossível situarmo-nos fora do mundo e proferir frases sobre as frases do mundo (...) Por isso (...) não há frases éticas, porque uma frase nunca pode exprimir nada de superior. (...) Nada do que a língua é capaz de exprimir – os factos do mundo, portanto – é alterável pela vontade. Alteráveis, só as fronteiras do mundo, e sobre elas temos de nos calar»[2].

 

Submeter-se ao silêncio talvez seja a alternativa mais adequada para o homem de bom senso, ou ainda dispomos da possibilidade de encontrar uma “nova linguagem” para o romance, para o ensaio ou para a ficção, uma linguagem aquém das “fórmulas” e pela qual possamos dizer o Mundo? E que “nova linguagem” será esta? Quiçá uma linguagem que resulte menos da procura de originalidade (sem prescindir do originário) do que da necessidade de se formular constantes?

 

Digamos que esta tomada de direcção, este ser-se atirado para uma via na qual se cresce e se morre, na qual já não há lugar para o acaso de palavras e de coisas. Vergílio Ferreira desenvolve uma consciência “oblíqua” do Mundo que atravessa momentâneos estados de iluminação pela palavra. Em cada acto de escrita, há como que uma imitação daquela linguagem por nós pressentida, mas da qual não podemos apossar-nos totalmente. Possuímo-la como fragmento, na escrita, concretizada numa linha ou numa cena, e compreendemo-nos nela, respirando fundo como se estivéssemos chegado à linguagem originária que podemos escutar aquém das «vozes do silêncio», de que falava Malraux, advertindo-nos para a necessidade de considerarmos a palavra antes que ela seja pronunciada, o fundo do silêncio que não cessa de a envolver, o silêncio sem o qual a palavra nada diz.

 

A obra Para Sempre (1983) constitui-se como a grande apologia do silêncio, essa outra fala que nos resta para além das palavras já gastas, para além da vacuidade da linguagem escrita ou falada. Vergílio Ferreira anuncia e comprova essa denúncia, cada vez mais evidente nestes tempos hodiernos onde a “arte da palavra” se constitui no próprio vazio, no corte da lógica e da significação. Por isso escreve nessa magnifica obra: «Sento-me à varanda – aqui estou. Vida finda. Mas não perguntes. Sonhos, lutas, e a obsessão do enigma – não perguntes. E do que o ordenasse ao universo – não penses. A palavra ainda, se ao menos. A palavra final. A oculta e breve por sobre o ruído e a fadiga. A última, a primeira»[3].

E o silêncio assoma. O silêncio que estala no ar branco e perante o qual os pássaros se calam na sombra das ramadas. «Só de vez em quando, vem de longe, dá a volta pelos montes, uma voz canta pelo ermo das quintas. Ouço-a na minha alegria morta, na revoada da memória longínqua, escuta-a. E é como se mais forte que o cansaço e a ruína, do lado de lá da amargura, é a voz da terra, da divindade do homem»[4].

 

O presente está só, desamparado. Sabemo-lo bem. Mas a memória erige o tempo. Sucessão e engano, correspondem, apenas, à rotina do relógio. Por isso é que esse rosto que vemos nos desgastados e escuros espelhos não é o mesmo. O hoje fugaz é ténue e é eterno. Não vale a pena procurar um outro Céu ou um outro Inferno. «Para sempre. Aqui estou», escreve Vergílio Ferreira, quando (..) «uma voz canta não sei onde», uma voz que se ergue «sobre o silêncio da terra»[5].

 

Vergílio Ferreira permanece aí, no «jardim imóvel do silêncio», onde nada o olha nem lhe fala, embora procure ouvir a voz que canta no silêncio em redor. Sempre «na aprendizagem serena do silêncio», num «silêncio súbito», o «silêncio da terra». Só ouve as «vozes ermas dos campos», no «calor parado da tarde». Tudo o resto é supérfluo. Só encontramos a «palavra seca reduzida, ao essencial da agressividade».

 

E ouvimos o mesmo imperativo de sempre, o imperativo do silêncio, sobe várias formas ou expressões linguísticas, dessa denúncia do puro linguajar, da tagarelice, da vacuidade das palavras sistemática e aleatoriamente ditas, das palavras e dos discursos despidos da sua significação originária, ou se preferirmos, do seu enraizamento ontológico, quer dizer, ausentes da palavra originária que diz Ser, que remete para o Ser: «Ah, e se te calasses? tu falas tanto»; «Estai calados, estupores!»; «Estai calados, desgraçados!», profere o autor respectivamente a Xana, aos políticos e aos filósofos. Ou , ainda, «Ide todos à merda!», quando se refere aos moralistas. «Para a puta que vos pariu!», é a sentença que o autor profere, em nome do silêncio, aos pregadores da religião.

 

E o que diremos dos artistas? « ‑ Espera. Faltavam agora ainda estes, os artistas. Que é que vós quereis, meus bardamerdas?»[6]. Esses querem apenas dizer coisas. Desvairam aos gritos. Os pretensos homens da cultura não se entendem, tal como os políticos ou os arautos da religião. E no final de contas, defendem tão-só o regresso às formas poéticas de base que um jocoso qualquer crismou de parolice e, não obstante, discutem todas as correntes contemporâneas – “cubismo”, “faubismo”, “neoplasticismo” ... – mas em nada dignificam a arte, essa actividade mais nobre do homem. Cerrar os ouvidos a tamanhas confusões ideológicas, discursos vazios e a indecorosas posturas artísticas, regressar, de novo, ao silêncio é, seguramente, a atitude mais sensata. E o que lhes resta é ir «berrar para as profundezas do Inferno»[7].

 

No entanto, e seguido pelas «vozes do silêncio», o que Vergílio Ferreira pretendeu, em toda a sua vida de literato pensador, traduz-se nesse desejo inquietante de transmitir, pela linguagem, uma ideia de mundo, conjuntamente com as próprias inquietações que o mundo suscita através do romance. O romance é isso mesmo: a imagem de uma época ou a sua representação literária, uma certa visão do mundo e da vida que o artista põe em obra e torna publicamente acessível.

 

Ora, os escritos de Vergílio Ferreira foram perpassados, à semelhança da generalidade das obras suas contemporâneas, pelo “neo‑realismo”, um acontecimento fundamental para o meio artístico‑cultural, tão fundamental como a Guerra, segundo as próprias palavras do autor, que se integra nesse movimento, que não é senão aquilo a que poderíamos chamar «arte social».

 

Trata-se de uma forma de ser da arte, de um movimento ou corrente artística plenamente comprometida com as questões socio-económicas, comprometimento que faz esquecer aos seus adeptos a natureza específica da própria arte. Aliás, a arte de compromisso traduz-se nisso mesmo: no esquecimento de que uma obra de arte é antes de mais uma obra de arte e, portanto, só pode estar comprometida com o seu tempo e não com qualquer tema aleatoriamente apresentado, ou imposto pela ordem culturalmente instituída. Aliás, «um romance só existe pelo que lhe é específico e lhe confere eficácia. Assim o que o determina como obra de arte se há-de esclarecer desde o tema».

 

Mas, de onde partiu, afinal, a postura “neo-realista”? Do princípio segundo o qual a literatura, o romance, que na época eram conceitos sinónimos, poderiam colaborar num projecto mais vasto, cujo lema fosse a transformação da sociedade e do mundo. Esta ideia ou necessidade imperiosa de mudança, tornou-se uma crença absoluta, também ela sujeita à transformação ou metamorfose pela queda, ou em virtude da queda do grande “mito do século”, da destruição daquilo que é para o nosso autor o grande acontecimento do nosso tempo: o “mito comunista”.

 

Sucedâneo de mitos anteriores, o “mito comunista”, o comunismo universalizante, que não se preocupava apenas com determinados sectores da vida, mas com todos, instituiu-se como uma espécie de religião privada, uma axiologia determinada que abalou certos modos de estar e colocou em suspenso grande parte das consciências.

 

E que mitos assomam, hoje, nesta sociedade absolutamente tecnicizada? Ainda acreditamos em mitos pelos quais pautamos as nossas condutas e forjamos as nossas ideias? Que valores veiculamos hodiernamente? Afinal que mudança se opera ou se operou? Que mudança esperamos nós, ansiosos pelos tempos vindouros, talvez na esperança de uma vida e de um mundo mais moldado aos nossos anseios? Esperamos a verdade nunca revelada? Ou perdemos a memória e todo o passado das construções dos homens? Ou seguiremos esse exemplo magistral de Vergílio Ferreira que rompeu com o mito imposto pela sua época, com a mundivisão que veiculava? Vergílio Ferreira, agnóstico, a quem a verdade se revelou, tanto quanto ele mesmo, a pode aceitar e conceber.

 

A obra que Vergílio Ferreira nos deixou é, a um tempo, o testemunho de uma vida singular e universal: «Toda a obra que eu escreve, refere o autor, tem a ver com a minha vida, suponho eu»[8]. (...) «Tudo tem a ver com a minha vida. Um livro, ao fim de contas, é um resumo da minha vida, das minhas obsessões, das minhas preocupações»[9]

 

Mas a que obsessões se refere o autor que fala sempre na primeira pessoa, como se fosse em cada romance ou cada ensaio todas as personagens e o narrador ao mesmo tempo, o autor que parece escrever porque é vital, porque é absolutamente fundamental dar a conhecer aos Homens o que na sua alma encerra, essa alma do tamanho do mundo onde cabem todas as almas dos Homens? Que preocupações são essas que assomam em cada obra, no seu rosto e em todos os rostos que são o seu, esse rosto já enrugado e marcado pela vida que se reflecte especularmente em cada acto de escrita?

 

Para que possamos alvitrar uma resposta adequada a estas questões, é necessário atentar, pelo menos, numa das suas obsessões fundamentais e, quiçá, mais constante: a via da permanente indagação que perpassa este espírito sempre em estado de estranheza, de espanto, de inquietude e de dúvida. Toda a existência do escritor não foi senão um acto prolongado, durante a qual não cessou de se interrogar sobre o Destino (o seu destino), com uma consciência, por vezes penosa, da máxima lucidez, sobre tudo que lhe ocorre na Vida e sobre o modo como o mundo é para si próprio.

 

A vida que encerra a significação máxima em si própria e jamais em nada do que eventualmente a possa exceder. Digamos que perante a recusa da transcendência, que é o que está em causa na afirmação do valor absoluto da vida, a vida emerge como o único valor, como o valor supremo a que toda a escala axiológica deve estar subordinada. Esta é precisamente a principal obsessão do autor em Alegria Breve (1965).

 

Nesta obra, Vergílio Ferreira cita Sófocles. Cita-o, mesmo antes de começar o livro, os mesmo versos do famoso segundo coro de Antígona, a partir dos quais Heidegger tentou determinar «Quem é o Homem?», interrogação que destrona aquela que nos habituámos a pronunciar, incessantemente, desde Aristóteles – «O que é o homem?» ‑, e para a qual obtivemos sempre a mesma resposta: «O homem é um animal racional» (“etiqueta” que transportamos há séculos na nossa fronte), constituindo a Razão, o Intelecto, a sua diferença específica.

 

Vergílio Ferreira sabe tão bem como Sófocles, Hölderlin ou Heidegger que: «polla ta deina kouden anqrvpon deinoteron pelei».[10] Os termos a destacar aqui, são deina e deinoteron, em virtude das respectivas traduções alterarem não apenas o conteúdo semântico dos versos, mas todo o desenvolvimento da tragédia sofocleana e, em particular, a concepção de homem que possamos adoptar ou desenvolver.

 

De facto, as traduções destes versos são várias e nunca unívocas[11]. Vergílio Ferreira translitera-os do seguinte modo: «Há muitas coisas espantosas (deina), mas nada há mais espantoso (deinoteron) do que o homem»[12]. Estes versos são o ponto de partida, quiçá o fio condutor, de Alegria Breve, onde o escritor sente o silêncio que cresce à sua volta , desde a montanha que fica a olhar até lhe doerem os olhos. Apresenta-se como um homem só, horrorosamente só e evoca, mais uma vez, Deus, o único que pode compreender essa solidão e ao mesmo tempo o sofrimento que dela decorre. Toda a solidão do mundo entrou dentro de si. Apesar, do seu «orgulho triste, inchado», é o Homem, que do desastre universal se ergueu, no seio do silêncio, enorme e tremendo.

 

E quando ouve o silêncio, sente-se, «aí, disperso irisado em espaço, íntegro e puro. E nu[13]. Todavia, atira uma «patada violenta» para tomar posse do mundo, e sabe, então que é ele próprio, o Vergílio Ferreira, que sente e escreve tudo isto: «Atiro a minha patada violenta, respiro até aos ossos o universo», apesar do trémulo olhar de lágrimas, a solidão ancestral, o frio da noite, «adstringente e nulo».

 

Sempre restrito em si nota, tão-só, a sua pequenez perante o universo, que é tão grande, face à sua insuficiente divindade. Mas está aí, pequeno e medroso, pensando às vezes: «sentar-se aqui (com os pés a doer por causa do frio), morrer aqui»[14]. Outras vezes grita e julga endoidecer, ao mesmo tempo que quer alcançar a «paz da terra» que sempre procura: «Quando fico na aula, com todas as janelas abertas, às vezes cerro os olhos, respiro fundo, e a paz da terra é tão funda que encontro a cabeça à secretária e choro. Depois reparo que não chorei. Tenho uma alegria excessiva como quem vai suicidar-se»[15].

 

Porém, um aroma intenso, imóvel e de eternidade move-o a percorrer esse caminho de indagação de que nunca se separa, procurando também o homem, o ente mais espantoso entre as múltiplas coisas espantosas. E como todos os outros homens, sabe que a paz é sua porque a percepciona, porque resiste à agonia e está vivo. A confiança emerge: «sem dúvida o resultado era imprevisível, porque muitos caminhos partiam daí e eu podia rir com um riso canino, ou andar aos gritos pela vida, ou chorar à espera de resignar-me, ou olhar apenas de olhos enxutos e esperar as flores novas sob o túmulo dos mortos, ou. Estou vivo. A terra existe. Eu sei-o[16]. Por isso, pode entrar e sair por todas as portas da vida, mesmo que permaneça só, mesmo que lhe seja impossível gritar, mesmo que o grito se lhe entale na garganta e o mundo recue para uma estranheza absurda.

 

É preciso abrir os olhos e ver totalmente para aguentar o impacte da Vida e vencê-la, mesmo que seja necessário recuperar a vida desde as raízes mais profundas, obscuras ou verdadeiras. E se por mero acaso a vida for uma invenção, esqueçamos tudo, e reinventemo-la desde o início. É o único caminho que nos afasta do envenenamento para sempre[17]. Há, por vezes, uma música ignorada que vem de longe e que cresce no âmago da alma, à semelhança de um aceno humilde, mas que, no entanto, faz tremer os olhos. É uma música suave que sobe pelo corpo todo, mesmo sendo tão ilícita, mesmo apertando o pescoço como a uma criança.

 

No seio da ternura que emerge de vez em quando, não obstante os olhos trémulos e o pescoço apertado, esse sentimento tão difícil de se atingir na sua plenitude, o que comove o autor é a constatação de que o homem pode subir tão alto, embora as suas raízes nunca subam, tal como as das árvores, porque «estão na terra, para sempre, junto da infância e dos mortos»[18].

 

Mas o homem é, no entanto, o mais espantoso (deinoz) das criaturas. O mais maravilhoso (deinoz), ou ao invés (ou quiçá simultaneamente) o mais terrível (deinoz) e o mais inquietante (deinoz), o mais estranho (deinoz), o mais violento (deinoz)e o mais monstruoso (deinoz). O homem é concebido assim mesmo: na sua inquietante estranheza inicial, estranheza de si próprio, do mundo e da Terra que desbrava com a ajuda dos arados, mas que não salvaguarda mais, segundo a visão original de Sófocles que aqui confrontamos.

 

Para além destes significados atribuídos ao termo grego (deinoz/deinoteron), outros devem ser, ainda, salientados para completarmos a nossa análise etimológica, a saber: a) Hölderlin (principal influenciador da interpretação/tradução heideggeriana e hodierna) e Brecht, refere G. Steiner, em Antígonas[19], traduzem deinoteron  por «o que é misterioso», «o que é estranho», «o que é monstruoso» ou «inquietante» no sentido do significado do termo alemão «Unheimlich», expressões/conceitos endogenamente familiares ao universo romanesco‑filosófico de Vergílio Ferreira que gira basicamente em derredor da inquietude decorrente desse estado de interrogação, de dúvida, de mistério e de estranheza permanentemente presentes no seu espírito, sempre preocupado com o estado o Mundo e o modo de ser do Homem perante o Mundo e o Destino (como temos vindo a salientar ao longo do presente trabalho); b) R. Otto, em O Sagrado[20] , sugerindo-nos que traduzamos deinoz (relativamente ao qual deinoteron é o adjectivo comparativo), por «desmedido», «enorme», «excessivo» e «extraordinário», conduz-nos a conceber deinoteron como algo que «ultrapassa toda a medida pela sua natureza ou proporções», como aquilo que entra no domínio da estranheza e da desmesura. Assim interpretado, deinoz, observa o autor interpretando Goethe, apresenta-se como o «monstruosamente inquietante e o monstruosamente terrível».

 

A consonância do conjunto de ideias expostas com o pensar de Vergílio Ferreira em Alegria Breve[21], parece-nos notória, quando o autor fala do homem que se encontra horrorosamente só e em estado de sofrimento, no qual toda a solidão do mundo penetrou. O homem eivado de um orgulho triste, o homem que do desastre universal se ergue, enorme, para depois permanecer, trémulo, no mais profundo silêncio do mundo e, neste sentido, é «Unheimlich», não se apresentado somente como o «mais inquietante, mas quiçá, e de uma forma mais radical, como o «fora-do-Ser», o «fora-de-casa» e, a limite, o «fora‑da‑identidade», tal como sugere explicitamente Heidegger e como se pode ler, de uma forma, menos explícita, na escrita de Vergílio Ferreira, não somente no romance supra citado, mas também em Invocação ao Meu Corpo ou em Até ao Fim [22](1987). É, ainda, essa mesma figura de homem, desenhada nos contornos deste contexto, que transporta a mulher num lençol, já morta, e que a Terra exige com violência, que ouve o silêncio, que se sente disperso, irisado em espaço e, ao mesmo temo, íntegro e puro, qual Antígona ressuscitada.

 

É, ainda, esse mesmo homem, Vergílio Ferreira, a Humanidade, que já sentiu que o mundo estava a desaparecer diante de si, que tentou vencer o muro da morte para lhe encontrar significação. A morte de que sempre se tem medo, ou, pelo menos, se guarda respeito. A morte, esse outro enigmático e intrigante, assombrosamente desejoso e fascinante. E se a morte real nos apavora, mesmo que pensemos apenas na morte dos outros, somos inevitavelmente atraídos por ela quando a entendemos noutro contexto, quando a vemos de outro modo: como ficção.

 

Mesmo quando passamos para este nível de contextualização, a morte (a nossa ou da do outro) é sempre uma interrogação (embora seja ao mesmo tempo a única certeza absoluta de que dispomos, porque não é contingente ou relativa, mas categoricamente implacável), e as interrogações não têm resposta, a não ser numa religião, na sacristia, no confessionário ou num partido político.

 

Isabel Rosete

                                                                                     Outubro de 2006

____________________________ 

[1] A este propósito, declara Vergílio Ferreira ao Jornal Expresso, de 17 de Outubro de 1992: (...) «nós não podemos impor o mito; ele é que tem de nascer de dentro de nós e impor-se depois por si próprio. Vivemos numa época cuja nota dominante é a crise dos mitos: não temos mitos nenhuns. Há os sub-mitos: o Benfica, ou o partido político que ganhou as eleições, ou perdeu ...».

[2]

[3] Vergílio Ferreira, Para Sempre, p. 13.

[4] Vergílio Ferreira, Para Sempre, p. 13.

[5] Idem, p. 11.

[6] Idem, p. 28.

[7] Idem, Ibidem, p. 28.

[8] Vergílio Ferreira, in Revista Ler Nº2, Primavera de 1988.

[9] Idem, Ibidem.

[10] Sófocles, Antígona, vv. 332 – 333.

[11] A tradução apresentada por Heidegger concernente aos versos supra citados é a seguinte: «Múltiplo o inquietante (deina), nada contudo para além do homem, mais inquietante (deinoteron)».

Comparando outras traduções com aquela que nos é sugerida pelo filósofo de Sein und Zeit, podemos verificar que a imagem que nos transmitem da natureza humana é bem distinta, senão mesmo contraditória àquele que Heidegger viu brotar nos versos supra citados e igualmente distinta da que nos é proposta por Vergílio Ferreira, pelo que igualmente dissonantes a concepção de homem perfilhada por estes dois pensadores. A divergência provém, tão-só, como já anunciamos no texto, das dissemelhantes interpretações do termo deinoteron, que nas traduções abaixo indicadas, bem como na apresentada por Vergílio Ferreira, é tomado, unanimemente, como sinónimo «maravilhoso», «prodigioso» ou «extraordinário», termos que podemos considerar conceptualmente correspondentes e, por conseguinte, as respectivas concepções de homem adoptadas por estes autores, uma vez que, como já tivemos oportunidade de chamar a atenção, a concepção ou visão do homem está directamente dependente da interpretação/tradução do termo em análise: a) «Il est bien merveilles (deinoteron)en ce monde, il n’en est pas plus grand que l’homme» (texto traduzido por Paul Mazon, Paris, Les Belles-Letres, 1962, p. 86);

b) «Many Wonders there be, but naught more Wondrous (deinoteron) than man» (texto traduzido por F. Storr, Havard University Press, 1981, p. 341);

c) «Hi há moltes meravelles (deinoteron), i no n’há de mès gran que l’homme» (texto traduzido por Carles Riba, Barcelona, Fundació Bernat Metge, 1951, p.136.

[12] Vergílio Ferreira, Alegria Breve, p. 6.

[13] Vergílio Ferreira, Alegria Breve, pp. 7 – 8.

[14] Cf. Idem, Ibidem, p. 20.

[15] Cf. Idem, Ibidem, p. 24.

[16] Vergílio Ferreira, Alegria Breve, pp. 28 – 29.

[17] Cf. Idem, Ibidem, p. 34.

[18] Cf. Idem, Ibidem, p. 35.

[19] Cf. George Steiner, Antígonas, pp. 191 – 192.

[20] Cf. R. Otto, O Sagrado, pp. 69 – 70.

[21] Cf. Vergílio Ferreira, Alegria Breve, pp. 7- 8.

[22] Até ao Fim, lê-se na Revista Ler, Nº3, Verão, de 1988, é um «romance que, de certo modo, continua a temática de Para Sempre, representa o olhar de um escritor sobre a sua própria carreira literária, sobre uma civilização em desaparecimento, sobre as relações entre homem e mulher, entre pai e filho. O personagem principal conversa com o filho (questão a que já aludimos no nosso texto) morto durante uma tentativa da assalto terrorista a uma embaixada estrangeira,

ao mesmo tempo que a memória da antiga mulher o acompanha permanentemente. Sentado à beira-mar, o narrador confunde-se com o próprio autor, Vergílio Ferreira, e com as inquietações mais prementes que a sua carreira de escritor tem colocado até agora»

 

Página anterior  Página inicial  Página seguinte