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Maria Júlia M. Gravato, Um presente de Natal. In: “Farol”, 1958, n.º 1, págs. 9 a 11.

Um presente de Natal

por Maria Júlia M. Gravato
1.º prémio - Prosa - 2º Ciclo

AINDA no céu luziam as últimas estrelas, já a Ti Ana moleira andava atarefada, de um lado para o outro, tratando das lides caseiras. O Ruço já tinha a sua gavela de palha, na manjedoura, pois os dias em Dezembro são curtos e a farinha tinha que ser distribuída, cedo, aos fregueses, para as filhós do Natal.

A Ti Ana, depois de distribuir farta ração de milho pelas galinhas e ter engolido, sentada ao lume, a sua tigela de migas de boroa com café, cruzou o velho xaile no peito e foi direita ao moinho.

De caminho ia estimulando o burrito:

— Eh, Ruço! Anda depressa, mariola I Está frio cá fora, mas quem trabalha aquece. Olha que a Sr.ª Morgada fica zangada se lhe levas tarde a farinha.

Mas, de repente estacou. Pareceu-lhe que ali perto chorava uma criança. Seria impressão dos seus ouvidos?... Mas não. Era realmente uma criança, que os seus olhos, já afeitos à luz indecisa da madrugada, descobriam naquele embrulho, junto à porta do moinho. Pegou-lhe com jeito e murmurou:

— Querido anjinho! Quem seriam os desalmados que assim te abandonaram numa noite destas junto ao moinho duma pobre mulher, que não tem meios para cuidar de ti?! Sempre há gente no mundo!... Quanto eu desejei ter um filho e nunca o tive e esta mãe, a quem Deus presenteou com um anjo destes, abandona-o assim! Malvada!... Mas, mudando de tom, concluiu:

— Só Deus sabe por que esta criança aqui se encontra e só a Ele compete julgar. Por isso, o que tenho a fazer, é cuidar dele, já que Deus mo enviou como presente de Natal. Mas que lhe hei-de eu dar? E tão pequenino!... E, iluminada por uma bela ideia, disse: — A cabrinha branca será a sua ama.

Com a criança bem aconchegada a si, entrou na cozinha e, para a ver melhor, aproximou-se da candeia, que tremeluzia pendente da chaminé.

— Ah! — exclamou — é um menino. As roupas são de pessoa rica e ao pescoço tem uma medalha! Hei-de levá-lo ao Sr. Abade / 10 / para o baptizar e há-de chamar-se João, disse ela lembrando-se do marido.

Já o Sol ia alto no horizonte, quando a Ti Ana saiu em direcção à aldeia, com o burro carregado de sacos, no meio dos quais aconchegou o pequenino, que dormia embalado pelo andar cadenciado do burrito.

Nesse dia, no povoado, não se falou noutra coisa, fazendo-se mil conjecturas. Várias pessoas, entre as quais a Sr.ª Morgada, quiseram ficar com o pequenino, mas a Ti Ana a todas respondia:

— Se Deus mo enviou, devo ser eu quem fica com ele. No meu moinho há uma cabrinha branca e farinha da mais fina para o sustentar. Olha agora!

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Passou-se algum tempo. João era agora um rapazinho de dez anos, que frequentava a escola da aldeia, onde, pela sua inteligência e bondade, era estimado por todos. Nas horas vagas ajudava a Ti Ana, indo muitas vezes, ele próprio, distribuir a farinha pelos fregueses. Certo dia, regressava da aldeia, já de noite, quando, perto dele, sentiu o tropear dum cavalo. Tinha chovido muito nos dias anteriores e os caminhos estavam escorregadios. O Ruço, a quem eles eram familiares, ia-se mantendo; mas o cavalo, que nessa altura subia um caminho estreito e pedregoso, escorregou e caiu juntamente com o cavaleiro. João, que ia um pouco à frente, voltou para trás e correu em seu auxílio muito aflito:

— O senhor magoou-se muito?

O homem gemia. Estava muito contuso. Com grande sacrifício, lá conseguiu levantar-se auxiliado pelo pequeno, que dizia:

— Se pudesse andar mais uns passos, descansaria no moinho e a minha mãe trataria do senhor. O seu cavalo também se magoou, mas creio que não tem nada partido. Não o pode conduzir, mas eu vou num pulo levar os sacos ao moinho, que já se avista daqui e volto já com o Ruço para o levar.

O senhor agradeceu e ficou pensativo a olhar João, que subia agora o último atalho. O rosto ensombrou-se-Ihe de melancolia.

— Deve ter dez a doze anos. — murmurou. Que bondade e que inteligência!

Apesar das dores que sentia, perdeu-se em não sei que / 11 / pensamentos e, estava tão profundamente abstracto, que nem deu pela chegada do pequeno, que o convidava já a subir para o burrito.

Depois de muitos esforços, conseguiu montar e, daí a alguns minutos, encontrava-se sentado diante duma tigela de caldo fumegante, que a Ti Ana, depois de o tratar com os remédios caseiros de que dispunha, lhe pusera na frente.

João comia a seu lado e, depois de cear e dar as boas-noites à velha moleira, dirigiu-se para o seu quarto, que, naquela noite, partilharia com aquele senhor.

O desconhecido entrou também no quarto e, quando João tirou a jaqueta para se deitar e deixou a descoberto a medalha que trazia sempre ao pescoço, soltou um grito. A moleira correu aflita e sem pensar no que fazia, abriu rapidamente a porta e viu o desconhecido abraçado ao pequeno, chamando-lhe «seu querido filho». Ante o pasmo da velha, ele contou a sua história:

Dez anos antes, viera com sua família passar o Natal numa quinta, que possuía algumas léguas distante dali. Sua mulher tinha nessa altura um filhinho recém-nascido e queria baptizá-lo na mesma igreja onde ela própria se baptizara.

Nessa noite, porém, a criança fora-lhe roubada e, por mais esforços que fizessem, não conseguiram encontrá-la. Sua mulher ia morrendo de desgosto. Ele perdera o gosto pela vida, pois perdera a esperança de jamais encontrar o seu filho. Agora porém, recebia, passados dez anos, o recado dum ex-caseiro da quinta para que fosse vê-lo. Encontrou-o moribundo, pedindo que lhe perdoasse, pois fora ele quem lhe roubara o filho. Por incompetência e falta de honestidade tinha sido despedido algum tempo antes e jurara vingar-se. Por isso, quando viu a criança, foi a ela que escolheu para vítima do seu ódio. Roubara pois o menino, mas, não se achando com coragem para o matar, resolveu ir abandoná-lo muito longe.

Era, pois, em busca do seu filho, segundo as indicações do seu ex-caseiro, que ele se encontrava nessa noite próximo do moinho. Quisera Deus que fosse o seu próprio filho que o socorresse naquele acidente.

Às exclamações da velha Ana, que se lamentava por ir perder o seu querido João, o senhor respondeu:

— Não se aflija, porque a senhora irá connosco.

A Ti Ana, entre o amor que tinha ao seu moinho e o que professava pelo seu filho adoptivo, não hesitou.

Partiram todos três, não esquecendo o velho Ruço, que tão activamente tinha tomado parte na história.

Maria Júlia M. Gravato

           

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Data de inserção
10-11-2007