A
Gaivota Carlota e o Pilrito Carlitos
(Conto
sobre a amizade entre espécies diferentes —
entenda-se, entre
indivíduos que têm um espaço, um percurso comum, mas são
diferentes na raça, no tamanho, na cor, nos hábitos, nos costumes, na alimentação —
e que, por vezes, necessitam de fazer caminhadas conjuntas, com
o mesmo objectivo, mas com dificuldades distintas para se
conhecerem e se compreenderem. No fundo, esta fábula é uma
alegoria da humanidade actual!).
Sabem
como é: vivemos no mesmo prédio, mas não conhecemos os nossos
vizinhos. A propósito... conheces o teu vizinho do 1º Esquerdo? Pois então...
A
gaivota Carlota também não conhecia o Pilrito Carlitos. No
entanto, ambos moravam no mesmo Sítio: uma fantástica baía na
costa norte da Noruega, bem pertinho do Círculo Polar Árctico.
Ali tinham passado o Verão. Um Verão maravilhoso, diga-se.
Peixe de várias espécies, muitos tipos de minhocas e outros
vermes, havia-os ali em abundância para se poderem alimentar e
armazenar a energia necessária para a grande viagem que os
levaria ao Sul. Eram 5000 km de voo quase contínuo, dia e
noite, praticamente sem paragens. Ufa! Uma canseira!
Antes
que nos cansemos, voltemos à história...
Já
quase no fim do Verão, em Setembro, certa manhã, começou a
sentir-se uma brisa mais fresca, vinda do Norte; nos dias
seguintes, algumas nuvens mais carregadas surgiram também a
correr rapidamente pelo céu. As aves pareciam então mais
agitadas, inquietas; quase ao mesmo tempo, preparavam-se para a
grande viagem. Era tempo de partir: o Outono estava a chegar.
Os
primeiros a levantar voo foram os gansos selvagens, talvez por
serem mais gordos e mais pesados, ou por voarem a grandes
alturas e serem muito numerosos; depois, partiu o bando da
Gaivina Rabina, o do Marrequinha Fatinha, o do Borrelho
Zarelho... enfim, uma a uma, espécie a espécie, todos rumaram
a Sul. Bom, nem todos...
A
Gaivota Carlota andava muito entretida nesses dias. Descobrira
que, acompanhando os barcos de pesca e sendo persistente nos
seus gritos e acrobacias, acabava por atrair a atenção dos
pescadores e ganhar o seu quinhão de arenque. Assim, distraída
e de barriga cheia, foi ficando para trás; descobriu, certo
dia, que era a única gaivota na baía. Ao Pilrito Carlitos
quase aconteceu o mesmo. Como foi o último a nascer da segunda
ninhada dos seus progenitores, necessitava de mais tempo para
ganhar a tal energia para a viagem. E foi ficando até ao limite
dos dias, antes que viessem as primeiras neves de Outubro.
Carlota
decidiu finalmente partir. Pousada num penedo frente à baía,
olhava o céu atentamente; decidida, começou a contar
mentalmente até três; bateria as asas com força, elevar-se-ia
nos ares, daria uma última miradela para trás e lançar-se-ia
na aventura do grande voo até S.
Jacinto, Aveiro, Portugal, local que já conhecia de
outras migrações. Um, dois, tr...
—
Olá! Ainda por aqui?!
Olha que os da tua espécie já foram todos embora! Atrasaste-te?
Carlota
olhou para a figurinha que estava a falar com ela: um pilrito,
um limícola, daqueles que comem vermes e insectos, enfim, um
passarito...
—
E tu? Não devias ter partido também? O que ficaste a fazer?
—
Atrasei-me... mas precisava de ficar mais uns tempos. Fiquei
para ganhar mais peso e mais resistência....
Levantou-se
nas patitas, encheu o peito de ar e disse:
—
Estou pronto para a partida! Já agora, posso ir contigo?
—
Não, não podes! Eu voo mais alto e mais depressa do que tu.
Ias atrasar-me e atrasada já eu estou. Além disso, nunca se
viu uma gaivota e um pilrito... O que diriam as minhas amigas se
me vissem juntos? Haveria risota para todo o Inverno.
—
Ora aí está! Era um Inverno divertido. Podíamos ainda
conversar durante a viagem, sei lá... fazíamos companhia um ao
outro. O tempo até
passava mais depressa!
—
Não, não quero! Tu fazes a tua viagem, eu faço a minha!
E
dito isto, disse “três” , bateu as asas e afastou-se pelo
espaço fora.
Carlitos
ficou decepcionado. Não compreendia porque não podia fazer
companhia à... à ... Como era mesmo o nome dela?...
—
Vou perguntar-lhe!
E
lançou-se em perseguição da Gaivota.
—
Olha lá! Não me disseste como te chamas. Eu sou o Carlitos. E
tu?
—
Carlota —
disse ela sem olhar para ele.
—
Carlota! Vá lá, Carlota... Tu bates as asas um pouco mais
devagar, eu um pouco mais depressa e vais ver que é mais agradável
a nossa viagem. Não sei porquê, mas até simpatizei contigo...
A
Gaivota não lhe respondeu. Na verdade, não lhe agradava a
presença do Pilrito.
Muitos
quilómetros adiante, depois de muito silêncio e de muita solidão,
Carlitos, ofegante, mal conseguiu articular:
—
Obrigado... Carlota, por teres voado mais devagar e teres
esperado por mim...
Ela
surpreendeu-se: não se tinha apercebido de que diminuíra o
voo; ia agora a um ritmo muito lento... e sentia-se tão
cansada...
Estava
na hora do repouso...Olhando para baixo, viram umas escarpas
rochosas e, em voo picado, lançaram-se à procura de abrigo
para essa noite. Os lugares estavam já muito ocupados e foi,
por isso, com alguma dificuldade que encontraram poiso para
adormecer. Mesmo assim, o sítio escolhido, estreito e
inclinado, mal dava para o Pilrito quanto mais para a Gaivota.
—
Se tu te chegasses um pouco para a direita, eu punha a pata aqui
e já cabíamos os dois —
dizia o Carlitos com ar sabedor.
—
Pois... tu no abrigo e eu ao vento. Espertalhão!
—
Nada disso! —
resmungou o Carlitos com alguma irritação. —
Porque não experimentas? Não vês que esse tufo de ervas
quebra o vento? E já agora que esta pedra está quase solta, se
lhe desses com o teu bico, ela soltava-se e eu caberia no
buraco. Ficávamos lindamente!...
—
E não te calas? Estou cheia de sono...
No
entanto, olhando de soslaio como as gaivotas sabem fazer, mediu
a trajectória da queda da pedra (não fosse atingir alguém) e,
com um golpe rápido, arrancou-a do sítio.
—
Carlota, tu és o máximo!
—
É... é... bem me levas.
O
Carlitos saltitou para a cavidade, a Carlota ajeitou-se na saliência
e adormeceram.
Os
dias foram passando e os países também: Noruega, Dinamarca,
Holanda, Bélgica, França... e a Península Ibérica estava à
vista. Na cabeça dos dois companheiros só havia uma palavra:
chegar! E já faltava pouco... três dias... dois, se o vento
continuasse a soprar de nortada. Seria assim: um dia para as
rias galegas e outro para a ria de Aveiro. Ali chegados... Ah!
que boa vida... comidinha... descanso... conversa... e mais
comidinha... e mais descanso...
Carlitos
olhou para cima, onde Carlota voava. Tal como ele, estava mais
magra. Era do esforço da viagem. Também andava mais impaciente
e ansiosa. Tinham tido até algumas discussões pelo caminho. Ou
porque o sítio de pernoita não era do agrado de ambos, ou
porque as velocidades não eram as mesmas, ou porque já estavam
fartos um do outro. Quase mesmo que se separavam na baía de
Arcachon! A coisa esteve feia! A Carlota até arrancou uma pena do rabo ao
Carlitos!!!
Fizeram
as pazes, enterraram a zanga e decidiram continuar. Afinal,
tinham concluído que tudo era motivado pelas diferenças que
havia entre eles. A tolerância era (e foi) a solução. Se
tinham que fazer o mesmo percurso, porque não juntos? Além do
mais, reconheceram que nem sempre tinham que estar de acordo
sobre tudo e que nem isso podia ser impeditivo da sua amizade.
A
costa ibérica aproximava-se cada vez mais. Carlitos e Carlota
voavam agora quase a rasar as ondas, aproveitando as correntes térmicas.
De repente, por alturas do Cabo Finisterra, os ventos começaram
a soprar de Sul. “Mau sinal” pensou a Carlota. "Isto
atrasa-nos bastante”, gritou para o Carlitos ao mesmo tempo
que planava ao seu lado. “E se fôssemos para terra descansar?
Talvez o vento acalme durante a noite e amanhã possamos partir
sem problemas”, alvitrou o Pilrito. “Boa, vamos então!
Conheço por ali umas pedras que costumam ter alguma coisa para
petiscar. Para mim e para ti”, disse a Carlota ao mesmo tempo
que guinava para terra.
Olhando
para baixo, Carlitos notou uma linha negra que mais adiante se
alargava numa enorme mancha escura.
—
Hei! O que é isto? Já
viste estas manchas pretas? Que te parece?
—
Sei lá! Parece aquilo a que os homens chamam crude. Cuidado! Não
lhe toques nem te aproximes demasiado, pois podes ficar preso e
será o teu fim. Nem tu sabes o que eu já vi! —
adiantou a Carlota com ar sério.
—
O que foi? Conta!
—
Mais logo, quando descansarmos.
As
pedras eram mesmo como a Gaivota tinha dito. Bastava levantar um
pouco as algas e lá estava o petisco: o jantarinho. Depois dos
papos bem cheiinhos, Carlota contou que, de vez em quando, quase
sempre por negligência dos humanos, os grandes barcos
transportadores de petróleo bruto, ou crude, ora afundavam ora
encalhavam, provocando enormes desastres ambientais. Carlota
enumerou as espécies de peixes e aves que mais sofriam com este
flagelo. Falou das marés negras, das praias sujas, do desespero
dos pescadores, do trabalho e do esforço que era necessário
para remediar os efeitos destas tragédias. Por fim, entre
recriminações à estupidez dos humanos, ambos adormeceram,
aconchegados um ao outro, com o barulho do mar em pano de fundo.
Porém, a noite reservava-lhes uma grande surpresa.
Carlitos
notou, ao lusco-fusco da madrugada, que se deixara de ouvir o
barulho do mar. Acordou a Carlota estremunhado e apontou-lhe a
beira da água. Uma larga faixa de crude cobria as rochas onde
no dia anterior se tinham alimentado. Tudo era negro, para norte
e para sul, até onde as suas vistas alcançavam.
Carlitos,
curioso e imprudente, foi descendo as rochas para ver melhor
aquelas manchas. Carlota, do alto, gritou-lhe que saísse dali,
que não se aproximasse. Tarde demais. O Pilrito escorregou nos
limos, ainda bateu as asas, mas as suas pernas já estavam
irremediavelmente presas no crude. Ao debater-se para sair,
sacudindo as asas, ainda se afundou mais, estando agora embebido
naquela massa pegajosa, nauseabunda.
Carlota
estava petrificada, em choque. Tudo fora tão rápido que nem
tivera tempo de reagir, para além dos gritos de aviso.
Carlitos
piava aflitivamente por socorro. “Calma, está quieto, não
resistas... é pior. Espera, mexe-te devagar”, gritava-lhe
Carlota, em desespero. Mas Carlitos não a ouvia. Freneticamente
tentava sair daquela armadilha que o prendia, que lhe ia
tolhendo os movimentos.
O
dia correu lentamente. Carlota não arredava da companhia do seu
amigo. Chegou a noite e não havia solução para resolver
aquela tragédia. No dia seguinte, exausto, Carlitos pareceu
desfalecer. Com fome e sede, ia esmorecendo e perdendo forças
rapidamente.
Outro
dia se passou e a situação piorava. Carlitos já não se
mexia. Mal abria os olhos e respirava apressadamente. Carlota,
de uma poça de água próxima, ia-lhe matando a sede, deixando
pingar, do seu bico, a água que mantinha Carlitos vivo. Tentou
ainda dar-lhe os vermes de que ele tanto gostava, mas Carlitos já
não tinha qualquer reacção. “Tenho que procurar ajuda. Não
sei como ou onde, mas tenho que ir” pensou Carlota. Levantou
voo e, logo que ganhou altura, viu um grupo de humanos que, de
fato branco, esquadrinhava as rochas. Dirigiu-se a eles e fez
tamanho banzé, tanta gritaria, que atraiu a sua atenção e
conseguiu convencê-los a segui-la. Finalmente, um dos humanos
retirou Carlitos, desfalecido, da massa de crude.
—
Está vivo? —
perguntou um dos humanos.
—
Parece que sim... mas não sei se se safa. —
respondeu o outro.
Carlitos
foi depositado numa caixa e transportado para um Centro de
Reabilitação de Aves, já em território português. Carlota
seguiu o camião, lá do alto, até ao destino. Por nada deste
mundo perderia o rasto do seu companheiro.
—
Eh, Manel! Já viste que esta gaivota não nos larga a porta? Já
para aqui anda há duas semanas.., ou mais! —
afirmou um tratador do centro de recuperação de aves.
—
É... até parece que tem aqui alguém internado... —
respondeu o outro tratador.
—
Nada mais certo —
pensou a gaivota —
O meu amigo Carlitos
está aí e eu não saio daqui sem ele.
Espreitando
pela janela do Centro, Carlota assistiu angustiada à lenta
recuperação de Carlitos. Foi lavado, aquecido, alimentado,
enfim, tratado com toda a atenção que merece uma ave em
sofrimento. Finalmente, alguns dias depois, dava mostras de
querer superar esta situação complicada.
Uma
vez mais, o tempo foi passando. Carlota desesperava pelo seu
amigo. Há já um mês que deveria estar na ria de Aveiro, em
invernada, a alimentar-se e a arranjar namorado para o Verão,
mas nada; do seu amigo só as vistas fugazes através da
janela...
Então,
numa bela manhã, notou que algo se iria passar. Havia movimento
de carros, de caixotes e de algumas pessoas que não eram
habituais por ali. Horas depois, estavam efectivamente a retirar
os animais do centro. Para a Liberdade? Sim, para a Liberdade e,
entre eles, já vira o seu amigo Carlitos!! Viva! Ia ter o seu
amigo de volta!!!
Carlitos
e Carlota não se beijaram nem se abraçaram, porque as aves não
fazem essas coisas, mas disseram que tiveram saudades um do
outro, que foram momentos e dias difíceis para ambos, mas que
se sentiam vivos e felizes por estarem novamente juntos.
E
partiram de novo para o Sul.
A
ria de Aveiro estava diferente. Pareceu-lhes mais devassada
pelos humanos: mais poluição, sobrepesca, demasiados barcos de
recreio e invasão dos espaços mais recônditos pelos
merendeiros de domingo. Ainda assim, era o lugar onde
regressavam todos os anos, juntamente com tantas outras espécies,
residentes ou vindas de Norte ou de Sul, que aqui encontravam
abrigo e alimento: patos, narcejas, mergulhões, borrelhos, aves
dos caniços, pica-peixes, garças, galeirões...
Carlota
e Carlitos revêem-se de quando em vez. Afinal, ninguém se riu
de os ver chegar juntos, nem ninguém quis saber porque
demoraram tanto a chegar. Ambos já encontraram companheiro para
o Verão. Um dia, ouvindo o chamamento do Vento Norte, hão-de
juntar-se na praia da Reserva de S. Jacinto e partirão. Não
dois, mas quatro...
Boa
viagem !!!
Autor: LARUS
ARGENTATUS
Maria
João Pinho Caseiro
Abril/2003
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