Na escola, Marianinha tinha ouvido as
outras meninas perguntarem à professora quem dava os
presentes que apareciam nos sapatinhos deixados sobre o
fogão na noite de Natal... Não que recebesse muitos, mas
constituíam sempre a maravilha de todos os natais,
sentimento que só passava quando era confrontada com os
presentes dos outros meninos que os exibiam, ou deles se
vangloriavam, na hora da brincadeira. Menina de família
remediada num bairro de gente com posses ou muito
endinheirada, o sentimento inicial de maravilha esbatia-se e
acreditava no que os pais lhe diziam: era má, o Menino Jesus
castigava-a e não a recompensava como fazia aos outros
meninos que tinham pinheiros com velinhas, cheios de luz e
um Pai Natal ou um presépio com muitas figurinhas de barro.
Marianinha ficava muito triste porque não achava que esses
meninos se portassem sempre assim tão bem... Percebia mesmo
que encontravam um secreto prazer em minimizar ou destruir
os brinquedos que a madrinha ou os tios lhe ofereciam pela
Páscoa, pelos anos, ou durante o tempo da festa anual da
cidade. Cruéis, os companheirinhos de brincadeira chegavam a
fazer com que Marianinha chorasse e a mãe, vendo-a assim,
não a consolava e ralhava asperamente. O Menino Jesus raro
lhe dava brinquedos: deixava-lhe umas meias da moda, ou
tecido para a mãe lhe confeccionar um vestido, uma saia ou
um casaco, confecção caseira que levava às vezes tanto mais
tempo quanto a mãe entendia que a menina não ia
correspondendo às suas exigências de educadora. Como num
círculo vicioso, os meses passavam e o vestido ou o casaco
continuavam a ser apenas trapos dobrados a um canto do
compartimento que, além de ser o seu quarto de dormir e de
brincar, funcionava também como sala da costura. E sempre
tardava a autorização de calçar os sapatos novos, ou de usar
as meias que depois lhe caíam pelas pernas e se lhe
enrodilhavam nos calcanhares. Houve até uns malfadados
sapatos vermelhinhos, cujo cabedal da biqueira tinha
esfolado logo no dia em que os calçara. Cedo ficavam
pequenos e faziam doer tanto os seus pés de menina cheia de
vida, que não parava quieta e gostava muito de jogar à
macaca, jeito de brincar considerado de mau gosto porque
estragava os sapatos e desfazia as solas. Entretida com a
brincadeira, se não acorria logo que a mãe a chamava, os
magros brinquedos, oferecidos pelos tios ou estranhos, eram
pisados raivosamente como castigo – uma espécie de vingança
sobre ela, talvez por ter saúde, ao contrário do irmãozinho,
que, com três anos, era um bebé de colo que não andava, não
falava, não brincava, e só chorava de vez em quando.
Na falta de brinquedos habituara-se a
utilizar pequenos seixos, pauzinhos, bocadinhos de faiança
partida, folhas e flores a que atribuía uma identidade e
cuja personalidade desenvolvia pelo poder da imaginação, em
diálogos e situações que lhe proporcionavam o gozo de sonhar
uma outra vida diferente daquela que conhecia e os meninos
vizinhos conheciam, aqueles mesmos de que a mãe afirmava
portarem-se sempre bem, meninos com muitos brinquedos,
vianinhas ao lanche, habituados a chupar cacaulinas
embrulhadas em papel vermelho e brilhante. E que também
comiam muito feijão... A menina gostava muito de feijão e
das poucas vezes a que a mãe lhe achara graça fora quando,
com um tachinho seguro na mãozita gordinha, pedira à
vizinha: “Jóquininha, dê-me um bocadinho do seu feijão”. Num
dia de Setembro quente, quando atravessara o terraço,
olhando para o alto, para a parreira que ensombrava o
recanto, exclamara enlevada para os grandes cachos escuros
que pendiam da ramada “Hi! Tantos feijões!“, o que arrancara
gargalhadas ao casal de vizinhos. Pelo fim do verão, quando
provara os bagos sumarentos, admirou-se muito por serem
docinhos... Foi preciso ir pela primeira vez à aldeia, a
casa de uns amigos agricultores, num Outono suave e
ensolarado, para perceber que não eram feijões, mas uvas
que, depois de vindimadas eram deitadas num grande tanque de
granito e pisadas pelos homens que cantavam e diziam
pilhérias que faziam rir muito as mulheres e corar as
raparigas. Curiosa e admirada, Marianinha não percebia
porquê e olhava com olhos extasiados todo aquele novo mundo
de odores, cores e formas tão diferentes, paraíso de
liberdade em que predominava o cheiro adocicado do mosto
misturado ao aroma acre de corpos mal lavados, suados,
sujos, mas onde lhe era permitido, sem grande zanga dos
adultos, correr descalça pela terra acinzentada e quente, um
tanto indiferente às picadas nos pés enfim livres de
sapatos, mas pouco habituados a sentir o restolho, os
espinhos e as pedritas dos caminhos. Exultava ao ir à fonte
do povo com um pucarinho de barro e meter os pés ulcerados
nos regos e poças de água que reflectiam a luz ofuscante do
sol. Então via-se rodeada pela curiosidade das mulheres que
lavavam a roupa encardida nos tanques da aldeia, ou das
moçoilas que carregavam os cântaros de barro vermelho que
enchiam na bica ou na fonte de mergulho onde a água era bem
fria... Nela nadavam escuras sanguessugas, bichos estranhos
e repugnantes que atraíam a curiosidade das crianças por se
agarrarem às ventas do gado quando, depois do sol adormecer
lá longe, iam descansadamente beber à fonte onde a água
cantava. Menina da cidade, descobriu um mundo de maravilha
usufruído por breves dias, no tempo das colheitas, longe dos
gritos e exigências duma mãe quase sempre zangada e de um
pai que parecia ausente.
O Menino Jesus fizera-se rogado naquele
ano... A menina chegara a casa e muito orgulhosa, muito
convencida, falou à mesa do almoço, perante a estupefacção
dos adultos: “A minha professora disse que não é o Menino
Jesus que dá as prendas, mas os pais...” Logo choveram
comentários: a professora estava a macular a inocência das
crianças o que resultava numa pouca-vergonha. Indignada a
mãe foi-a avisando de que o Menino Jesus podia castigá-la
por não acreditar nele e não lhe trazer prendas naquele
Natal. No dia seguinte, junto das colegas e da professora, a
menina defendeu a opinião dos pais... e nunca mais esqueceu
o encolher de ombros de desprezo da professora, num rosto
sem sorriso, olhos baixos, manifestando o desinteresse
profundo por uma garota a quem não valia a pena conquistar
porque não tinha estatuto de menina da mamã. Ficara então na
dúvida entre a opinião de uns pais que lhe punham pimenta na
língua se mentia e a afirmação da professora que deixara
cair o caso preferindo não insistir. Para não ser a chacota
das companheiras, Marianinha passara a afirmar com elas que
eram os pais que punham as prendas na chaminé, ainda com
dúvidas que só se dissiparam quando, naquela manhã fria de
Dezembro, o sapatinho acordou vazio.... Indiferente àquela
desilusão infantil, a mãe afirmou triunfante que fora
castigo por ter negado o Menino Jesus. Nesse ano, ele não se
deu ao trabalho de descer pela chaminé farrusca, cuja chapa
de ferro ajudara a limpar de véspera, ansiosa em acreditar
no milagre.... Na manhã de Natal, muito triste, Marianinha
ouviu o tio, irmão da mãe, comentar que era revoltante
aquela violência sobre uma criança, comentário que apanhou
no ar quando vinha no corredor e se fez silêncio ao entrar
na saleta onde se tomava o pequeno almoço, silêncio que
gritava mais do que se o ouvisse. Depois, pela tarde, quando
os primos lhe perguntaram pelas prendas do Menino Jesus, foi
com os olhitos marejados de lágrimas que confessou a custo
que o sapatinho não fora abençoado nesse Natal. A mãe
continuava a afirmar que tinha sido castigo...
Nessa noite, ao jantar, o tio
aconselhou-a a voltar a pôr o sapatinho na chaminé na noite
de fim de ano e alvitrou que escrevesse uma carta ao Menino
Jesus. É que sempre eram tantos os meninos... Marianinha não
sabia a direcção do Menino Jesus. Os adultos riram-se e uma
amiga da mãe aconselhou-a a enviar a carta para o Correio do
Céu... Então Marianinha escreveu e pediu coisas que a noite
de São Silvestre não concretizou, apesar dos sapatos da
família, engraxados para a ocasião, terem sido postos de
novo no fogão de lenha de torneiras de cobre dum dourado
mais nítido do que os sonhos que mal se atrevia a sonhar...O
Menino Jesus não veio. Não lhe deixou meias de lã cinzenta,
nem uma sombrinha de chocolate da Regina...
Marianinha teve assim a certeza de quem
presenteava em sua casa em nome do Menino Jesus. Tentou
sobreviver à decepção e, no intuito de agradar aos pais,
resolveu escrever uma carta que muito custou aos seus sete
anitos recém-alfabetizados. Usou mesmo a caneta de aparo que
deixava no papel alguns borrões de tinta... “ Meu Menino
Jesus: Escrevo-te para não te esqueceres de mim no outro
Natal. Desculpa se tenho sido má e teimosa, por arreliar a
mãezinha e o pai, porque gosto de brincar, não estou quieta,
sujo-me muito e não faço sempre os deveres da escola.
Manda-me por favor uma boneca que ande e diga papá e mamã. E
chocolates e caramelos e dá saúde ao meu mano. Desta que te
adora, Marianinha”. A ortografia fora amavelmente corrigida
pelo tio, irmão da mãe e a carta fora selada e metida na
ranhura do marco do correio numa vaga esperança de que o
pseudo Menino Jesus não fosse tão mau assim...
Em casa, com ar de riso nimbado de
compreensão, alguns amigos dos pais ouviram, daí em diante,
a menina contar a história duma manhã de Natal em que o
sapato mostrara a tristeza de não conter nem um simples
rebuçado. Se não tivesse havido filhós e muito frio nem
tinha parecido Natal... Aprendera a fazer o jogo dos
adultos, fingindo acreditar no milagre repetido a cada ano,
mágoa secreta que afinal lhe mostrara a diferença entre os
seus presentes e os dos vizinhos.
Cerca de um mês depois, já nem o Natal
lembrava, o carteiro trouxe uma encomenda acompanhada por
uma carta em letras meio apagadas, com maiúsculas e
minúsculas à mistura, com o remetente: Menino Jesus –
Correio do Céu. Achou tão estranho!... Quem é que lhe teria
escrito a fazer de conta?... A missiva ainda era menos
esclarecedora: acusava a recepção e dizia-lhe para ser
boazinha. Que tinha gostado de receber notícias. Enviava um
presentinho.
Os adultos reagiram à novidade em
alvoroço. O pai até alvitrou que talvez os serviços dos
correios tivessem uma secção para receber aquele tipo de
correspondência. Mesmo tendo-se esquecido de indicar onde
morava, alguém enviara a Marianinha umas palavras mal
dactilografadas a que juntara uma caixinha já violada de
bombons da Regina. Sobre a palhinha branca de papel
brilhavam meia dúzia de rebuçados de cores vivas, azul e
vermelho, enroupados em celofane...Nem sequer eram bombons.
Doeu aquele prolongamento de Natal!...
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Sete anos depois, numa tarde soalheira e sufocante de Verão,
a boneca sonhada apareceu por fim, lembrança magoada dum
Natal da infância suspenso no tempo, coado no tecido de que
as desilusões são feitas.
Helena Silva – Viseu, 2007
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