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Helena Silva


Aveiro


Carta ao Menino Jesus

 

Na escola, Marianinha tinha ouvido as outras meninas perguntarem à professora quem dava os presentes que apareciam nos sapatinhos deixados sobre o fogão na noite de Natal... Não que recebesse muitos, mas constituíam sempre a maravilha de todos os natais, sentimento que só passava quando era confrontada com os presentes dos outros meninos que os exibiam, ou deles se vangloriavam, na hora da brincadeira. Menina de família remediada num bairro de gente com posses ou muito endinheirada, o sentimento inicial de maravilha esbatia-se e acreditava no que os pais lhe diziam: era má, o Menino Jesus castigava-a e não a recompensava como fazia aos outros meninos que tinham pinheiros com velinhas, cheios de luz e um Pai Natal ou um presépio com muitas figurinhas de barro. Marianinha ficava muito triste porque não achava que esses meninos se portassem sempre assim tão bem... Percebia mesmo que encontravam um secreto prazer em minimizar ou destruir os brinquedos que a madrinha ou os tios lhe ofereciam pela Páscoa, pelos anos, ou durante o tempo da festa anual da cidade. Cruéis, os companheirinhos de brincadeira chegavam a fazer com que Marianinha chorasse e a mãe, vendo-a assim, não a consolava e ralhava asperamente. O Menino Jesus raro lhe dava brinquedos: deixava-lhe umas meias da moda, ou tecido para a mãe lhe confeccionar um vestido, uma saia ou um casaco, confecção caseira que levava às vezes tanto mais tempo quanto a mãe entendia que a menina não ia correspondendo às suas exigências de educadora. Como num círculo vicioso, os meses passavam e o vestido ou o casaco continuavam a ser apenas trapos dobrados a um canto do compartimento que, além de ser o seu quarto de dormir e de brincar, funcionava também como sala da costura. E sempre tardava a autorização de calçar os sapatos novos, ou de usar as meias que depois lhe caíam pelas pernas e se lhe enrodilhavam nos calcanhares. Houve até uns malfadados sapatos vermelhinhos, cujo cabedal da biqueira tinha esfolado logo no dia em que os calçara. Cedo ficavam pequenos e faziam doer tanto os seus pés de menina cheia de vida, que não parava quieta e gostava muito de jogar à macaca, jeito de brincar considerado de mau gosto porque estragava os sapatos e desfazia as solas. Entretida com a brincadeira, se não acorria logo que a mãe a chamava, os magros brinquedos, oferecidos pelos tios ou estranhos, eram pisados raivosamente como castigo – uma espécie de vingança sobre ela, talvez por ter saúde, ao contrário do irmãozinho, que, com três anos, era um bebé de colo que não andava, não falava, não brincava, e só chorava de vez em quando.

Na falta de brinquedos habituara-se a utilizar pequenos seixos, pauzinhos, bocadinhos de faiança partida, folhas e flores a que atribuía uma identidade e cuja personalidade desenvolvia pelo poder da imaginação, em diálogos e situações que lhe proporcionavam o gozo de sonhar uma outra vida diferente daquela que conhecia e os meninos vizinhos conheciam, aqueles mesmos de que a mãe afirmava portarem-se sempre bem, meninos com muitos brinquedos, vianinhas ao lanche, habituados a chupar cacaulinas embrulhadas em papel vermelho e brilhante. E que também comiam muito feijão... A menina gostava muito de feijão e das poucas vezes a que a mãe lhe achara graça fora quando, com um tachinho seguro na mãozita gordinha, pedira à vizinha: “Jóquininha, dê-me um bocadinho do seu feijão”. Num dia de Setembro quente, quando atravessara o terraço, olhando para o alto, para a parreira que ensombrava o recanto, exclamara enlevada para os grandes cachos escuros que pendiam da ramada “Hi! Tantos feijões!“, o que arrancara gargalhadas ao casal de vizinhos. Pelo fim do verão, quando provara os bagos sumarentos, admirou-se muito por serem docinhos... Foi preciso ir pela primeira vez à aldeia, a casa de uns amigos agricultores, num Outono suave e ensolarado, para perceber que não eram feijões, mas uvas que, depois de vindimadas eram deitadas num grande tanque de granito e pisadas pelos homens que cantavam e diziam pilhérias que faziam rir muito as mulheres e corar as raparigas. Curiosa e admirada, Marianinha não percebia porquê e olhava com olhos extasiados todo aquele novo mundo de odores, cores e formas tão diferentes, paraíso de liberdade em que predominava o cheiro adocicado do mosto misturado ao aroma acre de corpos mal lavados, suados, sujos, mas onde lhe era permitido, sem grande zanga dos adultos, correr descalça pela terra acinzentada e quente, um tanto indiferente às picadas nos pés enfim livres de sapatos, mas pouco habituados a sentir o restolho, os espinhos e as pedritas dos caminhos. Exultava ao ir à fonte do povo com um pucarinho de barro e meter os pés ulcerados nos regos e poças de água que reflectiam a luz ofuscante do sol. Então via-se rodeada pela curiosidade das mulheres que lavavam a roupa encardida nos tanques da aldeia, ou das moçoilas que carregavam os cântaros de barro vermelho que enchiam na bica ou na fonte de mergulho onde a água era bem fria... Nela nadavam escuras sanguessugas, bichos estranhos e repugnantes que atraíam a curiosidade das crianças por se agarrarem às ventas do gado quando, depois do sol adormecer lá longe, iam descansadamente beber à fonte onde a água cantava. Menina da cidade, descobriu um mundo de maravilha usufruído por breves dias, no tempo das colheitas, longe dos gritos e exigências duma mãe quase sempre zangada e de um pai que parecia ausente.

O Menino Jesus fizera-se rogado naquele ano... A menina chegara a casa e muito orgulhosa, muito convencida, falou à mesa do almoço, perante a estupefacção dos adultos: “A minha professora disse que não é o Menino Jesus que dá as prendas, mas os pais...” Logo choveram comentários: a professora estava a macular a inocência das crianças o que resultava numa pouca-vergonha. Indignada a mãe foi-a avisando de que o Menino Jesus podia castigá-la por não acreditar nele e não lhe trazer prendas naquele Natal. No dia seguinte, junto das colegas e da professora, a menina defendeu a opinião dos pais... e nunca mais esqueceu o encolher de ombros de desprezo da professora, num rosto sem sorriso, olhos baixos, manifestando o desinteresse profundo por uma garota a quem não valia a pena conquistar porque não tinha estatuto de menina da mamã. Ficara então na dúvida entre a opinião de uns pais que lhe punham pimenta na língua se mentia e a afirmação da professora que deixara cair o caso preferindo não insistir. Para não ser a chacota das companheiras, Marianinha passara a afirmar com elas que eram os pais que punham as prendas na chaminé, ainda com dúvidas que só se dissiparam quando, naquela manhã fria de Dezembro, o sapatinho acordou vazio.... Indiferente àquela desilusão infantil, a mãe afirmou triunfante que fora castigo por ter negado o Menino Jesus. Nesse ano, ele não se deu ao trabalho de descer pela chaminé farrusca, cuja chapa de ferro ajudara a limpar de véspera, ansiosa em acreditar no milagre.... Na manhã de Natal, muito triste, Marianinha ouviu o tio, irmão da mãe, comentar que era revoltante aquela violência sobre uma criança, comentário que apanhou no ar quando vinha no corredor e se fez silêncio ao entrar na saleta onde se tomava o pequeno almoço, silêncio que gritava mais do que se o ouvisse. Depois, pela tarde, quando os primos lhe perguntaram pelas prendas do Menino Jesus, foi com os olhitos marejados de lágrimas que confessou a custo que o sapatinho não fora abençoado nesse Natal. A mãe continuava a afirmar que tinha sido castigo...

Nessa noite, ao jantar, o tio aconselhou-a a voltar a pôr o sapatinho na chaminé na noite de fim de ano e alvitrou que escrevesse uma carta ao Menino Jesus. É que sempre eram tantos os meninos... Marianinha não sabia a direcção do Menino Jesus. Os adultos riram-se e uma amiga da mãe aconselhou-a a enviar a carta para o Correio do Céu... Então Marianinha escreveu e pediu coisas que a noite de São Silvestre não concretizou, apesar dos sapatos da família, engraxados para a ocasião, terem sido postos de novo no fogão de lenha de torneiras de cobre dum dourado mais nítido do que os sonhos que mal se atrevia a sonhar...O Menino Jesus não veio. Não lhe deixou meias de lã cinzenta, nem uma sombrinha de chocolate da Regina...

Marianinha teve assim a certeza de quem presenteava em sua casa em nome do Menino Jesus. Tentou sobreviver à decepção e, no intuito de agradar aos pais, resolveu escrever uma carta que muito custou aos seus sete anitos recém-alfabetizados. Usou mesmo a caneta de aparo que deixava no papel alguns borrões de tinta... “ Meu Menino Jesus: Escrevo-te para não te esqueceres de mim no outro Natal. Desculpa se tenho sido má e teimosa, por arreliar a mãezinha e o pai, porque gosto de brincar, não estou quieta, sujo-me muito e não faço sempre os deveres da escola. Manda-me por favor uma boneca que ande e diga papá e mamã. E chocolates e caramelos e dá saúde ao meu mano. Desta que te adora, Marianinha”. A ortografia fora amavelmente corrigida pelo tio, irmão da mãe e a carta fora selada e metida na ranhura do marco do correio numa vaga esperança de que o pseudo Menino Jesus não fosse tão mau assim...

Em casa, com ar de riso nimbado de compreensão, alguns amigos dos pais ouviram, daí em diante, a menina contar a história duma manhã de Natal em que o sapato mostrara a tristeza de não conter nem um simples rebuçado. Se não tivesse havido filhós e muito frio nem tinha parecido Natal... Aprendera a fazer o jogo dos adultos, fingindo acreditar no milagre repetido a cada ano, mágoa secreta que afinal lhe mostrara a diferença entre os seus presentes e os dos vizinhos.

Cerca de um mês depois, já nem o Natal lembrava, o carteiro trouxe uma encomenda acompanhada por uma carta em letras meio apagadas, com maiúsculas e minúsculas à mistura, com o remetente: Menino Jesus – Correio do Céu. Achou tão estranho!... Quem é que lhe teria escrito a fazer de conta?... A missiva ainda era menos esclarecedora: acusava a recepção e dizia-lhe para ser boazinha. Que tinha gostado de receber notícias. Enviava um presentinho.

Os adultos reagiram à novidade em alvoroço. O pai até alvitrou que talvez os serviços dos correios tivessem uma secção para receber aquele tipo de correspondência. Mesmo tendo-se esquecido de indicar onde morava, alguém enviara a Marianinha umas palavras mal dactilografadas a que juntara uma caixinha já violada de bombons da Regina. Sobre a palhinha branca de papel brilhavam meia dúzia de rebuçados de cores vivas, azul e vermelho, enroupados em celofane...Nem sequer eram bombons.

Doeu aquele prolongamento de Natal!...


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Sete anos depois, numa tarde soalheira e sufocante de Verão, a boneca sonhada apareceu por fim, lembrança magoada dum Natal da infância suspenso no tempo, coado no tecido de que as desilusões são feitas.

Helena Silva – Viseu, 2007
 

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Data de inserção
18 de Dezembro de 2007