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Helena Silva


Aveiro


Tarde de domingo com sol

Inverno. Tarde soalheira, algum tanto ventosa. Ao ruído do vento, misturam-se, esbatidos, os sons enrolados de sinos, crianças tagarelas, de jovens, comentando risos de meninas que passam. O trabalhar seco dos automóveis após o arranque é o «leit-motiv» duma sinfonia inacabada.

Não olhava a janela; tão pouco a televisão, imagens fugidias de um qualquer filme Disney, vagamente azul, vagamente preto, vagamente ouro. Alguém parecia martelar a fogo a cadência do relógio antigo, generosidade dos mais velhos, desiludidos de mudar o devir. Dezassete horas.

«…mais servira, se não fora / Para tão longo amor tão curta a vida!»

Amor: espírito de serviço, fraternidade, solidariedade, tão ignaramente confundido com escravidão, mentira, sabe-se lá porquê, como não se sabe das razões que me levaram a recordar um dos que soube, como ninguém, cantar a maior dor humana – existir, com a consciência de não passar dum pobre ser, «vil bicho da terra tão pequeno!»!

Há histórias de amor e de serviço colhidas nos textos bíblicos, histórias de perseverança quando alguém tem em mira alcançar um qualquer objectivo. No poema que soou na memória no fim da tarde de sol, um pastor da antiga Mesopotâmia, região onde ontem, como hoje, só se ouve ecos de crimes contra a humanidade, frutos de uma guerra sem quartel, um jovem viu a segunda filha de Labão, Raquel, uma loura de tez queimada pela canícula do deserto, e à sombra dos oásis onde o pastor parava para deixar o gado do patrão beber, deu por si a sonhar. E na altura de receber o fruto do seu suor e da sua lealdade de servo bom e fiel, «julgando que a tinha merecida» atreve-se a pedi-la em casamento. Labão, porém, tinha de casar primeiro a filha mais velha, porque assim mandavam os costumes, e o servidor recebe a sua paga: Lia, e não Raquel.

Eis se vê o pastor apostado em não desistir de alcançar o seu sonho e a pôr todos os seus afectos e brios a servir outros sete anos para finalmente ser digno de ter a amada como esposa.

Alcançado o objectivo amoroso, os textos contam-nos que a sua vida não foi um conto de fadas: foi apenas vida. Mas esses pormenores não interessaram ao poeta. Como não interessa ao vulgo o que se passa nessas regiões longínquas de história milenar. Contudo até está na onda o lenço/turbante à Arafat, quanto mais não seja bem enrodilhado à volta dos pescoços deles, e mesmo delas. Nem evocam violência, nem talvez amor. Simples artefactos duma geração conflituosa e libertária, que se interessa muito pouco com os problemas alheios. Auto-suficiente e egoísta. E ignorante, tão ignorante que não reconhece a polissemia da palavra amor e sente-se como que alérgica aos seus muitos e variados conceitos. Como entender o homem e poeta que se deixou enamorar pelo texto bíblico?

Perseverar também é palavra vagamente reconhecida pelas actuais gerações. Sacrifício e dor são aberrações para a sociedade consumista. Ilusões / desilusões – «confettis» carnavalescos de terça-feira de Entrudo. Que sensibilidades tão alheias à carga lírica e dramática de um poema que respira vida envolta numa maviosidade tão profunda?

E na tarde do domingo de sol, vibra no ar uma melodia que não parece pertencer já ao novo milénio.

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