Foto

Teresa Queirós Amaral
(
3º Ciclo
- Secª J. Estêvão)

Ilusão


O dia doze de Julho fora o mais quente do ano. O sol escaldava e as pessoas que passeavam pela rua protegiam-se com chapéus largos e multicolores e espalhavam pela pele camadas de protector solar gorduroso. As ruas de Miami enchiam-se de transeuntes, na sua maioria turistas, que apontavam as objectivas das máquinas para a praia numa grande excitação com todo aquele ambiente único.

A praia estava apinhada de banhistas, ansiosos por um bronze perfeito. As ondas rebentavam lentamente, convidativas e brincalhonas.

Na rua, as crianças comiam gelados; os mais velhos deliciavam-se com refrescos coloridos e doces, sentados à sombra de grandes chapéus nas esplanadas. Em Miami é Verão todo o ano. Há muitos turistas, muitas miúdas giras em biquini e as pessoas parecem viver num espírito de férias constante. É por isso que adoro esta cidade, a minha cidade.

Ainda hoje recordo com alegria estes dias tão felizes e solarengos. Eu era desenhador. Claro que ainda o sou hoje, mas já não há magia naquilo que faço. Eu era um desenhador de rua. Retratava os turistas, que eram suficientemente pacientes para se sentarem à minha frente e pousarem durante minutos infinitos, dependendo da inspiração do artista. Adorava o meu trabalho. Desenhar é a minha maior paixão e era pago por isso. Conhecia pessoas de todo o mundo. Bronzeava-me e tinha em primeira-mão as mais belas vistas de Miami. Eu era o rei do meu próprio mundo. As ruas de Miami ofereciam-me uma vida simples e despreocupada. Regia-me pelos meus próprios horários. Trabalhava quando queria. Comia quando assim o desejava e pintava com deleite tudo o que me pediam. Sei o que estão a pensar: um homem precisa de trabalhar para ganhar dinheiro e os retratos de rua não são propriamente uma fonte de riqueza.

Mas sempre fui uma pessoa simples, de poucas posses, caminhando calma e despreocupadamente por este enorme caminho que é a vida. Via os outros a correr, passando-me à frente. Mas porquê? A vida deve ser simplificada ao máximo e vivida com todas as emoções. Preferia passar uma manhã inteira a ver o sol matinal, claro e tímido, do que passar o meu tempo em almoços de negócios e envolvido em ambições maiores que as minhas capacidades.

A vida era bela e sorridente neste tempo. E se repararam que até agora me tenho referido sempre ao passado, a razão é lógica: porque tudo mudou um dia.


 

Foi nesse dia, doze de Julho, que o caminho da minha vida se torceu e mudou de rumo. Um rumo aparentemente mais belo e feliz. Mas só aparentemente!

O sol ia já bem alto, assim como o lucro desse dia. Numa só manhã, pintara já quatro retratos e sentia umas quantas notas honradas no meu bolso. Havia quadros que pintava, de paisagens, ou até pessoas, que punha em exposição, à volta do meu pequeno atelier, se é que se pode chamar atelier a um banco alto e um cavalete com uma tela. Mas, para mim, bastava aquele pequeno pedaço do passeio. Os retratos estavam expostos junto ao muro, para os transeuntes que passavam poderem admirar. Por vezes, vendia os quadros de paisagens da cidade e da praia aos turistas, mas era raro. Encontrava-me a lavar os pincéis manchados de tinta, quando um homem se aproximou. Era alto. Devia ter os seus quarenta anos. Usava uns óculos de sol espelhados e enormes. O cabelo castanho estava coberto de gel, para criar um penteado tufado. Trazia um fato formal, apesar de estarem quase quarenta graus.

O homem observava atentamente os meus quadros, enquanto eu secava os pincéis com todo o cuidado. Passaram-se longos minutos e o homem continuava a observar com a maior atenção. Quedara-se num quadro em particular, um retrato de uma mulher onde eram focados os seus olhos. Eram verdes e as pestanas muito compridas. Transmitia um olhar sedutor e cativante, quase mágico.

— Quanto? — Perguntou ele, apontando para o quadro da mulher de olhos verdes.

— Quarenta dólares, senhor — Respondi.

O homem murmurou qualquer coisa e depois disse numa voz franca:

— Está muito bom.

Agradeci com um sorriso e fiquei de olhar expectante para ele. Compraria o quadro? Penso que ele entendeu o que eu pretendia, pois logo a seguir soltou uma enorme gargalhada.

— Tens muito talento! Posso saber o teu nome, rapaz?

— Jack Baulder, senhor.

O homem apresentou-se depois como John Truman. Conversámos um pouco. Truman esclareceu que era dono de uma galeria de arte, negócio de família, e apreciava todo o tipo de arte. Disse que os meus quadros eram muito bons, que tinham algo de especial e único, mas que a técnica era ainda um pouco rudimentar. Absorvi as suas palavras atentamente, como futura referência para melhorar a minha arte. Esclareci-lhe depois que nunca tinha andado numa escola de belas-artes, nem frequentado qualquer curso específico. Tinha apenas acabado a escolaridade obrigatória, para depois começar o meu próprio negócio. Tudo o que desenhava devia-se ao meu dom natural. Nada disto me tinha sido ensinado.

Truman sentou-se no muro e continuámos a falar. Falou-me da sua vida agitada, passada entre preparar exposições e presidir a festas, tão contrastante com a minha vida simples e monótona. Falou-me, inclusive, de como era preparar o espectáculo e estar por detrás dos holofotes que iluminavam os artistas. Truman tentou cativar-me com a sua vida de estrela. Falei-lhe da paixão que nutria pelo trabalho que fazia e de como gostava da minha vida calma e não tencionava abdicar dela nem por todo o dinheiro da Florida.

Tinham já passado duas horas quando Truman se levantou, sacudindo o seu fato elegante e de aspecto caro.

— Bem, tenho de ir. Tenho jantar com um cliente às oito e ainda tenho de passar no hotel.

É pena um talento destes ser desperdiçado, miúdo. Eu poderia dar-te oportunidades únicas. Serias um artista internacionalmente famoso com a minha ajuda e o teu enorme talento. Mas pelo que vi não é isso que queres. Talvez estejas feliz com a vida que tens agora. Bem, é uma pena!

E com isto virou as costas e começou a andar lentamente. De repente, vi toda a minha vida futura a passar diante dos meus olhos. Visualizei uma imagem grosseira de mim próprio, velho e gasto, já sem talento, a pedir dinheiro aos transeuntes. E se eu aceitasse a proposta de Truman? Ficaria eu sempre feliz por esta vida tão simples e monótona? Não seria já altura para mudar o rumo da minha vida?

Olhei para Truman a caminhar, já um pouco distante. Comecei a correr que nem um louco, a correr pelo meu destino, abandonando o meu pequeno atelier.

Desde aquele dia a minha vida mudou. O meu nome artístico era MieI Anders. Jack Baulder foi deixado para trás, nas ruas de Miami. Comecei a pintar quadros todos os dias para aperfeiçoar a minha arte. Frequentei um curso de belas-artes em França, oferecido por Truman, e tornei-me o seu lacaio. Fazia tudo o que ele dizia. Ele mandava­-me estudar e eu estudava. Dizia-me para pintar e eu pintava. Tudo a troco de uma vida estável e um tanto ou quanto opulenta. Comecei a frequentar festas e exposições. Visitei inúmeras galerias e a minha rede de contactos ia-se alargando a cada dia. Rapidamente comecei eu próprio a fazer exposições e, modéstia à parte, fui um sucesso. A minha arte ia-se aperfeiçoando e o número deIas ia aumentando. Uma fortuna esperava por mim após as vendas dos meus quadros. Tornei-me um dos mais famosos pintores de toda a América e a minha arte começou a ser também reconhecida internacionalmente. Os meus olhos nada viam à sua frente senão dinheiro, fama, bebida e mulheres. Muitas mulheres. Trazia uma namorada nova pelo braço todas as semanas. Usava-as e descartava-as, mas nenhuma parecia importar-se.

A opulência e a fama invadiram-me. Que mais posso dizer? Eu sentia-me acima de todos, acima até de Deus. Tornei-me escravo da minha própria luxúria. Descartei o meu antigo eu. Tornei-me numa pessoa nova e completamente diferente. Tornei-me materialista e consumista, mesquinho e calculista, frio e distante.

Mas como tudo o que sobe sempre desce, rapidamente passei o meu apogeu. Não sei bem como aconteceu, mas de um momento para o outro os meus quadros já não fascinavam tanto como os primeiros, as minhas piadas já não tinham assim tanta piada, os convites de festas começavam a diminuir e as mulheres deixaram de me ligar. O dinheiro tão arduamente ganho fora quase todo gasto em ninharias e inutilidades. De um momento para o outro, passei de celebridade a vagabundo. Encontrava-me sem dinheiro, sem amigos e sem trabalho.

Na noite do meu declínio, agarrei na minha velha mala de viagem, na qual empacotara as coisas da minha antiga vida quando me mudara para Nova Iorque. Penhorei o apartamento recheado com todos os bens que tinha comprado para ter dinheiro suficiente para a viagem de comboio. Na velha mala, cheia de autocolantes e com os cantos gastos, apenas levava a minha roupa antiga, que estivera guardada no fundo do armário durante todo este tempo, indubitavelmente à minha espera.

O comboio chegou à minha doce cidade. Era Jack Baulder de novo. O antigo nome pomposo e artístico fora deixado para trás, juntamente com todos os seus defeitos. Com as minhas velhas roupas, calças de ganga coçadas e rasgadas e camisola cheia de manchas de tinta, era irreconhecível. Quem diria que eu estaria a passear de novo naquela marginal, de volta ao meu antigo posto. Caminhei lentamente até chegar ao meu velho muro, onde passara tantas horas felizes. O chão com algumas manchas de tinta marcava ainda o meu território. Montei o cavalete e aí coloquei uma tela em branco. Enchi um copo com água e comecei a misturar tintas na paleta. Comecei a pincelar no quadro riscos absurdos e sem sentido. Não sabia o que iria pintar. A minha mão mexia-se sozinha, no seu próprio compasso. Só passados uns minutos me apercebi que estava a pintar uma paisagem. Distinguia uma montanha enorme, salpicada de árvores e trespassada por um rio. Era a paisagem mais bela e inspiradora que já alguma vez vira e, contudo, não me recordava de alguma vez ter visto algo assim.

Quando o acabei, mantive-me a olhar o quadro, tentando imaginar-me num local assim. Nesse instante, passava um casal de turistas, possivelmente europeus, que se aproximou para admirar o quadro. Com a prática, já distinguira aqueles que só queriam ver daqueles que estavam interessados em comprar. Cheirava-me a negócio.

— Oh, mas que beleza! — Exclamou o homem, que trajava uns ofuscantes calções amarelos e uma camisola verde. — O que achas, Berenice?

A mulher murmurou qualquer coisa em espanhol e fez uma pergunta ao marido, que ele depois traduziu, perguntando-me de onde era a paisagem.

— É a terra dos meus sonhos — Respondi-lhe com franqueza.

O homem e a mulher falaram um com outro enquanto eu lavava o pincel.

— Quanto custa? — Perguntou o homem, abrindo a sua bolsa. — Hum... Vinte dólares, senhor.

— Não acha um pouco caro?

Nem ele sabia que os meus quadros já tinham valido mais de um milhão de dólares há três meses atrás.

— Muito bem, como é para si, vendo-lho por dez dólares. Recebi o dinheiro e guardei a honrada nota no meu bolso.

— Sabe, você até pinta bem! Nunca pensou abrir uma exposição ou algo do género?

— Oh, não! Estou feliz aqui, neste meu pedaço de terra!

E com isto o casal afastou-se, levando a tela consigo. Quanto a mim, peguei numa nova tela e recomecei um novo desenho, um novo quadro. Ao meio-dia pousei os pincéis e encostei-me para trás. Senti o vento passar-me pela cara, lavando-me a alma Fechei os olhos por um momento, até que fui acordado por uma voz áspera. Um homem careca e gordo, de calções e camisola da selecção nacional, olhava-me curioso.

— Desculpe, senhor, mas você não é o... Miel Anders?

— O quê! O pintor? Oh, não! Somos apenas muito parecidos de rosto! Nem sabe a quantidade de gente que me diz isso... Não, ele e eu somos muito diferentes, muito diferentes mesmo!
 

Página anterior Página inicial Página seguinte