Maria João Pinho e Silva Caseiro
(
10º Ano)

Memórias de Aveiro
Tell me another story


 

Pela pequena janela ao fundo do casinhoto não entrava luz. Era ainda noite. Deu mais uma volta na enxerga de folhelho e sentiu o pé do irmão mais novo contra o peito. “Isto de dormir aos quatro na mesma cama, não tem jeito nenhum”, resmungou. É que ele já era um rapaz e os rapazes querem largueza. De qualquer modo, ferrou o olho outra vez e deixou-se dormir por mais um bocado que o dia, já o sabia, ia ser comprido.

A manápula do pai acordou-o sem cerimónia. “Anda rapaz! Salta daí! na hora!” Com algum cuidado para não acordar os irmãos –o efeito seria uma chinfrineira infindável de choros e gritos -afastou a manta encardida que os cobria e saltou para o chão, já vestido e quase pronto para a jornada. Alisou as calças, que tinham sido do irmão que estava na tropa, meteu a camisa para dentro, que por acaso também pertencera ao irmão e apertou mais um furo ao cinto, que tinha sido do pai. O cinto partira-se num dos furos e aproveitou-o para si. Assim, retirou ao pai um dos instrumentos com que, de vez em quando e nem sempre pelos melhores motivos, lhe chegava “a roupa ao pêlo”. Ficou a ganhar.

A mãe já tinha na mesa uma malga de caldo e uma fatia de broa. Da boca dela ouviu apenas duas coisas: “bico calado e juízo”.

O caldo bebeu-o de um fôlego só e a broa meteu-a no bolso. De um armário pequeno tirou uns tamancos e pôs-se a caminho ao lado do pai. O dia não estava propriamente mimoso. Tinha caído uma geada grossa, uma “neve”, como ali se dizia, e estava uma névoa baixa, que enregelava até às ceroulas. Mãos nos bolsos, iam em silêncio pela berma da estrada nacional, a caminho de Aveiro.

Atrasado em relação ao pai, que tinha passo mais largo, remirou-o de alto a baixo. O seu pai -que idade teria? -era alto e magro, ossudo e de mãos largas. Não era homem de grandes falas nem se lhe conheciam amigos. Saía de manhã para trabalhar e voltava à noite para comer e dormir. A mãe dizia-lhe que ele “andava ao dia”, sem patrão certo, a vender o seu trabalho braçal a quem o quisesse. Um dia, ela disse-lhe a respeito do pai: “se ele tivesse tido juízo, tinha deixado o mar e ido p’rá fábrica da Vista Alegre. Isso é que era! Dinheirinho certo ao fim do mês”. Também ela não tinha trabalho certo. Umas coisas na lavoura, umas limpezas nas casas dos ricos, umas descargas de bacalhau na Gafanha, o que calhava. Às vezes também calhava mais um irmãozito. Já eram sete, entre rapazes e raparigas. Três raparigas, para ser mais exacto. Ele era o segundo rapaz. O irmão mais velho andava na tropa, a irmã mais velha já saíra de casa, estava “junta” com um pescador da companha da Senhora da Esperança, do Palheirão. Ao que ele ouvira, até já era tio. Sorriu-se ao pensar que já era tio… e ainda tinha um irmão que mijava na cama!

 

O dia já clareava francamente. A carreira das sete já tinha passado por eles há algum tempo. Tivessem uns tostões e esta caminhada poderia ser evitada, mas a carreira era para os ricos, não para gente como eles.

O pai não lhe tinha dito ao que vinham. Para ele era igual. Antes ali que andar a roçar mato para o ti Antunes, esse velho forreta que nem broa dava que chegasse para a cova de um dente.

Já tinha vindo a Aveiro uma vez. Foi numa ocasião, por alturas de uma feira, há três ou quatro anos. Tinha andado a apanhar batatas novas para um homem lá da terra e este, à noite, trouxe-os de camionete para ver a feira. E ainda pagou umas farturas e umas garrafas de vinho verde. Foi o que se chama uma noitada! Nos carrosséis não andou, que não tinha dinheiro, mas nunca tinha visto tanta luz, tanta gente e tanta coisa bonita como naquele dia. Até viu as motas do Poço da Morte e o Comboio Fantasma. De arrepios!!

Mas hoje não sabia ao que vinha. Só ontem o pai lhe tinha dito “amanhã cedo, vens comigo a Aveiro”. E mais não disse. E teria sido escusado perguntar-lhe mais qualquer coisa. O recado estava dado.

Entraram pela estrada de Ilhavo, desceram a Rua de S. Sebastião, a Rua Direita, passaram as Pontes e pararam no largo onde faziam a feira das cebolas. Não foram dos primeiros a chegar. Frente ao fontanário, homens, algumas mulheres e sobretudo muitos rapazes, mais ou menos da sua idade, faziam grupos e discutiam animadamente.

O pai ordenara-lhe que se encostasse à fonte e não saísse dali. Ele iria falar com umas pessoas e já voltava.

Dali podia observar um pouco o que se passava no largo. Admirou-se uma vez mais por ver muita malta da sua idade. Mas nem todos pareciam estar ali com a mesma disposição que a sua, curiosos e expectantes. Um ou outro choramingava; alguns, sentados no muro da ria, olhavam à volta parecendo já saber ao que vinham e para onde iam ou vagueavam pelo largo parando aqui e ali, escutando conversas ou dando palpites; outros ainda, entretinham-se com brincadeiras próprias da idade: empurrões e caneladas eram coisas que não faltavam.

Viu o seu pai em vários grupos. De vez em quando um ou dois homens voltavam-se para ele e olhavam-no de alto a baixo.

De repente, deu-lhe um baque no coração e sentiu um aperto, assim uma aflição que até parecia que o coração se sumira sabe-se lá para aonde! Já sabia ao que vinham: era a Feira dos Moços, 19 de Março, dia de S. José. O dia em que os donos das marinhas ou os arrendatários contratavam os rapazes para a safra do sal! Agora é que se lembrava das discussões lá em casa do pai com o irmão mais velho, do dia em que o irmão bateu com a porta e disse que “para o sal nunca ...nem morto”. Por isso é que alguns choramingavam no largo. Por isso é que o pai não lhe dissera nada.

O coração apertava-se mais: ia ser alugado durante seis meses, dia e noite, todos os dias, sábados e domingos, da alvorada ao anoitecer, fizesse sol, chuva, vento, o que fosse! Estava tramado! Já se imaginava a suar em bica, descalço, perna ao léu, tisnado e rechinado do sal e do sol,  em calções, pescoço retesado com  vinte quilos de sal à cabeça., em correria até ao monte do sal ou à barriga de um barco salineiro. Bolas! Que sorte!

O pai e dois desses homens dirigiram-se-lhe.

-Podem ver que já tem 15 anos feitos agora em Janeiro pelo S. Sebastião. Não é verdade rapaz?-perguntava o pai.

-É sim senhor!

-Mostra lá a perna! –atirou-lhe um deles.

-Arregaça lá a calça! –mandou o pai. Levantou as calças até ao joelho.

-Hum!! –disse o homem. – P’ra isto é preciso boa perna…Tem que servir, não há mais escolha! É de mando ou é madraço?

. –Home, quando não for a bem, carregue-lhe!

-Pronto! Mande-o cá além de amanhã, que é para começarmos quanto antes.

-Cá estará, fique descansado – disse-lhe o pai estendendo a mão para a despedida.

-Mas eu…

-Bico calado! –atalhou o pai.

Estava-lhe traçado o destino dos próximos seis meses, quem sabe dos próximos anos. Agora, lá no lugar onde viviam, quando fizesse uma asneira, ou disesse uma patacoada haveriam de dizer com ar de escárnio “és tão burro como os que andam ao sal!”.

O regresso a casa foi em silêncio. “Quem feirou, feirou!” diria a ti Mónica.

O negócio estava feito.

 

[ O velho desceu os degraus da pequena varanda da casa. Camisa de flanela grossa e calça de ganga, um maço de folhas debaixo do braço, caminhava devagar.  Ao fundo do quintal, duas crianças brincavam despreocupadas. Lá longe, a baía de Boston envolvia-se no seu manto azul.

-Grandpa, can you tell us another story?[1]

O velho pega nas folhas e a primeira, caprichosa, volteia até ao chão. “Memórias de Aveiro”, estava escrito.]

 

Fim de Setembro. A passarada da invernada já começara a chegar. Aqui e ali já se viam mergulhões, um ou outro pato e muitas, muitas gaivinas por partir. As gaivinas são as últimas a despedir-se, o adeus do Verão, o risco branco da luz e da claridade que se afasta para Norte.

O patrão já há dias que mandara cobrir o sal. Da Murtosa tinham vindo várias bateiras erveiras carregadas de junco. Era o fim dos trabalhos nas marinhas ante de as porem “ao fundo”. A safra não tinha corrido mal. O Verão ajudara com calor e vento suficientes para satisfazer as partes. Descontados os vagões de sal para o dono da marinha, sobrara que bastasse para contento de todos. E ele, dinheiro a ferver na algibeira a caminho de casa, haveria de ficar com algum para comprar a bicicleta que até em sonhos o perseguia. Mas a realidade depressa o tirou da fantasia.

-Mostra cá o que ganhaste – ordenou-lhe a mãe do meio do casinhoto.

-Já mostro, espere!

-Não é espere, é já!

Já não via a mãe há meses. Depois que o seu pai o entregou ao patrão, tinha voltado a casa por duas vezes. Uma porque chovia e com chuva não se trabalha nas marinhas, outra porque lhe morrera um tio materno e tinha ido ao funeral. A rispidez da mãe magoou-o. Afinal, pouco lhe interessava saber como tinha sido a campanha, o que por lá tinha passado e sofrido, quem vira ou fosse o que fosse. , só queria o dinheiro, o seu dinheiro e nada mais.

-Tome, mas preciso de uma calças novas e de uma camisa. E mais umas calçolas!

-Olha o fidalgo! Já agora, um terno e uma gravata!

A mãe arrancou-lhe o dinheiro da mão e guardou-no no avental. “Àquele não mais lhe veria o rasto, mas ao que ainda tinha no bolso, esse, saberia onde aplicá-lo”, pensou . E já se imaginava a pedalar…

O pai tinha arranjado trabalho em Aveiro. Uma noite, ao regressar, trouxe com ele a novidade: ia trabalhar novamente, desta vez num mercantel, no transporte de caulino para a fábrica da Vista Alegre. O caulino era arrancado nos valados de S. Vicente de Pereira, Ovar, e carregado por juntas de bois até ao Puxadouro de Válega, onde era embarcado e transportado, ria abaixo até ao destino.

Ora se ele alguma vez se imaginou barqueiro!!

O fado repetiu-se: fazer a trouxa e por os pés a caminho de Ilhavo, que é como quem diz da Vista Alegre. Ali chegado e apresentado ao mestre do barco, suou as estopinhas para embarcar umas quantas centenas de telhas com destino a Pardilhó.  Esperariam pela maré vazante, que os levaria até Aveiro e ali, caso o vento estivesse de feição, continuariam viagem. Doutra forma, teriam que esperar pela volta da maré e ir na enchente até onde pudessem.

Telha carregada, saltou finalmente para bordo A  sua primeira viagem ia começar. Sentou-se desajeitadamente a um canto, mas foi interpelado pelo mestre:

-Eh, lambão, enrola-me aqueles cabos!

-Sim, senhor!, repondeu ainda a medo. Um pouco mais adiante, depois de passar com o cabelo a rasar a ponte de Ílhavo, ajudou na manobra de recolocar o mastro do mercantel, que tinha sido retirado para poder passar debaixo da ponte.

A vela deu um estalido seco quando o moitão foi apertado. Corria uma brisa fresca de sul num céu esparsamente nublado. A água de cor barrenta era cortada pela proa chata do mercantel e fazia um chap-chap regular. Dir-se-ia mesmo que a fraca marola levantada pelo vento também ajudava à viagem.

-Se o vento se mantiver, inda chegamos hoje. Inda vamos dormir a casa! O pior é se dá borrasca, que tamém está a prometer.

O mestre arriou a tosta de um dos bordos e e o barco parece que ganhou velocidade.

Admirou por instantes a linhas graciosas do barco, as cores garridas do castelo da proa, a água quase a um palmo do bordo, tal era carga de telha que levavam.

 –Chega-te aqui, rapaz!  Já tinhas andado no rio? Não? Eh Jaquim, pega aí no bertedouro  e dá  bober ao rapaz!  O Jaquim assim fez e, num gesto rápido e imprevisível encharcou o aspirante a barqueiro da cabeça aos pés.  Sacudiu  água da roupa molhada, que as gargalhadas dos outros não as podia sacudir. No fim acabaram todos à risota, pois que haveria a fazer?

Passada a ponte da Gafanha, entre marinhas e barcos de pesca, o Jaquim interpelou o patrão.

-Mestre, o vento está a levantar-se. Já viu o céu? Está a ficar bem negro! Não era melhor ficarmos por aqui e seguir amanhã?

-Qual quê, home? E aquela aberta deste lado? Inda lá vamos chegar com sol! E se calhar inda  descarregamos hoije!  Cheira-te mas é à Lucinda…bem te percebo!!

-Não é isso, mestre, não me agrada este tempo.

De facto, lá ao longe, as nuvens amontoavan-se num céu cada vez mais cinzento. A brisa engrossara também e assobiava no cordame da vela.

O barco aproou à Cale do Espinheiro rumo a Pardilhó. Saído para o largo da Bestida, passados os juncais, as pingas grossas de uma trovoada começaram a cair com intensidade. O céu tinha-se tornado num negrume impenetrável, riscado aqui e ali por relâmpagos e trovões.  A marola tinha mudado rapidamente para ondas cavadas. O chap-chap na proa era agora uma pancada violenta que espalhava espuma e salpicos em todas as direcções. O mestre, ao berros, agarrado aos varais do leme, dava ordens desencontradas:

-Jaquim, arreia a vela! Metam a tosta p’ra dentro! Peguem no vertedouros e no balde e escoem as cavernas de vante! Tira os paneiros, animal! Não sabes o que são os paneiros? Como é que escoas se não tiras os paneiros?

Quase às cegas, de um bordo para o outro, passando por cimla das telhlas, os dois acudiam onde podiam: arriaram a vela, recolheram a tosta e escoaram quanta água puderam. Em vão. Cada vaga que passavam batia com mais força na proa  e inundava as cavernas uma vez …e outra… e outra.

Sentiram-se à deriva naquele mar de água revoltas em que a pacífica ria se tinha transformado em instantes..

-Mestre, aproe às ondas! Vê alguma ilha? Ponha o barco em seco senão estamos perdidos! Ai, Nossa Senhora dos Navegantes, que ficamos aqui!, berrava o Jaquim. Mas o mestre não o via nem ouvia. Ao ribombar dos trovões juntava-se o barulho da água e o bréu daquela tarde precocemente escurecida.

O barco, sacudido da proa à ré, adornou por bombordo e , com o peso da telha e da água começou a afundar-se.

-Salva-te Jaquim e leva o miúdo, que estamos desgraçados!

-Venha, mestre! Todos por este lado. Vamos ficar juntos, mestre!

Saltaram para água. Por momentos ainda conseguiram ficar juntos,  esbracejando para se manter à tona de água. Mas a corrente, a ondulação forte e a escuridão depressa os separou. Ainda se ouviu, por instantes, o mestre a chamar pelo Jaquim. Depois, só se ouvia a si próprio quando, engasgado, conseguia respirar e gritar. Sentiu-se sem forças. À memória veio-lhe a imagem da mãe. Onde estaria ela? O que estava a fazer? E via-a a chorar, de preto… Uma pancada forte e dolorosa nas costas fê-lo acordar. Era o mastro, que, por qualquer circunstância, se tinha soltado e o atingira com violência. Dorido, semi-morto, passou o braço sobre o mastro e, na escuridão e na tempestade, deixou-se arrastar. Não por muito tempo.  

O pés prendiam-se a qualquer coisa. Experientou por-se de pé e surpreendeu-se ao verificar que a água lhe dava pelo peito. Tentou caminhar e conseguiu. “Para a frente a água sobe…tenho que dar meia-volta”, raciocinou. Largou o mastro e caminhou em sentido contrário, vencendo o vento e a escuridão. Uns metros adiante a água dava-lhe apenas pelo joelho e, mais à frente, sentiu as pontas aceradas e ásperas do junco roçar-lhe as pernas . Estava salvo. Deixou-se cair abandonando-se ao vento e à chuva que não parava de cair. Inconscientemente levou a mão ao bolso das calças. Ainda que ensopado, o seu dinheirinho estava lá. Sorriu.

Já se imaginava a pedalar…

Maria João Pinho e Silva Caseiro


 

[1] Avô, pode contar-nos outra história?

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