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Daniela Sá Pinto Marques

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O olhar vazio para o invisível

E

uma

 coisa

duas coisas

quatro coisas

vinte e três coisas

novecentas e uma coisas

três mil, trezentas e sete coisas

oito milhões, quinhentos e setenta e nove mil, quatrocentos e dezoito coisas

sete biliões, trezentos e quarenta milhões, oitocentos e dezanove mil, cento e uma…

 coisas

 

Era uma vez…

um velho-de-sapatos-apertados. Este velho tinha milhares e milhares de mãos, muitas, muitas mesmo. Todos os dias, levantava-se bem cedo e, ao abrir os olhos, devagar, a custo, a primeira coisa que fazia era estendê-las muito, muito… Elas faziam um barulho terrível, tão forte que acordava as nuvens e começava a chover. As suas mãos fabricavam milhares e milhares de coisas que ele nunca tinha visto antes Nem compreendia bem.

O velho-de-sapatos-apertados tinha um rosto cor-de-cinza, curvadas as suas costas, e as mãos, aquelas muitas mãos eram febris. Mas, por vezes, quando descobria uma coisa nova, os seus grandes olhos brilhavam de euforia e ria, ria como o vento e o frio. Dançava e pulava tanto que os seus sapatos pareciam encolher mais. As mãos gritavam na sua linguagem, alto, muito alto. E as novas coisas iam surgindo nos dias do velho-de-sapatos-apertados. Tinham sempre o mesmo nome, esse nome que as mãos gritavam entorpecidas: “meu”. E, assim, o velho e as suas mãos fabricavam mais e mais “meus”. Elas tinham-se tornado cada vez maiores e, agora, tudo o que tomavam chamavam…

“meu”.

Um dia, o vento e o frio trouxeram-lhe a humidade, a degradação e a podridão que iam, rapidamente, deteriorando os seus inúmeros “meus” e, com eles, o medo e a ansiedade para a alma do velho-de-sapatos-apertados por todas aquelas coisas a que chamava  

“meus”. Para que não desaparecesse de noite o que de dia juntara, o velho via-se obrigado a permanecer vigilante. O seu sono nunca era, por isso, verdadeiramente profundo. Estava agora forçado a ter as mãos e o espírito constantemente presos às pontas dos seus ”meus”.

Passou assim muito tempo. O seu corpo, cansado, pedia-lhe repouso. O seu espírito definhava, sumido e triste.

Parou um pouco. Lá fora, ouviu o mexer das árvores, o calor de um canto jovial, o dançar ao Domingo em plena luz… Ouviu vozes e sorrisos… O Sol estirava os seus grandes raios brilhantes como um gato laranja numa ombreira. O vento e o frio haviam desaparecido. Na rua, as pequenas poças de água cintilavam reflectindo o Sol vaidoso e alegre. Os meninos saíam à rua contentes. Os sapos tornaram-se azuis, as caudas abanavam os cães, as buganvílias cresciam gigantes. Tudo se espreguiçava. O velho-de-sapatos-apertados ouviu o correr de uns pezitos descalços e, estremunhado, viu, na sua janela, um menino com a carita toda esborrachada na vidraça. Tinha as suas mãozitas brancas cor-de-esteva, pequeninas e cheias… de Sol, espalmadas no vidro baço. O menino sorriu e fugiu.

O velho-de-sapatos-apertados olhou o chão e lamentou as imensas coisas que ainda tinha que fazer, e as outras tantas coisas para arrumar…e ordenar… e velar…e catalogar… e…

                                                                        *

- Abre os olhos! O que é que vês?

- … Muita coisa, sei lá!...

- Não sabes o que vês?

- Sei! Só estava a dizer que é muita coisa o que vejo… De vez em quando, fazes cada pergunta…

- Porquê? Não achas importante?

 … Não. Deves ver o mesmo que eu. Para que é que perguntas…?

                                                                        *

emovere: pôr em movimento, contém o termo “moção”; origem etimológica da palavra emoção.

Posso dizer, então, que as emoções nos põem em movimento, nos fazem agir; que são o motor dos nossos comportamentos e da nossa atitude perante o mundo, nós mesmos e os outros. Mas os movimentos ou reacções gerados pelas emoções não se situam somente no ambiente exterior. Muitos deles são produzidos dentro de nós e constituem o nosso interior d’alma As nossas emoções são únicas e, por isso, cada dia aumentamos a riqueza a que chamamos Humanidade.

São como batutas de um maestro exigente que segue uma partitura inacabada.

Sim, somos música! Concentra-te e escuta.

                                                                        *

- Então agora fecha os olhos…O que é que vês?

- … Vejo negro…

- Tens a certeza?

- … NÃO!

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