Liliana Magalhães Fontes, A revolta dos afectos

                             A Revolta dos Afectos

Nocturnas vésperas impressões
Alimentam os pulsos como fruto da boca.

                                                          I

Nas pálpebras regressa a primavera da chuva.
Dentro do dia, revejo o odor, trovoada no meu sonho.
Esta noite vou namorar com as aves longe da lua...

                                                          II

Amanhece
Nos rostos habitados pelo dia.
Chegam as aves vestidas de cinza
Que repousam no teu joelho nu de frio.
No teu hálito, um sabor a voo
Espalha-se na minha rua.
Escondes a ferida do beijo no orvalho
Do precipício, à porta da tarde.

                                                          III

Amo com segredo a aurora, a nova claridade que traz a chuva dentro de ti.
Amo as rosas que estão de passagem nas mãos, breve perfume
Que impregna a pele e as memórias desnudas.
Amo as margens do teu corpo que respiro com ambas as mãos e,
Deitada, observo
A hesitação escrava de nós dois.

                                                          IV

Tardio refúgio para a dor, ó viajante de luz, aprendiz do amor...
Espelhos de saliva cobrem o teu rosto e meus lábios vazios
Quando acordam a manhã nesta esquina da cidade.

                                                          V

O teu rosto desenhado nas pedras, o peso de uma nuvem,
Queres ser amor no limiar da madrugada, as pálpebras rotas
Junto às ervas
Do muro.
Mãos, dedos, pulsos abertos ao céu salgado, ao sangue azul dos pássaros,
Ninho sepultado nos braços teus.

                                                          VI

                                             Fuga de mim

Desmarco a hora no dentista
Para embarcar no caminho da lua
Onde me deixo adormecer
Às batidas dos ponteiros do relógio,
Mercê do tempo dos mortais.
E finjo ser feliz e sorrio
Aos namorados, ao sol, ao eclipse,
Ao teu peito cabeludo onde chego
Às curvas e me dispo.
Às vezes é assim...
Fácil chegar
Para rápido partir
De um refúgio para outro...

                                                          VII

Não sabias dizer não à voz que te chamava do outro lado
Do espelho que queimei entre o sangue do pássaro
E o lume do teu olhar,
Vulcão de espuma breve, sombra de dedos e ruídos, nos meus desenhos.
Rasguei da memória os dias bons, encobri em névoa a tua saliva,
Afoguei no atlântico o teu peso a respirar,
Levei do tesouro o calor dos dedos mastigados.
Queria cortar a ferida onde sinto o frio, queria sair do céu,
Cair do muro que trago vestido e te dizer «nunca mais»,
Queria ser ignorante no sentir, queria partir o vidro do teu coração
Que está habitado por feras e estranhos nomes.
Vou agora por caminhos meus, elimino o receio nos quilómetros.
Nas minhas mãos caço as estrelas para o meu jantar com outros olhos,
A minha voz é agora aroma, o meu sossego uma solidão feliz...
Tu eras o meu deserto, a areia doce no meu pesadelo, a aridez dos sonhos.
O que fomos foi um esqueleto esquecido em lamas, com medo
Do quotidiano. Não vivemos, fingíamos, numa ilusão vegetal.
Vou agora
Com a paciência das pedras, o brilho da chuva,
Vou fazer a noite minha amiga e romper o mar, nua,
Enquanto espero que vás embora com a tempestade.
 

                                                          VII

Espero-te
Longe, num golpe de asa, firme voo entre os pulsos.
Espero água clara para o ocaso,
Para o tempo passar.
Dizer-te os versos em grego antigo
E roubar brisas ao deus nu. Navego nas raízes do sangue
Encontrado nas casas assombradas que desenhas
No peito.
Espero-te
Rosto sem nome, ascende na sombra a luz fechada,
A boca que hesita e inspira e assalta becos que mudou
O olhar.
Espero-te
Com o medo, o vinho e alguma lua esquecida
No calor do sovaco. Queres dizer o que te estremece,
O que leva a diurna respiração a te tocar,
A te fazer sentir a secura incendiária do rio que colheu a voz
Do destino.
Espero-te
Rebelde na paz,
Vens cedo, com o coração apertado nas mãos,
Cospes, do teu olhar, a humilhação, trazes chuva suja, rente
Às páginas da tua vida e esperas, sentado,
Por outro relógio.
Espero-te
Com a música salgada das tuas viagens,
Espero o assobio que, sonâmbulo, aqueces nos braços de outra rua.
Meu temor. Teu horror.
Espero-te
Marcas os anos cheirando cada riso que não deste, passeias
Com meus olhos entalados entre a espada e a parede e não esperas
Que finja os gestos que faço dentro de ti...
Espero-te
Acordado, com feridas abertas e velho amor.
O passado está em crosta e o presente teu pouco amigo. Já magoado,

Não voltas de tão longe...


Página anterior     Primeira página     Página seguinte