Liliana Jorge da Silva Loureiro (Esc. Sec. Homem Cristo) - ESPELHOS

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II

Já não é para o jardim que olho – é para o fraco reflexo de uma senhora já vivida, no vidro. Afasto-me repentinamente. Quero voltar atrás, quero voltar a ser uma adolescente medrosa. Quero voltar até àquele dia e dizer-te que não. Que não poria os meus pés naquela festa. Que tu eras fraca de mais e que não ias resistir. Que tu ias destruir lentamente...

Mas o que se reflecte de novo no espelho é a imagem dos meus quarenta anos. Já tudo faz parte do passado, até tu. Mas tu nunca terás quarenta anos e nunca o brilho do teu olhar ficará baço e cansado.

Pesa-me a saudade que tenho de ti e a culpa por, naquela noite, te ter seguido tão prontamente. Entrámos juntas na festa, mas cedo me vi sozinha. Estava encostada à mesa das bebidas, lembras-te? É claro que não. Tinha um copo de sumo na mão e observava-te enquanto dançavas no meio de um grupo de rapazes mais velhos. Aliás, todos, naquela festa, eram um ou dois anos mais velhos do que nós. Eles puxavam-te de um lado para o outro e tu sorrias, absolutamente deliciada, até porque Gabriel era um deles. Eu não gostava do que via e ia ficando cada vez mais irritada. Confesso que era ciúme. Uma vez mais invejava a tua tão adorada perfeição. A certa altura, vi-te dizeres qualquer coisa ao ouvido de Rafael. Ele riu-se e olhou para mim.

Guida! Guida! Não me chames ingrata! Se estivesses aqui hoje, percebias que dançar com um dos rapazes mais populares do liceu não significa nada comparado com um casamento sólido e com as minhas duas queridas filhas. Mas, sim, naquela noite, o meu coração pulsou de alegria quando Rafael se dirigiu a mim e me pediu para dançar. Dancei que nem uma louca, rodopiei nos braços dele, mergulhei nos seus sedutores olhos negros. E senti-me como se não vivesse mais em mim...Naquele momento fingia que era como tu.

Mas o sonho chegou ao fim: a música acabou. As pessoas começaram a dispersar e eu sabia que o ambiente estava a começar a ficar pesado. Eu queria ir-me embora, mas não te encontrava em lado nenhum. O salão estava quase vazio... apenas um casalinho namorava num canto.

Porque é que desapareceste sem me dizer nada, Guida? Não sabias que me ias assustar? Eu podia ter insistido para que nos fôssemos embora e tu nem sequer tinhas experimentado... Maldito orgulho! Tinhas de te mostrar igual a eles. Mas eles não eram heróis. Não vias isso? Não passavam de miúdos a fazerem-se importantes...A tentação do fruto proibido!

Mas eu continuava à tua procura. Arriscava pelo corredor do primeiro andar e chamava o teu nome baixinho. Foi Rafael que me levou até ti: agarrou-me por um braço e empurrou-me até ao quarto dele. Mal entrei tive um ataque de tosse. Detestava fumo de cigarro e parecia que todo o grupo estava a arder... Não era um simples cigarro, era algo mais pesado. Até tu partilhavas um com Gabriel. Parecias sorridente, mas eu podia sentir o medo que te invadia.

– Toma, experimenta. – ouvi Rafael dizer-me. Mas eu não queria ouvir. Só tinha olhos para ti e para o teu medo. Disse-lhe que não, que não achava aquilo correcto e ele riu-se. Disse-me para voltar para as saias da minha mãe. Todos se riram e eu comecei a sentir-me tonta. Porém, só pensava em tirar-te dali. Chamei-te, mas nem olhaste para mim. Rafael mandou-me embora – disse-me que irias mais tarde, mas eu insisti. Foi então que te ouvi dizer:

– Adeus, Lena.

E este adeus seria o adeus à tua alma viva e alegre. Quando virei costas para sair, lançaste-me a tua maldição. O teu olhar perseguir-me-á toda a vida. O teu terror viverá em mim até morrer.

 

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O que é que aconteceu à jovem inocente que há pouco eu voltara a ver no espelho? Ela não voltaria a observar o seu reflexo com o mesmo entusiasmo. Torna-se claro, agora. Sim, uma vez mais vejo o meu rosto, não o de agora, mas o de outrora. Porém, desta vez, o olhar é triste: mostra dor e pena. E tu és a culpada. Tu e a minha maldita adoração por ti. Que outra coisa podia sentir? Eras a minha melhor amiga.

Já não me vejo a descer as escadas a correr e a abraçar o meu pai. Estou cabisbaixa e a minha mãe pergunta-me se me estou a sentir bem. Repetirá esta pergunta em todos os dias dessa semana, até que acabo por ficar de cama com febres altas. Eu sabia que não me virias visitar. Sabia que nunca mais serias a minha Guida, aquela que me trazia revistas sempre que estava doente. Mas outras o fizeram. Só me lembro bem de uma, porque me falou de ti.

– A Margarida está diferente. Anda sempre com o grupo do Rafael. Sabes?... Aquele do 12º ano. Não sei se isso será bom. Eles são malta da pesada. A minha prima disse que eles se metem no pó... e já ouvi dizer que a Margarida anda no mesmo...

Não quis ouvir mais nada. Não quis ouvir mais nada. Repeti para mim própria que nada daquilo era real. Que tu continuavas a mesma criatura mágica e que, a qualquer minuto, irias irromper no meu quarto e mandar-me sair da cama com o teu sorriso de sempre.

Mas eu estive doente durante uma semana e tu não apareceste... o médico não identificara a causa da minha febre, mas eu sabia que era o choro antecipado pela tua perda.

O regresso ao liceu foi horrível. Eu não sabia viver sem ti, sem o teu apoio. Sentia-me perdida, como se aquela escola não fosse minha. E olhava ao meu redor na esperança de te encontrar. Mas não foste às aulas. E, pelo que me disseram, já não aparecias há alguns dias.

O tempo passava lentamente e aprendi a estar sozinha. Por vezes, uma colega da nossa turma tentava aproximar-se, mas desistia. Não as queria perto de mim, não sabia falar com elas. Era como se não falássemos a mesma língua. Só tu me compreendias. E era só a tua companhia que eu queria.

Foi só no fim da semana que te vi. Estavas a fumar, sentada no muro, e o Gabriel estava abraçado a ti. A princípio, não te reconheci: estavas pálida, os teus olhos tinham perdido o brilho e pareciam macilentos. Acenei-te, mas penso que não me viste, ou, então, fingiste não me ver.

O teu aspecto tinha piorado muito. No entanto, não é aquela imagem que retenho na minha memória. Continuo a ver-te como antes.

 

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Soube, pelas nossas colegas, que a nossa directora de turma tinha mandado um comunicado à tua mãe por causa daquelas faltas todas. Disseram-me que a tua mãe te tinha feito uma cena horrível, mas a verdade é que não voltaste à escola. E eu não podia continuar assim. Então, numa tarde depois das aulas, decidi ir até tua casa. Foi a tua mãe que me abriu a porta e me disse que não estavas. E eu perdi toda a força. Estava tão farta de te ver a fugir de mim. Porque é que não me deixavas ajudar-te?

Sentei-me no degrau à frente da tua casa e comecei a chorar. A tua mãe ficou muito preocupada e mandou-me entrar. Juro-te que não lhe queria contar nada, Guida. Mas eu já não aguentava mais aquela culpa sozinha. E talvez isso te ajudasse. Mas já o deveria ter feito há muito mais tempo.

Contei-lhe tudo. E vi o olhar da tua mãe a morrer, como o meu já morrera. Mas tu sabes muito bem o que lhe disse. Tu estavas lá, escutando tudo em silêncio, encostada à parede. Se achasses que eu estava a fazer mal, ter-me-ias feito parar. Porém, no fundo, reconhecias a importância e gravidade das minhas palavras.

Quando acabei, a tua mãe chorava duma forma muda e aterrorizante. E foi nesse momento que te fizeste notar. Lembro-me da única palavra que disseste antes de desapareceres pela última vez.

– Desculpa. – E a morte estava nos teus olhos.

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