Dá abraços aí em casa
Seguia as notícias
no jornal do lado, pelos olhos de quem, na verdade, as lia. À cábula, passava
o tempo a olhar no seus óculos, invertendo cada palavra das inúmeras notícias
o mesmo inúmero de vezes para dar sentido ao que se passava mundo fora. O sol
queimava, já todos os passageiros do expresso das beiras tinham respirado os
mesmos átomos, as mesmas moléculas daquele ar viciado. Uma viagem insuportável
que não tinha fim. Ver o rio sujo lá em baixo, no fundo do precipício, até
foi um alívio. Compreendi que a serra só é boa no nome.
O Pedro esperava-me já
em são roque, mãos nos bolsos e o
mesmo ar indiferente de sempre, mas eu sabia-o agradado com a ideia de que ia
finalmente ter alguma companhia. A casa de madeira assentava sobre um armazém
de sal mais velho, que era como que o rés-do-chão. Entrava-se na única divisão
interior por uma escada exterior que nos levava directamente ao piso habitável.
O chão era de madeira e as paredes travestidas de um falso granito ligado com
barro ou algo parecido. Em frente à porta, a única janela da casa, não muito
grande, mas com uma vista magnífica: um labirinto de pequenos trilhos que
cercavam porções de água e que eram pontilhados, de quando em vez, por pirâmides
brancas de sal. À nossa direita, imaginávamos que a pequena serra recortava o
horizonte até o verde das árvores se confundir com o azul do céu; lá mais em
baixo talvez corresse o rio, saltando uma represa, escondendo os peixes. O pedro
tinha espalhado pela sala os dois sofás-cama e a mesa e improvisado, no antigo
armazém, a cozinha e a casa de banho. Perfeito. Pousei as malas, deitei-me e
dormi.
Pela manhã, saímos
às compras para o pequeno-almoço, que tomámos à mesa, sem tirar os olhos do
que a janela em frente nos oferecia, da pacatez aflitiva das aldeolas que nos
pareciam semeadas nas encostas. Decidimos visitá-las pela tarde. O Pedro já as
conhecia. Eu não.
A
primeira em caminho era o picoto. Foi
lá que nos sentámos, no largo da igreja, à conversa com o quim, um velhote
sem vista, amarrado a um cajado. Vestia todo de preto, uma boina de flanela
gasta cobria-lhe a farta cabeleira branca. Tinha os dentes todos. Por isso
percebemos facilmente que tinha cegado no dia em que, para fugir aos lobos, se
enfiou a correr pelo meio de um campo de milho. Disse que lhe doeu muito. Nós
acreditámos. O quim contou também que, em desespero de causa, se pôs a
caminho de fátima, de joelhos, para
ir ao encontro da virgem. Disse que não a viu e que voltou desiludido, mas que
se culpa pelos metros que percorreu a pé para fazer descansar os joelhos
mutilados pelo alcatrão português. Disse ainda que continua a ir à missa
todos os domingos. Deixámo-lo a descansar. Alguns quilómetros à frente, o
pedro apontou para uma casa escondida no meio da vegetação: à porta, abraçado
a uma senhora, vimos um padre, feliz. Era ele quem rezava a missa ao quim todos
os fins-de-semana.
lembro
agora as letras reflectidas nas lentes dos óculos do lado. lembro o avesso. era
bom olhar nos olhos de alguém, olhar outros olhos, bem fundo. essa é a comunhão
máxima, a entrega total, a minha religião, o meu mantra... o deus de que ouço
falar, sei-o agora, não existe. nunca o vi, nunca o toquei. não o sei. se esse
deus for a medida do meu medo, então eu sou deus e todos e tudo o que está à
minha volta também o é. deus é o espaço e o tempo da busca da serenidade
interior em que nos procuramos; é o estar só, descobrir a individualidade que
é cada um de nós, perceber que todos somos excepção, que não somos iguais.
é uma atitude: ser, como o mito foi, é e será a primeira explicação para a
realidade, um atalho para o senso comum, um sinal da pré-história nos nossos
dias de todo o sempre. mas tudo o que somos, tudo o que fazemos sair de nós tem
uma base bem sólida aí, no antes de tudo: não existem anacronismos... a
igreja existe, é a eterna fonte de cultura, a biblioteca das estórias
maravilhosas que tocam a todos, mesmo aos que não acreditam nelas. e este
maravilhoso que a inunda gera poder e interesses, semeados a par e em cruzada
com o evangelho da humildade e do amor, os mais belos ideais. e o que é então
o comunismo senão uma religião?... se gera as mesmas paixões, os mesmos ódios,
as mesmas guerras. Os guiões são perfeitos e belos, mas os intérpretes falham
a execução em ambos os casos. e, no entanto, todos precisamos de uma religião,
todos precisamos de um comunismo; revistos. o armagedão já começou, por
sermos todos diferentes e não amarmos o mesmo deus da mesma maneira. e é só
dançar a mesma valsa lentamente para enganar o tempo, que a nossa morte é tão
mais lenta quanto a vida deixar. e por muito que me calquem os calos, por mais
intensa que seja a dor, a valsa é sempre bonita de dançar. oremos? bah...
Curva
e contra-curva, pseudo-rectas de traço contínuo, eixo, requeixo,
caminhos
de terra batida, pó, foi a estória da viagem à taipa.
O desconhecido rimbaud por debaixo do braço fez-me alguma companhia e distraíu-me
a vista da paisagem que, só no final, me apareceu bela como sei que é. À
direita, à esquerda, em frente e para trás, tufos de verdes loucos que me
entravam pela vista e seguiam para o cérebro, destruindo, pelo caminho, as
vibrações negativas que atrofiam um número infinito de indivíduos. É, como
diz o pedro, a cura para os males da natureza humana.
Sentámo-nos
num banco da praça. Sempre a praça, a mesma praça sempre diferente.
--
Sentes o cheiro dos bagos do arroz no ar?
O
Pedro acenou com a cabeça o sim que não me deixou ouvir.
Bati-lhe
um par de vezes nos ombros e disse-lhe que tinha razão. E ainda a tem; a minha
paranóia é parecida com a dele, mas eu vivo-a em câmara lenta; demoro mais
tempo a trancar portas e janelas e a fechar os olhos no silêncio de um
pesadelo.
--
É engraçado, pedro; não sei se sabes, mas já fui mais novo, já franzi o
sobrolho menos vezes... também não fazia a barba. Sei-o porque parei para
olhar para trás: dezoito baixos-relevos nas minhas costas pouco direitas,
personagens bem familiares que pisaram este mesmo chão que piso com saudade
antecipada; está tanta coisa lá atrás, tanto carinho, tanta dor, tantas
outras saudades...
--
Cheira-me a arroz, àquele arroz por tratar... não notas nada? – nem me
ouviu; estaria a olhar para trás? Já tenho saudades dele...
Cego.
As pupilas dilatam-se para além das órbitas dos meus dois planetas gémeos –
já não vejo os meus satélites, já não vos vejo rodar sobre mim.
Sem
vergonhas, dispo o lençol que cobre a minha crosta, descalço a terra e o sal
por entre os dedos dos pés e mergulho no suor doce que me lubrifica e me faz
escorregar na barreira de odores que ergo com sebo – viajo no epicentro de uma
revolução a quatro sentidos, ouvindo cochichos desdenhosos de estrelas,
cheirando outros suores, outros cios, roçando as arestas de argila de outros hóspedes,
saboreando o leite da galáxia que me acolhe. Cego. já não me espanta a luz
– lembro-me da cor, do calor que me é frio – finalmente olho uma fotografia
e vejo-a em negativo.
O
Pedro desfazia nas mãos as folhas secas de um outono antecipado. Agosto tinha
sido bestialmente quente e não havia água que chegasse para a rega das árvores.
As marinhas já estavam secas. O Manel chorava. Contaram-nos que se tinha
apaixonado por uma rapariga emigrante nas américas, que viveram juntos um verão
inteiro. O Manel dava em doido só de pensar que a rapariga tinha de partir para
terra prometida nos meados de setembro desse mesmo ano. Um dia de manhã, quando
acordou e procurou, sem achar, o abraço do costume, saíu desvairado ria fora,
só parando no monte de sal mais alto para daí jogar à água, desesperadamente,
o anel de noivado que lhe havia comprado com a penhora da arma de caça com que
tinha ganho o concurso nacional. Só se soube dele quando alguém o foi avisar
que o corpo da rapariga tinha sido encontrado, debruçado sobre a ria, cabeça
aberta por qualquer destroço, segurando na mão um anel, o anel de noivado do
Manel.
Fixámos
os seus olhos molhados. Nunca víramos nada de tão verdadeiro: todo o Manel,
todas as músicas, ódios, raivas, amizades, todos os amores que o compunham
estavam lá, embebedando-lhe a vista, chorando-o, a descompasso, por entre o
quase nada e o quase tudo de um gesto – o dele. Chorámos também.
Da
televisão do café chegavam os sons de miúdos a pedirem um natal pacífico em
Agosto. Balas infantis apontadas ao nosso narcisismo. Mataram-nos. Só tive
tempo para meter as mãos nos bolsos e segurar contra mim a fotografia que trago
sempre comigo, o meu pedaço de tempo, o tempo que não perdi de todo.
Desfaço-me.
É a música que ouço que me lembra o espaço, as pessoas, a água que já não
corre lá em baixo e que me atira, da mesma forma bruta, contra os bordos da
almofada, embalando-me nas noites de insónia que afinal não foram.
São-o
agora. E choro outra vez – por mais que
abrace o que deixei para trás, não lhe consigo tocar e receio não encontrar,
na minha velhice mais próxima, a cura para as distâncias que não consigo
cumprir.
Dói-me;
nem me sinto de tão calejado, mas dói-me o corpo todo, doem-me os braços, as
pernas, dói-me a cabeça – dói-me – o pedro diz que me dóis. fecho os
olhos e sei que é verdade. Pelos sons que escrevo, pelas palavras que me chegam
aos ouvidos, consolo os arranhões que desenhaste em mim matematicamente e é
por essas feridas matemáticas que agora respiro... ao longe... de longe; estás
sempre perto, mas nunca perto demais.
Sentei-me
e ouvi, uma vez mais, a banda dos corações solitários do sargento pimenta;
voltei a olhar para trás para ouvir o som das flautas, os choques dos tempos,
as pausas, o bombo, o ritmo dentro de mim que rebentava com tudo o que em mim não
era positivo – o meu lemi leki sama. quero saber qual o tempo das respostas,
necessariamente provisórias, mas que arrefeçam
tudo o que se cruza em mim e me faz regressar ao presente que tenho vivido lá
para trás, para onde olho a cada dia do ano que passo – tudo sucessões, as
minhas, as de um regresso ao meu passado que falho ciclicamente, um mesmo círculo
que se torna, a cada volta completa, mais pequeno.
Sou-me;
vejo-me caído no chão de betão de um país que não é o meu e que invado
regularmente – o criminoso que sou olha a lua, ama-a, porque o sol ilude;
sente, no ar que me rodeia, a música sem tempo dos tempos idos para ficar, das
gentes que ecoam, ano após ano, a mesma melodia clorofílica, cansada.
Calmamente,
ciclicamente, a nave que navega o meu horizonte, propõe-me a diferença, a paz
– o carinho de que ouço dizer sermos feitos – por troca com o meu conflito.
E,
viciosamente, talvez virtuosamente, rejeito-o.
Há
muito que o perdi, mas, sempre que me olho no céu, vejo o que em mim se falta
cumprir – uma partilha, um fruto, supostamente um projecto – e a mão que me
acena para não partir parte de dentro de mim e diz que me ama.
Olho
as estrelas que se escondem no leite, a areia no mar que não vejo, e encontro
no frio que sinto o calor que me vive – tudo me parece fácil... e não me sei
feliz na infelicidade de o saber – acho-me em labirintos de rostos e de estórias
– de quereres que misturam o meu passado e o meu presente, erguendo, em
momentos próximos, os meus passados-presentes futuros. labirintos são palavras
cruzadas de sentidos absolutos, o sempre que entreabro nas minhas alucinações
de três entradas – uma ponte que não une margens, porque existe só uma.
Não
sei se é carinho o que sinto, mas sei-me em mim quando te quero ao meu lado,
para juntar as pontes que somos e chegarmos juntos mais depressa à outra margem
– aquela que sabemos não existir.
--
Ei! acorda! Vou dar uma volta por aí. Abre-me a porta quando chegar – já estávamos
em casa... Abri. Mas entre as horas de ausência, fixei demoradamente as flores
desbotadas que o pedro queria pôr fora – temos todos tão pouco tempo. Para nós
e para os outros. Para tudo. E tudo precisa de tempo, mas o tempo não precisa
de nada para realçar os defeitos e tornar vulgares as qualidades, as nossas, o
quê de excepcional que todos temos. E a excepcionalidade do nosso ser está na
tranquilidade de a sabermos em nós e não sentirmos necessidade de a mostrar a
quem quer que seja; tê-la é vivê-la, revelá-la somente a quem o fizer da
mesma forma natural, sem peneiras ou disposições mútuas antecipadas; amando
– a felicidade está aí, ao virar daquela esquina onde aquilo que é só
nosso, e aquilo que é de todos, se tocam. O tempo acentua esse desejo de
partilha, torna-o desesperado, força revelações. Às vezes basta um gesto, um
olhar, uma conversa mais demorada, para me julgar nessa esquina onde o meu peito
se abre para tocar um outro peito num abraço apertado. Talvez tenha todas as
minhas hormonas aos saltos, talvez nâo; talvez seja bem mais que isso. Talvez
tenha medo de ficar sozinho, medo de tornar os momentos em que sou só eu em mim
mesmo em momentos em que, não estando comigo, não estou com mais ninguém. Egoísmo
puro.
Pedro:
Sigo-me.
Parece que ando em círculos em torno do que quero descobrir. Sigo o meu rasto,
mas não estou perdido. Pelo contrário. Esta viagem em que me guio tem sido
extraordinária em todos os aspectos: tem-me refreado os ânimos, tornado mais
confiante, menos agressivo, mais tolerante. Com os outros e comigo mesmo. E, no
meio desta descida dos níveis de adrenalina que sempre me acompanharam, está
uma sofreguidão, uma voracidade imensurável, mas sã, por mim.
É
estranho, mas, finalmente, parei para pensar. Sinto-o. E sei-me melhor; dou razão
àquele tipo que me dizia que, um dia, havia de começar a perder o gosto pelos
extremos, o meu fundamentalismo, e que me haveria de aproximar do razoável.
Estou mais são. E esta satisfação permite-me pensar noutras coisas.
Permite-me a ousadia de afirmar que a arte e que a filosofia não têm razão de
ser se não forem um instrumento ao serviço do homem, uma porta reveladora da
capacidade que temos de nos ultrapassar, transcender, descobrir no nosso mais íntimo
e recôndito recanto. E que nos são essenciais. E que o pai natal e o deus que
somos todos nós, também: que políticos temos de ser todos nós; ser político
é ser não absorto, é não ignorar o que nos rodeia, é formular posições,
ideias, pontos de vista e saber discutir, comunicar, partilhar tudo isso. O
poder é secundário e faz mal. É não político. É tachista. Tem mau hálito.
Não quero ter poder.
Quero
só o essencial, aquilo de que sinto falta; quero que o meu projecto de vida se
concretize, é tudo... quero a casa sem divisões, ampla, com as três portadas
de alto abaixo por onde entra muita luz, o barzinho no canto oposto ao da
aparelhagem, da bateria e das guitarras que forram a parede; quero a tijoleira e
o jardim onde vejo os putos crescerem a brincar, comigo e com a mãe... quero
iludir-me, iludir todo o mundo, e deixar de pensar que, um dia, pura e
simplesmente, vou deixar de existir e que, antes disso, vou sofrer à medida que
for vendo as personagens que já guardo na minha memória desaparecerem do meu
convívio, do meu dia-a-dia, da minha vida. Às vezes parece tudo tão absurdo,
tudo tão sem sentido, por me saber condenado e ter a certeza que esta realidade
que vivo momentaneamente é amplificável para todos nós, sem excepção. É
estranho, mas, no fundo, percebo que vivo algo que me é absurdo.
E,
no meio do absurdo, dou comigo a pensar frequentemente que, num fim-de-semana de
inverno, a alguns anos-luz deste nosso tempo, pego no carro, nos putos e na mãe
deles, e parto pela ria, a minha ponte-de-três-entradas, o meu país, primeira
e última morada. A meio da viagem, enquanto passo de caixa, olho para o lado e
vejo-a sorrir para mim. Sorrio também. Sou feliz.
Dá
abraços aí em casa.
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