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André Pinheiro Moreira

 Universidade de Aveiro - Design
Aluno n.º 16594

1º Prémio



Dá abraços aí em casa

Seguia as notícias no jornal do lado, pelos olhos de quem, na verdade, as lia. À cábula, passava o tempo a olhar no seus óculos, invertendo cada palavra das inúmeras notícias o mesmo inúmero de vezes para dar sentido ao que se passava mundo fora. O sol queimava, já todos os passageiros do expresso das beiras tinham respirado os mesmos átomos, as mesmas moléculas daquele ar viciado. Uma viagem insuportável que não tinha fim. Ver o rio sujo lá em baixo, no fundo do precipício, até foi um alívio. Compreendi que a serra só é boa no nome.

O Pedro esperava-me já em são roque, mãos nos bolsos e o mesmo ar indiferente de sempre, mas eu sabia-o agradado com a ideia de que ia finalmente ter alguma companhia. A casa de madeira assentava sobre um armazém de sal mais velho, que era como que o rés-do-chão. Entrava-se na única divisão interior por uma escada exterior que nos levava directamente ao piso habitável. O chão era de madeira e as paredes travestidas de um falso granito ligado com barro ou algo parecido. Em frente à porta, a única janela da casa, não muito grande, mas com uma vista magnífica: um labirinto de pequenos trilhos que cercavam porções de água e que eram pontilhados, de quando em vez, por pirâmides brancas de sal. À nossa direita, imaginávamos que a pequena serra recortava o horizonte até o verde das árvores se confundir com o azul do céu; lá mais em baixo talvez corresse o rio, saltando uma represa, escondendo os peixes. O pedro tinha espalhado pela sala os dois sofás-cama e a mesa e improvisado, no antigo armazém, a cozinha e a casa de banho. Perfeito. Pousei as malas, deitei-me e dormi.

Pela manhã, saímos às compras para o pequeno-almoço, que tomámos à mesa, sem tirar os olhos do que a janela em frente nos oferecia, da pacatez aflitiva das aldeolas que nos pareciam semeadas nas encostas. Decidimos visitá-las pela tarde. O Pedro já as conhecia. Eu não.

 

A primeira em caminho era o picoto. Foi lá que nos sentámos, no largo da igreja, à conversa com o quim, um velhote sem vista, amarrado a um cajado. Vestia todo de preto, uma boina de flanela gasta cobria-lhe a farta cabeleira branca. Tinha os dentes todos. Por isso percebemos facilmente que tinha cegado no dia em que, para fugir aos lobos, se enfiou a correr pelo meio de um campo de milho. Disse que lhe doeu muito. Nós acreditámos. O quim contou também que, em desespero de causa, se pôs a caminho de fátima, de joelhos, para ir ao encontro da virgem. Disse que não a viu e que voltou desiludido, mas que se culpa pelos metros que percorreu a pé para fazer descansar os joelhos mutilados pelo alcatrão português. Disse ainda que continua a ir à missa todos os domingos. Deixámo-lo a descansar. Alguns quilómetros à frente, o pedro apontou para uma casa escondida no meio da vegetação: à porta, abraçado a uma senhora, vimos um padre, feliz. Era ele quem rezava a missa ao quim todos os fins-de-semana.

lembro agora as letras reflectidas nas lentes dos óculos do lado. lembro o avesso. era bom olhar nos olhos de alguém, olhar outros olhos, bem fundo. essa é a comunhão máxima, a entrega total, a minha religião, o meu mantra... o deus de que ouço falar, sei-o agora, não existe. nunca o vi, nunca o toquei. não o sei. se esse deus for a medida do meu medo, então eu sou deus e todos e tudo o que está à minha volta também o é. deus é o espaço e o tempo da busca da serenidade interior em que nos procuramos; é o estar só, descobrir a individualidade que é cada um de nós, perceber que todos somos excepção, que não somos iguais. é uma atitude: ser, como o mito foi, é e será a primeira explicação para a realidade, um atalho para o senso comum, um sinal da pré-história nos nossos dias de todo o sempre. mas tudo o que somos, tudo o que fazemos sair de nós tem uma base bem sólida aí, no antes de tudo: não existem anacronismos... a igreja existe, é a eterna fonte de cultura, a biblioteca das estórias maravilhosas que tocam a todos, mesmo aos que não acreditam nelas. e este maravilhoso que a inunda gera poder e interesses, semeados a par e em cruzada com o evangelho da humildade e do amor, os mais belos ideais. e o que é então o comunismo senão uma religião?... se gera as mesmas paixões, os mesmos ódios, as mesmas guerras. Os guiões são perfeitos e belos, mas os intérpretes falham a execução em ambos os casos. e, no entanto, todos precisamos de uma religião, todos precisamos de um comunismo; revistos. o armagedão já começou, por sermos todos diferentes e não amarmos o mesmo deus da mesma maneira. e é só dançar a mesma valsa lentamente para enganar o tempo, que a nossa morte é tão mais lenta quanto a vida deixar. e por muito que me calquem os calos, por mais intensa que seja a dor, a valsa é sempre bonita de dançar. oremos? bah...

 

 

Curva e contra-curva, pseudo-rectas de traço contínuo, eixo, requeixo,

caminhos de terra batida, pó, foi a estória da viagem à taipa. O desconhecido rimbaud por debaixo do braço fez-me alguma companhia e distraíu-me a vista da paisagem que, só no final, me apareceu bela como sei que é. À direita, à esquerda, em frente e para trás, tufos de verdes loucos que me entravam pela vista e seguiam para o cérebro, destruindo, pelo caminho, as vibrações negativas que atrofiam um número infinito de indivíduos. É, como diz o pedro, a cura para os males da natureza humana.

 

 

Sentámo-nos num banco da praça. Sempre a praça, a mesma praça sempre diferente.

 

-- Sentes o cheiro dos bagos do arroz no ar?

 

O Pedro acenou com a cabeça o sim que não me deixou ouvir.

 

Bati-lhe um par de vezes nos ombros e disse-lhe que tinha razão. E ainda a tem; a minha paranóia é parecida com a dele, mas eu vivo-a em câmara lenta; demoro mais tempo a trancar portas e janelas e a fechar os olhos no silêncio de um pesadelo.

 

-- É engraçado, pedro; não sei se sabes, mas já fui mais novo, já franzi o sobrolho menos vezes... também não fazia a barba. Sei-o porque parei para olhar para trás: dezoito baixos-relevos nas minhas costas pouco direitas, personagens bem familiares que pisaram este mesmo chão que piso com saudade antecipada; está tanta coisa lá atrás, tanto carinho, tanta dor, tantas outras saudades...

 

 

-- Cheira-me a arroz, àquele arroz por tratar... não notas nada? – nem me ouviu; estaria a olhar para trás? Já tenho saudades dele...

 

Cego. As pupilas dilatam-se para além das órbitas dos meus dois planetas gémeos – já não vejo os meus satélites, já não vos vejo rodar sobre mim.

 

Sem vergonhas, dispo o lençol que cobre a minha crosta, descalço a terra e o sal por entre os dedos dos pés e mergulho no suor doce que me lubrifica e me faz escorregar na barreira de odores que ergo com sebo – viajo no epicentro de uma revolução a quatro sentidos, ouvindo cochichos desdenhosos de estrelas, cheirando outros suores, outros cios, roçando as arestas de argila de outros hóspedes, saboreando o leite da galáxia que me acolhe. Cego. já não me espanta a luz – lembro-me da cor, do calor que me é frio – finalmente olho uma fotografia e vejo-a em negativo.

 

 

O Pedro desfazia nas mãos as folhas secas de um outono antecipado. Agosto tinha sido bestialmente quente e não havia água que chegasse para a rega das árvores. As marinhas já estavam secas. O Manel chorava. Contaram-nos que se tinha apaixonado por uma rapariga emigrante nas américas, que viveram juntos um verão inteiro. O Manel dava em doido só de pensar que a rapariga tinha de partir para terra prometida nos meados de setembro desse mesmo ano. Um dia de manhã, quando acordou e procurou, sem achar, o abraço do costume, saíu desvairado ria fora, só parando no monte de sal mais alto para daí jogar à água, desesperadamente, o anel de noivado que lhe havia comprado com a penhora da arma de caça com que tinha ganho o concurso nacional. Só se soube dele quando alguém o foi avisar que o corpo da rapariga tinha sido encontrado, debruçado sobre a ria, cabeça aberta por qualquer destroço, segurando na mão um anel, o anel de noivado do Manel.

 

 

Fixámos os seus olhos molhados. Nunca víramos nada de tão verdadeiro: todo o Manel, todas as músicas, ódios, raivas, amizades, todos os amores que o compunham estavam lá, embebedando-lhe a vista, chorando-o, a descompasso, por entre o quase nada e o quase tudo de um gesto – o dele. Chorámos também.

 

Da televisão do café chegavam os sons de miúdos a pedirem um natal pacífico em Agosto. Balas infantis apontadas ao nosso narcisismo. Mataram-nos. Só tive tempo para meter as mãos nos bolsos e segurar contra mim a fotografia que trago sempre comigo, o meu pedaço de tempo, o tempo que não perdi de todo.  

 

Desfaço-me. É a música que ouço que me lembra o espaço, as pessoas, a água que já não corre lá em baixo e que me atira, da mesma forma bruta, contra os bordos da almofada, embalando-me nas noites de insónia que afinal não foram.

 

São-o agora. E choro outra vez – por mais  que abrace o que deixei para trás, não lhe consigo tocar e receio não encontrar, na minha velhice mais próxima, a cura para as distâncias que não consigo cumprir.

 

 

Dói-me; nem me sinto de tão calejado, mas dói-me o corpo todo, doem-me os braços, as pernas, dói-me a cabeça – dói-me – o pedro diz que me dóis. fecho os olhos e sei que é verdade. Pelos sons que escrevo, pelas palavras que me chegam aos ouvidos, consolo os arranhões que desenhaste em mim matematicamente e é por essas feridas matemáticas que agora respiro... ao longe... de longe; estás sempre perto, mas nunca perto demais.

 

 

Sentei-me e ouvi, uma vez mais, a banda dos corações solitários do sargento pimenta; voltei a olhar para trás para ouvir o som das flautas, os choques dos tempos, as pausas, o bombo, o ritmo dentro de mim que rebentava com tudo o que em mim não era positivo – o meu lemi leki sama. quero saber qual o tempo das respostas, necessariamente provisórias, mas que  arrefeçam tudo o que se cruza em mim e me faz regressar ao presente que tenho vivido lá para trás, para onde olho a cada dia do ano que passo – tudo sucessões, as minhas, as de um regresso ao meu passado que falho ciclicamente, um mesmo círculo que se torna, a cada volta completa, mais pequeno.

 

 

Sou-me; vejo-me caído no chão de betão de um país que não é o meu e que invado regularmente – o criminoso que sou olha a lua, ama-a, porque o sol ilude; sente, no ar que me rodeia, a música sem tempo dos tempos idos para ficar, das gentes que ecoam, ano após ano, a mesma melodia clorofílica, cansada.

 

 

Calmamente, ciclicamente, a nave que navega o meu horizonte, propõe-me a diferença, a paz – o carinho de que ouço dizer sermos feitos – por troca com o meu conflito.

 

 

E, viciosamente, talvez virtuosamente, rejeito-o.

 

Há muito que o perdi, mas, sempre que me olho no céu, vejo o que em mim se falta cumprir – uma partilha, um fruto, supostamente um projecto – e a mão que me acena para não partir parte de dentro de mim e diz que me ama.

 

 

Olho as estrelas que se escondem no leite, a areia no mar que não vejo, e encontro no frio que sinto o calor que me vive – tudo me parece fácil... e não me sei feliz na infelicidade de o saber – acho-me em labirintos de rostos e de estórias – de quereres que misturam o meu passado e o meu presente, erguendo, em momentos próximos, os meus passados-presentes futuros. labirintos são palavras cruzadas de sentidos absolutos, o sempre que entreabro nas minhas alucinações de três entradas – uma ponte que não une margens, porque existe só uma.

 

 

Não sei se é carinho o que sinto, mas sei-me em mim quando te quero ao meu lado, para juntar as pontes que somos e chegarmos juntos mais depressa à outra margem – aquela que sabemos não existir.

 

 

-- Ei! acorda! Vou dar uma volta por aí. Abre-me a porta quando chegar – já estávamos em casa... Abri. Mas entre as horas de ausência, fixei demoradamente as flores desbotadas que o pedro queria pôr fora – temos todos tão pouco tempo. Para nós e para os outros. Para tudo. E tudo precisa de tempo, mas o tempo não precisa de nada para realçar os defeitos e tornar vulgares as qualidades, as nossas, o quê de excepcional que todos temos. E a excepcionalidade do nosso ser está na tranquilidade de a sabermos em nós e não sentirmos necessidade de a mostrar a quem quer que seja; tê-la é vivê-la, revelá-la somente a quem o fizer da mesma forma natural, sem peneiras ou disposições mútuas antecipadas; amando – a felicidade está aí, ao virar daquela esquina onde aquilo que é só nosso, e aquilo que é de todos, se tocam. O tempo acentua esse desejo de partilha, torna-o desesperado, força revelações. Às vezes basta um gesto, um olhar, uma conversa mais demorada, para me julgar nessa esquina onde o meu peito se abre para tocar um outro peito num abraço apertado. Talvez tenha todas as minhas hormonas aos saltos, talvez nâo; talvez seja bem mais que isso. Talvez tenha medo de ficar sozinho, medo de tornar os momentos em que sou só eu em mim mesmo em momentos em que, não estando comigo, não estou com mais ninguém. Egoísmo puro.

 

 

 

Pedro:

 

 

Sigo-me. Parece que ando em círculos em torno do que quero descobrir. Sigo o meu rasto, mas não estou perdido. Pelo contrário. Esta viagem em que me guio tem sido extraordinária em todos os aspectos: tem-me refreado os ânimos, tornado mais confiante, menos agressivo, mais tolerante. Com os outros e comigo mesmo. E, no meio desta descida dos níveis de adrenalina que sempre me acompanharam, está uma sofreguidão, uma voracidade imensurável, mas sã, por mim.

 

 

É estranho, mas, finalmente, parei para pensar. Sinto-o. E sei-me melhor; dou razão àquele tipo que me dizia que, um dia, havia de começar a perder o gosto pelos extremos, o meu fundamentalismo, e que me haveria de aproximar do razoável. Estou mais são. E esta satisfação permite-me pensar noutras coisas. Permite-me a ousadia de afirmar que a arte e que a filosofia não têm razão de ser se não forem um instrumento ao serviço do homem, uma porta reveladora da capacidade que temos de nos ultrapassar, transcender, descobrir no nosso mais íntimo e recôndito recanto. E que nos são essenciais. E que o pai natal e o deus que somos todos nós, também: que políticos temos de ser todos nós; ser político é ser não absorto, é não ignorar o que nos rodeia, é formular posições, ideias, pontos de vista e saber discutir, comunicar, partilhar tudo isso. O poder é secundário e faz mal. É não político. É tachista. Tem mau hálito. Não quero ter poder.

 

 

Quero só o essencial, aquilo de que sinto falta; quero que o meu projecto de vida se concretize, é tudo... quero a casa sem divisões, ampla, com as três portadas de alto abaixo por onde entra muita luz, o barzinho no canto oposto ao da aparelhagem, da bateria e das guitarras que forram a parede; quero a tijoleira e o jardim onde vejo os putos crescerem a brincar, comigo e com a mãe... quero iludir-me, iludir todo o mundo, e deixar de pensar que, um dia, pura e simplesmente, vou deixar de existir e que, antes disso, vou sofrer à medida que for vendo as personagens que já guardo na minha memória desaparecerem do meu convívio, do meu dia-a-dia, da minha vida. Às vezes parece tudo tão absurdo, tudo tão sem sentido, por me saber condenado e ter a certeza que esta realidade que vivo momentaneamente é amplificável para todos nós, sem excepção. É estranho, mas, no fundo, percebo que vivo algo que me é absurdo.

 

E, no meio do absurdo, dou comigo a pensar frequentemente que, num fim-de-semana de inverno, a alguns anos-luz deste nosso tempo, pego no carro, nos putos e na mãe deles, e parto pela ria, a minha ponte-de-três-entradas, o meu país, primeira e última morada. A meio da viagem, enquanto passo de caixa, olho para o lado e vejo-a sorrir para mim. Sorrio também. Sou feliz.

 

 

Dá abraços aí em casa.

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