MOÇA
Jesus, Jesus mas que é isso?
É porque se parte a lancha?
AMA
Estás parva ou quê, minha tansa,
E hei-de eu chorar por isso?
MOÇA
Por minha alma que cuidei,
E que sempre imaginei
Que choráveis pelo marido...
AMA
Qual marido e qual pança,
Até já penso que é gay!
MOÇA
O que é que a senhora disse,
Será que disse caguei?
Anda com um vocabulário
Que eu nunca imaginei!
AMA
Leixa-me ora, eramá,
Que dizem que não vai já!
MOÇA
Petas, senhora, petas!
AMA
Petas não, que eu bem ouvi,
Disse-me a Dona Lili.
MOÇA
Isso é que não pode ser.
Estão quase em plena ria!
E rogue à Virgem Maria,
Que ele volte são e salvo.
AMA
Cala-me já essa boca!
Que o diabo não te oiça.
MOÇA
Ai, olhe minha senhora,
Eu vou é lavar a loiça.
AMA
Olha, fight no passado!
MOÇA
(Ela julga que eu sou burra...)
Lá por ser mera criada,
Não pense que não sei nada!
AMA
Eu bem sei que tu bem sabes.
E tu sabes o que eu faço:
Até se ele vai a pescar,
Ali para o canal central,
Bem, tu sabes o que eu sinto...
Quanto mais para São Jacinto!
Quem há-de esperar tanto?
O certo é dar a prazer.
Para que é envelhecer
Esperando pelo vento?
MOÇA
Olhe pela sua vida,
Com tanto descaramento,
Não me vá apanhar sida(1)!
AMA
E tu achas que eu não penso?
Ninguém vem onde tu pensas
Sem o meu consentimento.
Passados
uns instantes, ouvem-se ruídos de passos.
AMA
Quem sobe por essa escada?
JOÃO
Paz esteja em casa honrada!
AMA
Tu! Pensei que era alguém...
JOÃO
Pensas então que eu sou nada?
AMA
Bem, porque é que vieste?
JOÃO
Venho em busca de mim,
Pois no dia em que te vi,
Nos teus olhos me perdi!
Passo o dia a pensar
Em ti, minha paixão.
Comigo estarás segura,
Ó meu doce coração!
MOÇA
(Que horror, que azeiteiro,
Mais parece um fanfarrão)
AMA
Que dizes, meu pastelão?
A
moça faz-se desentendida.
MOÇA
Que está você a dizer?
AMA
Tu é que estavas a falar...
Bem, esqueçamos a criadagem.
Virando-se
para João
Estavas tu a cantar
Música para os meus ouvidos...
JOÃO
Ai! sem ti eu não sou nada,
Sem ti não posso viver,
Sem ti não tenho alegria,
Sem ti não tenho prazer!
MOÇA
(Que lindo, mas que romântico!)
AMA
Cala-te para aí, meu traste,
E vai lavar o penico.
MOÇA
Não sei de nenhum penico...
AMA
Mas sei eu cá de um jerico!
JOÃO
Deixa essa anormal de lado
E olha para um coitado,
Pois sem ti, eu não sou nada,
Sem ti não posso viver,
Estar sem ti, é como estar
Trinta dias sem comer.
A minha cama sem ti,
É como um cacto sem água!
A tua boca, tão vermelha
É uma rosa perfumada.
Não arranjas homem melhor
Em todo Aveiro, senão eu,
Que tenho um Alfa Romeo
E um Rolls Royce na garagem,
E para apanhar aragem
Tenho um descapotável...
MOÇA
Mas que grande convencido,
Pensa
que somos parolas?
Vai é lavar as ceroulas!
Vai-te embora, meu larilas!
JOÃO
Está calada, sua parva,
Vai mas é lavar a farda.
Senhora, como permite
Criada tão atrevida?
AMA
Bom, deixa isso para lá...
Tu querias cá ficar?
Agora não pode ser,
Tenho muito que fazer,
Meu irmão está para chegar.
Telefona-me mais tarde
E tudo bem se fará.
João
Fanfarrão sai de cena
MOÇA
Muito bem, minha senhora,
Fez uma boa escolha,
Mandou embora esse trolha!
Que fanfarrão, multieramá!
Passam
uns breves instantes, em silêncio.
AMA
Um Zeca andava aqui
Meu namorado perdido...
MOÇA
Quem? O parvalhão de lilás?
AMA
Mas antes tinha cabaz...
MOÇA
Mas agora é um coitado
Todos os dias lixado
Por ter gasto o dinheiro todo.
AMA
Não é ele homem dess’ arte.
MOÇA
Você dele não se esqueceu?
Há tanto que não apareceu...
AMA
Quant’ eu não sei dele parte...
MOÇA
Mas quando ele souber
Que o marido não está,
Ele aparecerá...
LEMOS
Está aí alguém em casa?
AMA
Quem está lá?
LEMOS
Posso entrar?
AMA
Seja quem for, que suba.
LEMOS
Vosso corista, senhora!
AMA
Há que tempo que não vinhas...
Pensei que já eras morto,
Ou tinhas um corno torto
De marrar contra a parede.
LEMOS
Não tanto como o marido
De uma dama que eu conheço.
Corno tem tão retorcido
Que até se enreda nas redes.
É por todos conhecido.
AMA
De quem estás tu a falar?
MOÇA
Oh minha Santa Engrácia
É mesmo uma pascácia.
Não vê que fala de si?
AMA
Fecha a tua matraca,
Que só sabes dar barraca.
Lemos
e a Ama dirigem-se para o quarto.
LEMOS
Deixa lá isso mulher,
E vem para cá ver isto...
Aguenta-te com esta
Aguenta-te com essa
A culpa não foi minha
Tu é que querias festa.
Ouve-se
a Moça a cantar na cozinha.
MOÇA
O caldinho já está
Entornado na camisinha.
AMA
Deixa lá a ladainha
E põe lá a camisinha(2).
LEMOS
Sim, já chega de conversa,
Vamos começar a festa,
Que eu estou tão excitado,
Não espero nem um bocado!
De
repente toca o telemóvel.
MOÇA
Telequeca, fala a Moça!
JOÃO
Acabei de a bater...
MOÇA
Que tipos de danos houve?
JOÃO
Que
eu me lembre, nenhum.
Só feri a mão direita.
A
Moça dirige-se ao quarto com o telemóvel na mão e surpreende o Lemos e
a Ama, que dá um grito.
MOÇA
Mas o que é que se passa?
LEMOS
Não tens nada a ver com isso!
Volta mas é para a cozinha
E vai mas é ver a massa.
A
Ama pega no telemóvel e fala com o João.
AMA
Quem é que está desse lado?
JOÃO
É alguém desesperado!
AMA
Lá começas tu com tretas,
Que queres tu desta vez?
JOÃO
Estou farto das tuas petas
Diz-me que sim só uma vez....
A
Ama fala em voz baixa.
AMA
Que sim? Mas que sim o quê?
Não estou para te aturar
Pois já me encontro servida.
Ficará para outra dia
Em que haja outra saída.
Meu marido a São Jacinto
Vai muito frequentemente
Logo vos convidarei
A entrar cá no bem quente.
Desliga
o telefone e diz para Lemos.
Tens de te pôr a andar
Era a prima de Viseu
Que está quase a chegar.
Se me vir com um zebedeu,
Ao meu marido irá contar.
Lemos
sai de cena e a Ama dirige-se à cozinha.
AMA
Que andas tu a fazer?
MOÇA
Estou cá a pensar para mim,
Onde é que ele há-de andar...
Quase um dia se passou
E o pobre sem voltar.
AMA
De quem estás tu a falar?
Está mas é para aí calada,
Que já não te posso ouvir.
Vai é fazer o comer
E pára de me zurzir!
MOÇA
Não posso fazer o comer,
Estou à espera do mexilhão.
Vou fazer uma caldeirada
Para agradar ao patrão.
AMA
Meu marido está a chegar?
Que chegada e que prazer....
Diz
em voz baixa.
Nem sequer sabe nadar...
Era bom que se afogasse
E outro mais rico e forte
Desta vida me tirasse...
Entra
em cena o marido, com dois baldes de mexilhão.
MARIDO
Boa tarde, minha prima!
Aqui está o mexilhão
Que em todo o dia apanhei.
Muitos trabalhos passei,
Tenho a mão toda cortada.
Por isso não digas não
E vai fazer a caldeirada.
Não te esqueças do chouriço.
AMA
Estou sem cabeça para isso.
Em toda a tarde chorei,
Eu nem si como me sinto...
E tu lá em São Jacinto,
Lá farias tu das boas...
Lá há mulheres mui fremosas
E nós, as fieis esposas
A sofrer, a ouvir missa!
MARIDO
Mas
tu comeste a chouriça
Que te deixei para o almoço.
Nem todo o dia choraste!
E se te preocupaste
Por mim, que sou teu marido,
Tua obrigação fizeste,
Para meu contentamento.
AMA
Espero é que tu não tenhas
Apanhado um esquentamento (3).
A apanha do mexilhão
Pode ser o meu tormento...
MARIDO
Vejo que estás mui cansada
De tanto que trabalhaste.
Queres tu ir jantar fora,
E damos folga à criada?
AMA
Si, que estou mui enfadada.
(1)
- SIDA (Síndroma de Imunodeficiência Adquirida). A Sida é uma
doença incurável, transmissível entre seres humanos, contraída
sobretudo por via sexual e via paterno infantil. É provocada por
um vírus -
o VIH (vírus de imunodeficiência humana)
(2)
- Camisinha (ou camisa de Vénus) - nome que se dá normalmente ao
preservativo, o método mais eficaz e também o mais usado para evitar o
contágio de doenças sexualmente transmissíveis e no planeamento
familiar.
(3)
- Esquentamento -
nome como é popularmente conhecida a gonorreia, doença transmitida por
via sexual. Manifesta-se por um corrimento uretral, habitualmente
purulento, acompanhado por uma sensação de ardor ao urinar. Era, antes
do aparecimento da SIDA, uma das doenças sexualmente transmissíveis mais
disseminadas, a par da sífilis e do herpes.
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