Duas rodas entre
canais
MANUEL
NETO - Em Amesterdâo
A
manhã está fria, gelada, a ameaçar uns pingos de chuva. Sentado
num ancoradouro, onde aguardo o barco que me vai conduzir através
dos principais canais da cidade, observo os edifícios que me
rodeiam e a forma singular e civilizada como tudo está
organizado.
Amesterdão
é, antes de mais, uma metrópole tranquila e inspiradora, berço
do humanismo e da tolerância e uma das poucas sobreviventes ao
crescimento desmedido e aterrador que caracteriza outras capitais
europeias.
A
tipicidade das suas construções, assentes sobre estacas erguidas
quatro metros abaixo do nível do Mar do Norte, a simplicidade e a
educação das suas gentes, bem patente no respeito pelo próximo,
o colorido embriagante dos parques, ruas e jardins, a disciplina
com que todos se movimentam e cruzam ao longo dos melancólicos
canais — sejam pessoas, bicicletas, automóveis ou barcos — e
o ambiente de calma e bem-estar que se respira são, só por si,
encantos que enchem a alma e alimentam de forma saudável
sentimentos e emoções.
O
barco chega, lentamente, levando-nos a outros portos de um mesmo
porto, à descoberta de novas paragens e experiências, rumo ao
coração de uma cidade (en)cantada e apaixonante (ah, como tinha
razão Jacques Brel!), enquanto o mestre
de cerimónias vai explicando, em vários idiomas, os monumentos
e outras curiosidades que decoram as margens desta «Veneza do
Norte».
Prédios
estreitos, onde se adivinham escadas sinuosas, com as fachadas dos
telhados ornamentados pelas empenas alusivas às mais diversas
origens e consideradas um ícone de Amesterdão, vão desfilando
de forma ordeira e semelhante, enquanto outros desnivelados ou
inclinados para a frente a fim de permitir um melhor escoamento
das águas ou facilitar as mudanças das mobílias, conferem à
paisagem um aspecto carismático e divertido.
Um
dos aspectos que mais salta à vista são as enormes janela que
dominam as fachadas das casas, abertas de par em par, muitas delas
sem cortinas, como se nada tivessem a esconder. Mesmo assim, o
convite ao voyeurismo é uma tentação a que não consigo resistir...
Outro
aspecto a realçar é o frenético comércio que se faz sentir e o
bom gosto patente nas lojas, especialmente no centro da cidade,
limitado pelos quatro principais canais: Singel, Keizersgrache,
Herengracht e Prinsengracht.
A
par das já tradicionais, velhinhas e ferrugentas 400 mil
bicicletas conduzidas com invejável perícia e que estão por
todo o lado, algumas transportando famílias inteiras, também os
cafés são fiéis companheiros para todas as horas, gostos, vícios
e necessidades, funcionando como verdadeiros locais de convívio e
bem-estar.
Entre
estes destacam-se pelas suas características próprias os tão
famosos e apreciados coffeeshops,
onde é permitido comprar e consumir drogas ditas «leves»,
seja cannabis, haxe, cogumelos alucinogénicos ou outras especiarias do género.
Enfim, uma grande pedrada.
Manuel
Neto,
in:
"Diário de Notícias", 1/12/2002, p. 50.
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