A 19 Dezembro de 1972, uma terça-feira angolana, estava na
Intervenção, no Grafanil, quando recebi a informação de que o meu primo
António da Cunha Ferreira estava mobilizado para Angola. Embarcava a 4 de
Janeiro do ano seguinte. Vinha trabalhar para Luanda, na Messe de Sargentos,
situada na Avenida dos Combatentes.
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Passei o Natal em Luanda
e esperei pelo novo ano. No dia em que o meu primo chegava ao continente
africano, houve o azar do Batalhão de Caçadores 3848, do qual eu fazia parte,
integrado na C. Caç. 3387, como 1.º cabo padeiro, ter ido para uma operação em Canacassala. Evidentemente que esta deslocação inesperada me alterou
completamente os planos, impedindo-me o encontro com o meu primo. |
No
Grafanil, em Luanda. À esquerda, António C. Ferreira; à direita, Mário
Ferreira da Silva, o autor deste bolor angolano. |
Regressados da operação, fui falar com o furriel da alimentação, o camarada
José Mendes Plácido Godinho, para lhe pedir um pequeno favor, pequeno,
porque de fácil concretização. Pedi-lhe que, «quando tivesse que se deslocar
à messe de sargentos, se podia ir com ele», explicando-lhe que «o meu primo
veio para Angola nos começos de Janeiro e eu gostava de poder encontrar-me
com ele».
No dia 24 de Janeiro (quarta-feira) 1973, pelas 12h00, estava o meu primo a
executar a profissão de caixeiro na messe dos sargentos na Av. dos Combatentes
em Luanda. Eu estava na fila para tirar a senha de refeição e pagar. Pela cara
que fez ao ver-me ali, ficou surpreendido, com a minha presença. E não era para
menos, pois ele recebera a minha informação de que eu estava em operação para
os lados de Canacassala e não contava comigo ali.
– Mário, este local é para sargentos.
– Eu sei. Fui promovido na mata. Vim fazer-te uma visita. Eu até estou à civil.
Por isso, não podes saber o meu posto.
Um furriel que estava atrás de mim disse-lhe:
– É meu convidado. Sou o furriel Godinho da alimentação da companhia do Mário.
Esta foi uma forma de lhe fazer uma visita.
No final do almoço, esperei que o meu primo acabasse o serviço, para podermos
conversar durante um bocado.
– António, já foste à Portugália?
– Não. Ainda não saí daqui. Também só cheguei há poucos dias, no dia 4 de
Janeiro. O serviço aqui é muito. Temos que dar almoços e jantares, de maneira
que o tempo é pouco.
– Quando tiveres uma folga, vamos almoçar fora e dar uma volta pela baixa e
marginal.
– Está bem! Quando eu puder, digo-te alguma coisa.
E se bem o disse, bem o fez. Quando soube que ia ter uma folga, entrou em
contacto comigo. Fui ter com ele à messe de Sargentos. Quando lá cheguei, vi
que estava fardado. Por isso, disse-lhe:
– António, tu vens fardado? Porque não vais à civil?
– Não tenho dispensa.
– Mostra-me a dispensa que tens. Oh, não tem carimbo? Só tem a assinatura? Tens
alguma em branco?
– Tenho. Porquê?
– Vai buscar. Não te preocupes.
Preenchi a dispensa conforme estava a anterior e assinei com tinta diferente.
Ainda me lembro perfeitamente disto, como se tivesse sido ontem. Foi com uma
esferográfica que escrevia a verde. Assinei-a como se fosse algum graduado
ligado à messe. E saímos.
Baixa de Luanda, na década de 1970
Fomos a pé até à baixa. Pensáramos parar na Portugália, mas para comermos
marisco o melhor era no restaurante Marisqueira Amazonas, a uns 200 metros da
Portugália, na Av. Restauradores. Sentámo-nos numa mesa da esplanada,
apreciando as jovens que passavam, enquanto aguardando a chegada dos «canhangulos»,
as nossas canecas de cerveja, e do camarão. Quando chegou o material, pedi ao
empregado que nos trouxesse «Caranguejo de Moçâmedes». Passado algum tempo, o
empregado trouxe duas bases, pequenas peças em madeira para sobre elas podermos
partir as pernas dos crustáceos, e dois maços de madeira. Ao ver aquilo, o meu
primo disse-me:
– Mário, para que é isto?
– É para partirmos as partes mais duras do caranguejo.
– É preciso um maço? Será assim tão duro?
– Quando o empregado veio com a travessa com o caranguejo
todo escarranchado, percebeu logo o motivo da ferramenta. Nessa altura, pedi
mais dois canhangulos e o molho especial, cujo nome já se me apagou da memória.
Era um molho que parecia feito de gema de ovo e mostarda e era colocado na
carcaça do caranguejo com cerveja. Fosse lá o que fosse, o que é certo é que
era bom e estava uma maravilha.
O meu primo estava preocupado com o preço. Acalmei-o,
dizendo-lhe:
– António, não te preocupes com o preço. Se eu te
convidei, sou eu quem tem de pagar.
– Ó Mário, quanto é que vais pagar? O Camarão, os
Canhangulos o Caranguejo…
– Já te disse para não te preocupares. Na próxima pagas
tu.
No final, com os nossos depósitos bem atestados de
marisco e uns canhangulos bem bebidos, pedi conta. Paguei 38$00.
No regresso à messe de sargentos fomos a pé. Durante o
percurso, à volta de uns dois quilómetros, disse ao meu primo:
– Apanho o Machibombo na Avenida dos Combatentes. Em
breve estarei no Grafanil.
– Quando é que podemos sair outra vez? – Perguntou-me o
meu primo. Na próxima és tu o meu convidado.
– Da minha parte posso sair todos dias. Só tenho que me
levantar de manhã cedo para ir à Manutenção Militar buscar o pão e distribuí-lo
ao pequeno-almoço. Depois disto, tenho o resto do tempo por minha conta.
– Está bem. Assim que eu souber que tenho uma folga,
entro em contacto contigo. Ou então vais passando aqui pela messe, quando fores
ao BO, o Bairro Operário, tanto mais que te fica em caminho.
Passados uns dias, chegou a folga do meu primo e fomos
até à baixa. Durante o percurso a pé, perguntou-me ele:
– Mário, tu conheces isto? Onde é que podemos ir comer
bacalhau?
– António, o bacalhau aqui é caro. Onde se pode comer
mais em conta é no Escondidinho, que fica na baixa, ou na Floresta, que fica na
Maria da Fonte, mesmo ao lado do mercado com o mesmo nome. Em qualquer deles é
caro, mas não conheço nenhum que faça mais barato.
– Está bem. Já que vamos para a baixa, vamos ao
Escondidinho.
E assim foi. Sentámo-nos numa mesa. Pedi a ementa. Um dos
pratos era bacalhau com grão. Pedi para nós dois e pedi também vinho.
Quando o empregado se afastou, o meu primo disse-me:
– António, tu vais pedir vinho? Aqui o vinho é muito
caro. A cerveja serve muito bem.
– Já estou farto de cerveja. Está a apetecer-me um copo
de vinho com o bacalhau.
Quando acabámos de comer, chamei o empregado e pedi-lhe
um bagaço para cada um. Estava ainda a pedir o bagaço e o meu primo a abanar a
cabeça de um lado para o outro. Mal o empregado se afasta, começa ele a moer-me
a paciência e se eu sabia o que estava a fazer. Disse-lhe que sim, que queria o
bagaço para nós os dois e que «escusas de te preocupar com a conta, porque não
és tu que vais pagar, apesar de ser a tua vez. Hoje estou em dia de pagar. Se
fosses tu, não estava com estas extravagâncias momentâneas.
Quando veio a conta, fiquei sem fala, porque, afinal, o meu primo até estava
certo com os receios dele. A conta ficou pesada, porque 68$00
(1)
era muita massa para um cabo padeiro como eu.
No caminho de regresso, o meu primo fez questão em ir a
pé até à messe dos sargentos. E foi-me perguntando várias vezes:
– António, o que é que achaste do preço? Eu avisei-te!
Mas fizeste ouvidos moucos. Penso que tens uma hipótese de recuperar alguma
massa. Ainda tens dinheiro da metrópole? Pegas nele e troca-lo pelo dinheiro de
cá. Como cem de lá dão duzentos de cá, é a única maneira que estou a ver para
recuperares a massa que gastaste. E se regateares um bocado, pode ser que até
te dêem mais alguma coisa. Mas, diz-me lá o que achaste do preço? Ainda não me
respondeste à pergunta.
– Cala-te. Pára de me chatear com isso. Na próxima, mais
vale comer marisco e beber cerveja. É mais barato e ficamos mais frescos. Para
a próxima é isso que vamos fazer.
De facto, houve uma próxima, mas foi só passados 6 meses,
porque a minha companhia, a Companhia de Caçadores 3387, em Março de 1973, foi
para o Sul de Angola. Fomos parar ao Chiede e a Vila Pereira de Eça, a cerca de
1300 km de Luanda. Só voltámos ao Grafanil em Agosto. E, desta vez, com um
destino bem definido e há muito esperado: o regresso ao Puto, isto é, ao
Portugal metropolitano, em 5 de Setembro
de 1973.
Mário Ferreira da Silva
Aveiro, 20 de Outubro de 2014
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