Peça levada à
cena, pela 1.ª vez — 13-DEZ-1969 (dois espectáculos) — no TEATRO
AVEIRENSE, integrado no "NATAL DA CELULOSE / 1969".
Movimentou
perto de 40 participantes: cenaristas, carpinteiros de cena,
técnicos da luz e do som, actores, contra-regra e ponto...
O TEATRO COMO
ESPECTÁCULO NATALÍCIO
NA COMPANHIA PORTUGUESA DE CELULOSE
A década de
1960 foi a época de mais exibições do Grupo Cénico do CAT/Celulose.
Chegou mesmo a construir-se um pequeno e mal-amanhado pavilhão
em madeira, junto ao Portão Poente, do lado de fora da vedação
fabril, para aí se fazerem os ensaios do Grupo e até para palco,
por duas ou três vezes, dos espectáculos do "1.º de Maio".
As Festas de
Natal, para terem melhores cómodos, realizavam-se em Aveiro, em
um dos grandes palcos da cidade. Mas diga-se desde já que, tanto
nas Festas de Natal como nas do 1.º de Maio, se produziu bom
teatro amador, quase sempre com a participação exclusiva dos
próprios trabalhadores e dos seus filhos, pois muitas das peças
eram dedicadas e feitas pelas próprias crianças em verdadeira
comunhão de cultura com os adultos intervenientes.
E se dou
realce ao teatro feito na década de 1960 é porque, depois do
pronunciamento de 1974, os responsáveis pela realização dessas
festas preferiram recorrer, as mais das vezes, ao aluguer de
grupos cénicos estranhos ao CAT ou ao espectáculo mais baratucho
duma qualquer parelha de palhaços, meio artístico onde nem
sempre abunda a boa qualidade.
O Dr. João de
Almeida, um prestigiado e culto Chefe de Serviços até então ao
serviço da Empresa, no prefácio com que honra o meu livro
"ESCRITOS" (1985), recorda esses tempos: «Muitas das anteriores
Festas de Natal, quase sempre produto da prata da casa — que não
havia, então, dinheiro para mais — tiveram como seus pontos
altos as peças de teatro que o CAT produzia, escritas e
encenadas pelo Bartolomeu Conde, também actor de muito mérito,
numa actividade que constituía, de resto, um prolongamento da
que já desenvolvia no CETA".»
Excluindo o
que, por amizade, é empolado a meu favor, ficam de pé, como
corroboração do que atrás fica indiciado, as peças de teatro
infantil que guardo no meu espólio ARTISTA e que serão, ao fim e
ao cabo, fios de memória eventualmente mais duradoiros que
"aquilo" que a terra transforma em água, bolor e pó.
E ao respigar
para esta edição uma dessas peças (*) — "JOANÃO e JOANINHA" —
presto assim, em nome de uma plêiade de "jovens", testemunho dos
que, ocupando as suas horas de lazer, deixaram o seu nome
gravado em muitas e diversas actividades culturais que se
desenvolveram na Empresa: grupos de teatro, cursos de
alfabetização, aulas de "explicações" a filhos de trabalhadores,
colaboração em boletins informativos e na revista mensal "O
NOSSO JORNAL", cadernos culturais e historiográficos, textos de
prosa, poesia, etnografia... com o posterior beneficio da sua
publicação em livros editados pela Empresa, etc. etc.! Tudo
feito gratuitamente e com a alegria própria de quem vivia numa
comunidade que a si mesma se gabava de ser a "família
celulósica".
Que vos
apraza a leitura de "JOANÃO E JOANINHA".
Bartolomeu Conde
___________________________
(*)
— "A Cidade dos Homens",
"Elogio à Árvore" — jograis: "O Homem da Cobra" — pantomina: e
"Recordando..." — fantasia infantil inspirada no folclore
regional (salineiros, moliceiros, pescadores, desfolhadas,
etc.). Esta peça movimentou mais de trinta crianças, todas
filhas de trabalhadores da Empresa.
II
JOANÃO E
JOANINHA
Narrador:
Atenção! A—ten—ção!
Minhas meninas e meus meninos escutai a fantástica história do
pastor Joanão e da Princesa Joaninha, que ficou com o nariz do
tamanho duma pinha!
Voz de
criança 1: Fala mais
alto!
Voz de
criança 2: Aqui atrás
não se ouve bem!
Voz de
criança 3: Mais alto!
Mais alto!
Narrador:
E agora, ouvis bem?
Voz de
criança (todas): Muito
bem! (palmas)
Narrador:
Pouco barulho! A—ten—cão!
Eu vou principiar a história: havia um pastorzinho chamado João.
Uns, chamavam-lhe João: outros não. Por isso ficou a ser Joanão.
(noutro tom) Não era lá muito esperto, coitado...
Voz de
criança 1: (menina)
Nem lindo!
Voz de
criança 2: Nem sabia
ler!
Voz de
criança 3: Era pobre
como Job!
Narrador:
Chiu! Essa agora! Mas era honrado e leal!
Voz de
criança 4: Era, mas era,
um grande simplório!
Narrador:
Lá isso era! Por Deus,
não tinha maldade nenhuma: Passava os dias com as ovelhinhas, a
tocar flauta... Ouçam, ouçam, lá está ele na Várzea do Outeiro
Verde... (ouve-se música campestre de flauta). Querem
saber, fugiu-lhe uma ovelha... (mé, mé, mé... tlim, tlim,
tlim...)
Joanão:
(entrando)
Borrega, borreguinha, onde estás tu? Anda cá, sou teu amigo!
Borrega, borreguinha...
Narrador:
E foi assim que Joanão
descobriu à janela do Castelo a Princesa Joaninha.
Princesa:
(com uma pomba no regaço) Sobe, sobe lá aos céus, traz-me
um príncipe encantado... e rico... e forte... e belo... Ah! que
quereis pastor?
Joanão:
Procuro minha ovelhinha, Real Princesa! (aparte) Que
linda, ai tão linda!... O meu coração palpita... Minha cabeça
anda à roda... Nunca vi menina tão linda!... (alto) Gosto
de ti, Princesinha!
Princesa:
Tu, pastor!... Ah! Ah!
Ah! (alto) Escudeiros, pagens, cavaleiros, corram daqui
este pastor! Para longe, muito longe daqui.
Pagens:
(entrando de corrida, a empurrar Joanão) Ah! Ah! Ah!
Pagem 1:
Já viram tal palerma!
Pagem 2:
Leva que contar para a aldeia!
Pagem 3:
Se ele cá voltar!
Pagem 4:
Ele que experimente...
Pagens (todos):
Ele que experimente! (voltam
para dentro do castelo)
Narrador:
Claro, Joanão, apesar da
sova, ficou apaixonado pela linda Princesa. Todos os dias
passava com o seu rebanho perto do Castelo do Rei, olhando para
a janela. Por vezes, sentava-se e tocava a sua flauta! Mas
sempre que o via, a princesa mandava-o correr pelos seus pajens.
(Joanão
entra a tocar flauta e a olhar para a janela da Princesa)
Princesa:
(aparecendo à janela)
Fora! Fora daqui... Escudeiros...
(Os
pagens saem a correr do Castelo)
Pagem 1:
Embora daqui, seu palerma...
Pagem 2:
Seu pacóvio...
Pagem 3 e 4:
Pastor de ovelhas ranhosas...
Pagens (todos):
Ah! Ah! Ah! (Voltam
para o Castelo)
Narrador:
Mas o pobre de Joanão
tinha o coração cheio da beleza de Joaninha. Os seus olhos só
viam Joaninha. Um belo dia, o pai de Joanão, sentindo que estava
prestes a morrer, chamou o filho e disse-lhe assim: (Imitando
a voz do Pai de Joanão, pausada) «Estou velho meu filho.
Pouco mais durarei. Vais ficar só no mundo mais as tuas ovelhas.
Chega-te mais a mim, meu filho: olha, há um tesouro enterrado
junto à macieira grande, ao fundo do quintal. Se cavares uma
cova de três palmos, logo encontrarás uma caixa reluzente.
Dentro dela estará uma libra de ouro e uma corneta. Ambas as
coisas são dotadas de poder mágico. A libra, por muitas coisas
que compres, nunca se gastará. E a corneta, quando a tocares,
faz com que apareça de repente um exército numeroso, contra o
qual não há força que o vença. Mas tem cuidado, não comas maçãs
dessa árvore, porque cais na desgraça. Mas se por ventura te
sentires alguma vez infeliz, bebe água da Fonte dos Magos e tudo
te será fácil e bom.»
Narrador:
E dito isto, o bom do
velho morreu. Joanão fez o que o pai lhe dissera e encontrou a
tal caixa, com a libra dentro e a corneta também. E com a libra
comprou um ror de coisas: uma quinta, um moinho de vento, muitas
ovelhinhas, e contratou muitos criados para o servir. A fama da
sua riqueza chegou ao castelo do Rei e a Princesinha, que era
muito interesseira, mandou chamar Joanão, para saber donde lhe
vinha a fortuna.
(Princesa
à janela, cantando uma ária e ouvindo-se, romântico, o som dum
piano)
Joanão:
(alto) Real
Princesa Joaninha, aqui estou! Sou o Joanão, o homem mais rico
destas redondezas. Digo-te que és a mais linda menina que existe
ao cimo da terra! Gosto muito de ti!
Princesa:
(Da janela)
Joanão, meu doce e belo apaixonado, eu também gosto muito de ti.
Aguarda, que quero receber-te pessoalmente à porta do meu
castelo! (retira-se)
Joanão:
(só) Como sou
feliz! Como o meu coração bate com tanta alegria! (ajoelhando-se)
Princesa da minha alma, minha terna companheira de sonhos,
queres ser minha namorada?
Princesa:
(hipócrita, dando-lhe
a mão a beijar) Que felicidade! Como palpito de
contentamento! Sempre te amei e sempre aguardei este feliz
encontro. Ah! Mas uma coisa te peço, meu amado: meu pai, o nosso
bom Rei, quer saber a origem da tua fortuna. Por mim, meu terno
amor, creio em ti, e isso me basta... Mas sabes bem, o Rei meu
pai...
Joanão:
Perfeitamente, linda
Princesa. Toda a minha fortuna vem duma libra que tenho e que
por mais que a gaste, ela volta sempre ao meu poder...
Princesa:
E tu mostras-ma, mostras?
Joanão:
Aqui está Princesinha,
minha querida noiva.
Princesa:
Que linda! Que amor! (aparte)
Agora é só minha!
(Joanão
ajoelha-se para beijar a mão da sua amada, mas a Princesa
repele-o com desdém)
Princesa:
(entrando para o
Castelo) Escudeiros! Corram com este intrujão, que me queria
roubar. Para longe... Para longe... Nunca mais o quero ver. Não
o quero ver...
(Pagens
entrando de roldão)
Pagem 1:
Ah! Grande maroto...
Pagem 2:
Merecias a morte...
Pagem 3 e 4:
Uma Princesa, hein! (agarram
em Joanão, rudemente, batendo-lhe e ameaçando-o de morte)
Joanão:
(estrebuchando) A minha libra de ouro... Eu quero a minha
libra... É minha... É minha...
(Os
pagens atiram com Joanão para o chão. Entram para o Castelo,
fecham a porta, e ouvem-se risos prolongados do interior. João
chora a sua desdita)
Joanão:
A minha rica librinha!
Má Princesa... Sem coração... Impostora... (Alto para o
Castelo) A libra é minha... Minha... Minha. (Levanta-se e
limpa as lágrimas) Ah! A minha corneta? Onde tenho eu a
minha corneta? Ah! Está aqui! (toca ansioso).
(Um
exército organiza-se de todos os lados, ao som do rataplã)
Joanão:
Soldados! Sois o meu
orgulho. Fui ofendido por gente deste Castelo. Vamos tomá-lo de
assalto. A quem obedeceis?
Exército:
A Joanão, nosso Chefe!
Joanão:
Vamos ao assalto!
Artilheiros, preparai as bombardas! Espingardeiros, apontai às
ameias. Archeiros, preparai as frechas! Vou contar até três.
Depois, fogo: Um... dois...
Rei:
(Abrindo, aflito, a porta do
castelo) Senhor Joanão, por quem sois, suspendei o vosso
assalto. Sou um Rei pacífico. Quero a paz. Quero que o meu povo
viva em paz. Nada fiz para que vos revolteis contra mim.
Joanão:
Quero a minha libra,
Majestade. É minha. Nada preciso do vosso Castelo, mas quero a
minha libra...
Rei:
Serenai os ânimos, meu fiel
súbdito. Convido-vos para a minha mesa, pois gosto de ouvir
vossas razões e queixumes. Dizei.
Joanão:
A princesa...
Rei:
Descansai. Sereis bem
recebido... (virando-se para os pagens) Ide por comida e
servi-nos aqui a merenda. Trazei faisão doirado. Vinho do Reno,
ambrósia da Turquia... (para um pajem) depressa... (para
outro) Rápido... (para os restantes) Imediatamente...
(chamando alto) Joa—ni—nha! Joa—ni—nha!
Vozes: (dentro
do Castelo) Joa—ni—ha... Joa—ni—nha... Joa—ni—nha...
Princesa:
(à janela) Meu pai e real senhor, aqui me tendes?
Rei:
Descei e obsequiai a visita
deste fidalgo cavaleiro.
Joanão:
(seduzido) Soldados, dispersai...
Exército:
Viva o nosso Chefe
Joanão! (saem de cena)
Princesa:
(entrando, e falando
ao ouvido de Joanão) Estava a brincar contigo. A libra está
guardada e eu serei tua esposa... meu querido Joanão. (Alto
para o Rei) Meu pai, meu adorado Rei, peço-vos a vossa
bênção... Este cavalheiro é o meu noivo de que vos falei há
momentos!
Rei:
Agrada-me a vossa escolha. É um
homem poderoso... e fá-Io-ei reposteiro-mor do reino. Nas
próximas cortes proporei a sua nomeação para chanceler do selo
privado! (noutro tom) Sentai-vos, senhor... Sentai-vos,
minha filha!
Pagem 1:
(alto, para dentro do
Castelo) O Rei e a princesa já estão à mesa! (Ouvem-se
toques de clarim)
Princesa:
Que lindo dia!
Rei:
Que lindo dia!
Joanão:
(distraído) Ah!
Que lindo dia!
Rei:
Que forte exército vós tendes!
Onde arranjastes tantos soldados? (Criados servem faisão)
Princesa:
Comei!
Rei:
Bebei! Que forte exército vós
tendes! Onde arranjastes tantos soldados?
(Joanão
não responde. Delicia-se com a comida. Bebe)
Princesa: n
Rei:
Comei! (Joanão bebe. Começa
sem compostura. Bebe demais. Dá mostras de estar bêbedo)
Joanão:
Quereis saber,
Majestade, onde arranjei o meu exército? É fácil! Para mim é
fácil. (Arrota) Basta assoprar nesta corneta!
Princesa:
Numa corneta?!
Rei:
Numa corneta?!
Joanão:
Nesta corneta mágica!
Rei e
Princesa: Pode lá
ser!... (trocam olhares espantados)
Joanão:
Experimentai, realezas,
basta assoprar... (passa a cometa ao Rei, que assopra, ao
mesmo tempo que se forma o exército ao som do rataplã)
Exército:
Às ordens do nosso Rei!
Joanão:
(Apatetado e
espantado. Cambaleia) Que ouvi? Às ordens do nosso Rei?!
Exército:
Às ordens do nosso Rei!
Rei:
Levem este pastor reles para
longe do meu palácio... E que eu nunca mais o veja. (empurram
Joanão, que profere sons ininteligíveis. Atiram-no para o chão e
arrastam-no para fora. Riem-se. Fazem caçoada)
Exército:
(alguns soldados)
Pobre pateta... Pastor de ovelhas ranhosas. Querias a nossa
princesa, hein?! (Todos entram para dentro do Castelo. Joanão
arrasta-se para o centro da cena. Levanta-se lentamente. Ouve-se
música triste)
Joanão:
Sinto-me muito infeliz!
Quero morrer! Vou comer uma maçã da macieira mágica, quero
morrer. Perdi tudo... quero morrer! (sai)
Narrador:
Em vez de morrer, como
pensava, cresceu o nariz a Joanão. Cresceu... Cresceu... Cresceu
muito...
Joanão:
(entrando) Que
vergonha, um nariz deste tamanho! Não quero morrer assim. Tenho
vergonha!
VOZ do Pai de
Joanão: (gravada)
Se por ventura te sentires infeliz, bebe água da Fonte dos Magos
e tudo te será fácil e bom, meu filho.
Joanão:
(Batendo na testa e
recuperando todos os seus sentidos) A Fonte dos Magos! A
Minha única esperança! (Sai. Ouve-se entretanto o som de água
a correr e música de agradável fantasia)
Narrador:
Milagre! Mi—la—gre! O
nariz pencudo desapareceu a Joanãol Está radiante o nosso amigo
pastor!
Joanão:
(Entrando) Bem,
isto não vai nada mal. Se eu recuperasse a minha libra e a
corneta, então outro galo cantaria! E não me metia noutra. A
princesa que vá passear... O meu coração está livre dela. (alegre)
Livre dela! (reflectindo) Ora espera, eu vou colher maçãs
da macieira que dá narizes grandes e venho-as vender ao Rei e à
Princesa que tão mal me trataram. Olá se vou! (sai)
Rei e
Princesa: (Saem do
Castelo, em passeio feliz. Ouve-se a música “Lenda do Beijo")
Joanão:
(Vestido de campónio
e apregoando) Quem quer maçãs fresquinhas, que dão
inteligência aos ignorantes, força aos velhos e noivos
elegantes? Quem quer...
Rei:
(interrompendo)
Camponês, dão força aos velhos? Dá cá uma.
Princesa:
O que dizes? Noivos
elegantes? Dá-me uma que seja de efeitos rápidos. (comem as
maçãs sofregamente. Ouve-se música mágica, dão um grito e quando
se viram para o público mostram um nariz descomunal)
Princesa:
(Correndo para o
castelo) Ai! Ai! Ai! Que desgraça!
Rei:
(Só. Entretanto o campónio desapareceu a rir) Estou
perdido... Estou perdido (alto) Chamai os médicos... Os
mé—dicos!
Vozes:
(dentro do Castelo) Os
mé—dicos... Os mé—dicos...
Médicos:
(entrando com os seus
apetrechos, Auscultam-no Apalpam-lhe o pulso. Vêem-lhe a língua.
Falam entre si.) Nada há a fazer. (Alto, para o Rei)
A ciência, majestade, esbarra com o impossível! Nem com
transplantações... Nem com a melhor terapêutica será possível
remover o apêndice nasal. No entanto...
Rei:
(esperançoso) No entanto...
Médicos:
No entanto... Chá de
malvas... Ou emplastros de lombrigas, talvez banha de cobra...
Ou fezes de menino macho...
Escudeiro:
(Alto, protocolar)
Majestade Real, os ministros de Vossa Alteza desejam reunir em
Conselho, como está determinado por ordem régia...
Rei:
(para os médicos) Ide.
Não me martirizeis mais. Estou cheio de tanta apalpadela!
Deixai-me. Para nada prestais! (para o escudeiro-mor)
Dizei aos ministros que os espero aqui. Trazei escabelos
suficientes. (aparte) Esconderei o nariz o melhor que
puder. (Entram os ministros, com faixas indicativas dos seus
ministérios: economia, finanças, educação e salvação pública)
Ministro 1:
(vénia)
Majestade!
Rei:
Sr. Morgado-Conselheiro.
Ministro 2:
(vénia)
Majestade!
Rei:
Sr. Duque.
Ministro 3:
(vénia) Majestade!
Rei:
Sr. Visconde.
Ministro 4:
(vénia)
Majestade!
Rei:
Sr. Conde. Sentai-vos! (Os
ministros troçam do nariz do Rei) Senhores ministros, tenho
recebido queixas numerosíssimas e constantes pela maneira como
se processam e executam as leis neste reino. Verifico que os
meus desejos de bem servi o povo são miseravelmente
desrespeitados...
Ministros:
Não é bem assim,
Majestade... Há exagero, por certo... Não podemos aceitar tal
censura...
Rei:
(Esquece-se, na exaltação,
de tapar o nariz com as mãos. Fala com ênfase, quase dementado)
... e o povo lastima e chora tais governantes...
Ministros:
Peço a demissão
imediata... (aparte)
1.º Com
um Rei assim não pode haver ordem...
2.º E
então com este nariz...
3.º O
povo ri-se do Rei...
4.º O
reino está de tanga... O tesouro é saco roto... (No meio
desta desordem aparece um faquir, tocando flauta, música do
"Mercado Persa", em frente ao Rei e a cada um dos ministros. O
faquir pára, faz gestos mágicos, enquanto se ouve música
apropriada. O Rei dá um grito e rodos reparam que o nariz está
já normal).
Rei:
(aos pulos) Estou salvo! Estou salvo! Estou curado!
Milagre! Milagre!
Ministros:
Oh! Ah! Oh! Ah! Mi—Ia—gre! (alto) Viva o nosso Rei!
Viva...
Princesa:
(Entrando desvairada)
Pai!... Ah!... (E cai desfalecida nos braços dos ministros)
Como foi, pai, que isso aconteceu? Só eu continuo uma desgraçada
pencuda... Quem te tirou a penca, pai? (Empertigando-se)
Quem foi, pai, diz, anda...
Rei:
Foi aquele, ali...
Princesa:
Ó meu faquir, meu
faquirzinho... (ajoelha)
Faquir:
(retomando o seu
passo de ballet, toca flauta, pára em frente da princesa. Faz
sortes com as mãos. Nariz na mesma. Reflecte. Toca a flauta..
Todos estão suspensos, como que hipnotizados pelo faquir. Este
pára rápido.) Só por dinheiro... Muito dinheiro...
Ministro 1:
Não há nem um tostão...
Princesa:
(para o Rei) A libra de ouro? Dai cá a libra de ouro.
Rei:
(a limpar supostas lágrimas) Toma-a... Mas a corneta,
não.
Faquir:
Dinheiro... E cor—ne—ta...
Vamos!
Princesa:
Pai desumano...
Faquir:
Cor—ne—ta...
Princesa:
Dai cá a corneta, pai...
Dai cá... Dai cá... (tirando-a rudemente) Aí... Toma lá,
meu faquirzinho...
Faquir:
(despindo-se)
Rei:
Ah! É Joanão...
Princesa:
Ah! É Joanão...
Joanão:
E tu, Princesinha má e
egoísta, ficarás com o nariz que tens. Guarda-o, que bem o
mereces!
Princesa:
(muito afectuosa)
Eu amo-te tanto, meu querido Joanão!
Joanão:
Ah! Ah! Ah! (A
princesa cai, com um longo suspiro, nos braços dos ministros. Os
médicos entram e verificam por auscultação)
Médicos:
O pulso está fraco!... O
coração fraqueja... (alto) Ligaduras. Tragam
ligaduras!... (vozes dentro do Castelo) Li—ga—du—ras...
Li—ga—du—ras...
Princesa:
(Moribunda)
Perdoa-me, Joanão... Perdoa o meu orgulho... Não sou digna desta
coroa! Toma-a (Deixa cair a coroa e desmaia)
Joanão:
Para que me serve isto?
Escudeiro:
Aqui estão as ligaduras!
Médicos:
O caso é grave! Temos de
lhe acudir a tempo!
Ministro:
Imediatamente, para os
aposentos! (levam-na a pulso)
Rei:
Quem tudo quer, tudo perde! (sai)
Joanão:
(só) Quem tudo
quer, tudo perde! — é verdade! Bem, agora vou outra vez para
pastor. Que vão para o diabo o Rei e a Princesa! Que vão para o
Diabo esta libra maldita... (atira-a fora) e esta corneta
que tanta infelicidade me trouxe... (e pisa-a com os pés).
Antes me quero no meio das minhas ovelhinhas... E com esta
alegre companheira!... (sai a tocar a flauta, em marcha
alegre)
FIM