Não
é minha intenção fazer aqui fazer a biografia pormenorizada desta
figura aveirense, até porque nem sequer possuo os elementos que me
permitam fazê-la. No entanto, para que fique registado para os que
nunca o conheceram, diremos apenas que nasceu em Estarreja em 1922 e
faleceu em Aveiro, cidade onde praticamente passou a maior parte da
vida, em 2002.
Não possuímos elementos
biográficos, mas possuímos dele a memória das diversas vezes em que
com ele tivemos a oportunidade de conviver.
Este convívio com o
grupo entre os quais ele costumava estar decorreu com maior
frequência especialmente no período compreendido entre a minha
infância e o meu curso de Românicas em Coimbra. Tal como ele, não
nasci em Aveiro, mas é esta cidade aquela que considero como o
torrão onde as minhas raízes nasceram e fortificaram. Nasci
acidentalmente em Coimbra e vivi parte da infância em Espinho, mas
era em Aveiro que tinha a casa dos meus avós paternos e era nesta
cidade que passava muitos fins de semana, repartidos entre Espinho e
Aveiro e, onde, após o falecimento do meu avô materno, gastava uma
boa parte das então chamadas «férias grandes».
O senhor Fausto Ferreira
era, no meu tempo de miúdo, um dos adultos que fazia parte do grupo que se
reunia após o almoço, na primeira fase, no Café Arcada, no qual
estava integrado o meu pai e várias figuras gradas de Aveiro. E eu
era o miúdo que, por vezes, acompanhava o meu pai e tinha a
oportunidade de estar, por breves momentos, com o senhor Fausto
Ferreira, com o senhor Eduardo Cerqueira, que simpatizava
especialmente comigo e me olhava através da lente redonda colocada
num dos olhos, que ele tirava e voltava a pôr, para se meter comigo.
E no grupo, que era constituído por um número razoável de elementos,
estava também o advogado Mário Gaioso, que verdadeiramente só
descobri quem fora na juventude quando me radiquei definitivamente
em Aveiro. E ainda outras figuras estavam frequentemente presentes,
tais como o Presidente da Câmara, o reitor do Liceu Nacional de
Aveiro, sempre acompanhado da terceira perna de pau – a bengala que
sempre o acompanhava –, etc.
Acabada a primeira fase
dos convívios no café Arcada, porque fechou para dar lugar a um
banco, o grupo passou para o café que entretanto abrira do outro
lado da chamada «Ponte-Praça», ao lado do edifício da Caixa Geral de
Depósitos, que entretanto, passados anos, também acabou por fechar.
Foi precisamente na
segunda fase das reuniões do grupo que ocorreu o episódio mais
caricato, em que o principal protagonista foi o senhor Fausto
Ferreira, tendo como antagonista o meu pai. Foi um episódio que hoje
me faz sorrir, mas que teve o condão de registar mais profundamente
na memória a figura deste aveirense.
Estávamos nos finais de
1969, um ano marcado por uma série de eventos bem marcantes, tão
marcantes que fizeram com que ele ficasse com marcos que nos
marcaram profundamente para o resto da vida. Marcos talvez bem
maiores que os miliários que os romanos foram deixando nas vias que
criaram por toda a península e por todo o império por onde andaram.
Em 1969 estava eu já
bastante ocupado com a investigação por todo o norte de Portugal
para a dissertação de licenciatura. Estava instalado numa pensão em
Vendas de Galizes, no concelho de Oliveira do Hospital, num período
de inquéritos linguísticos e etnográficos neste concelho, quando,
durante a noite, fui obrigado a saltar da cama, que começou a
mexer-se e a deslizar saltitante no quarto onde dormia. A casa
tremia toda e à pressa, em pijama, corri para a rua, assustado sem
saber bem o que fazer. E o susto, meu e de todos quantos
viemos em pijama ou em cuecas para o meio da rua, foi de tal ordem
que não voltámos para os quartos. Na casa ao lado, as paredes tinham
aberto enormes rachas. O muro que separava um terreno agrícola da
estrada alcatroada estava caído. E, de vez em quando, sentíamos que
o chão não estava seguro, abanando ligeiramente. Foi tal o susto que
nos metemos no carro de outro hóspede da pensão e andámos toda a
noite na estrada, de um lado para o outro. Só quando amanheceu
voltámos ao local de onde saíramos. E, durante muito tempo, já em
Coimbra ou em Aveiro, quando passava um camião que fazia trepidar a
casa, voltava a mesma sensação de medo que nos fizera saltar da cama
e vir para a rua em trajes menores.
Aqui temos o primeiro
marco miliar que me marcou neste ano de 69. O segundo viria a
acontecer poucos meses depois, por altura da queima da fitas. Mas a
queima acabou por ficar queimada, porque não se realizou, e eu acabei por ficar
sem cartola, tudo isto porque ocorreu o
rebuliço que marcou o ano académico. Rebuliço tal que muitos colegas
foram na onda feitos tolos. Não foram aos exames e tramaram-se, porque ficaram com o curso por acabar. Foram chamados
para o serviço militar e o curso foi ao ar. E o mais caricato, para
não dizer mais grave, é que, para meu espanto, acabei por ver
aqueles que impediram os outros de fazerem os exames a irem-nos
fazer como se não fora nada com eles. Em suma, contradições
académicas ou parvoíce daqueles que se deixaram ir na conversa.
Apesar da situação
académica, que teve apenas como impacto o ter-me impedido de pôr a
cartola no último ano do meu curso, mesmo assim a situação acabou
por me marcar. O impacto deste estado de sítio académico foi tal,
que deixei de ver os meus companheiros habituais e, pior do que
isso, operou-se uma cisão de tal modo violenta no grupo do meu ano,
pior que o tremor de 69, porque nunca mais, já lá vão mais de 50
anos, nunca mais nos voltámos a encontrar. Os cursos de outros anos,
de tempos a tempos, fazem encontros para matarem saudades, mas do
meu nada de nada: nem encontros, nem encontrões.
Mas o que é que isto tem
a ver com o amigo Fausto Ferreira, estará o leitor destas linhas a
pensar. Não tem nada a ver, mas tem a ver com aquelas pequenas ou
grandes coisas que nos marcam para sempre. E com o amigo Fausto
Ferreira ocorreu um pequeno episódio que me marcou para sempre, não
pela sua importância, mas pelo caricato da situação. Se não me
tivesse marcado, isto é, se não tivesse ficado bem marcado na minha
memória, talvez me tivesse esquecido deste amigo de infância.
Vamos ao que interessa.
Vamos à situação caricata, ocorrida numa tarde após o almoço no café
do outro lado da Ponte-Praça, do lado dos ceboleiros e não mais dos
cagaréus.
Durante todo o ano de
1969, praticamente com todas as cadeiras do curso já feitas, o que
faltava era a cadeira relativa à preparação da tese e a investigação
de elementos para a mesma. Inicialmente, a minha ideia era elaborar
um trabalho que envolvesse os «Estados Unidos das Gafanhas»,
dando continuação ao trabalho que efectuara no final do terceiro ano,
para a cadeira de Linguística Portuguesa com o Doutor Paiva Boléo,
relacionado com a Gafanha da Encarnação. O objectivo posterior era um trabalho
que envolvesse não uma Gafanha, mas todas as povoações desta região
aveirense, completando e desenvolvendo outros trabalhos, dentre os
quais uma certa Monografia da Gafanha de um certo abade da região,
muito referido pelo professor da cadeira. Segundo ele era uma
monografia muito importante, que poderia servir como referência para uma
investigação mais ampla do ponto de vista linguístico e etnográfico.
Mas, por vezes, há forças que nos ultrapassam e marcam a vida de uma
pessoa para todo o sempre.
No decurso dos anos
anteriores, a falta do metal sonante fazia-me ocupar parte do tempo
a dar explicações de várias disciplinas, que nada tinham a ver com o
curso que estava a tirar. Eram explicações de Física, de Matemática,
de Português e outras áreas que me obrigavam a ter de andar sempre a
estudar matérias sem nenhuma relação com a Filologia Românica. Era
uma actividade que me obrigava a ir todas as tardes a casa do
representante da Fiat em Coimbra, porque eu era uma espécie de tutor
do neto. Não é que me custasse muito lá ir, até porque o
ambiente, num palacete ainda hoje existente na Rua do Brasil, era
muito aprazível e as netas, mais ao menos da minha idade, eram uma
simpatia. Mas deixemos isto, que as miúdas não são para aqui
chamadas. Não me lembro já como as coisas se passaram. Mas o que é
facto é que o meu professor de Linguística e futuro orientador da
tese descobriu as razões do meu tempo estar demasiado
sobrecarregado. Chamou-me à parte e fez-me a seguinte proposta:
– Há um metodólogo de
Latim do Liceu D. João III que anda interessado em saber o que
existe sobre «Oliveira e Azeite» nos Inquéritos Linguísticos
realizados pelos alunos do terceiro ano para a minha disciplina.
Lembrei-me de si. Em vez de gastar o seu tempo com explicações,
poderia trabalhar no departamento de Linguística Portuguesa. Eu
apresento-o ao professor de Latim e ajustam o valor a receber no
final de cada mês.
Aceitei a proposta e, no
dia combinado, tivemos uma agradável surpresa. A pessoa interessada
era o meu antigo professor de Latim. E digo tivemos em vez de tive,
porque a surpresa foi dupla. O professor lembrava-se perfeitamente
de mim, por episódios caricatos ocorridos durante o meu sétimo ano
no Liceu D. João III, que mexeram com a minha pessoa por causa de um
certo Pechincha, um professor que só apareceu tardiamente nas aulas,
dadas habitualmente por um professor estagiário, e que tinha certas
manias que eu desconhecia. E sobretudo porque, no final do ano, ele
verificou que o que eu lhe dissera se tinha concretizado. Embora a
minha disciplina preferida fosse o Grego e não o Latim, a bagagem de
conhecimentos que trazia do Latim do ano anterior era muito superior
ao 10 que ele sempre me dava no final de cada período, tudo isto porque fizera
o sexto ano num liceu do Porto e ele não me conhecia. E certo dia,
porque ele me tivesse censurado de não estudar nada para Latim, eu
tive a lata de lhe ter respondido que para tirar um 10 não era
preciso estudar. Tivera no sexto ano no Liceu Alexandre Herculano,
no Porto, um professor demasiado
exigente, que nos obrigava a saber toda a gramática de cor. Se nos enganássemos numa simples insignificância riscava toda a
resposta como se tudo estivesse errado. E ele iria ver, no final do
ano, qual seria a maior nota de Latim de todos os seus alunos. A
prova de Latim desse ano, para azar da maioria, foi extremamente puxada e com
algumas ratoeiras. Mas a bagagem do ano anterior era mais do que
suficiente; e obtive a maior classificação do liceu, com a prova
quase integralmente certa.
A verdade é que, quando
o episódio caricato ocorreu com o amigo Fausto Ferreira, há muito
tinha abandonado o projecto das Gafanhas e o meu trabalho abrangia
praticamente todo o País, pois a pesquisa dos ILBs (Inquéritos
Linguísticos Boléo) tinha permitido descobrir um filão linguístico
e etnográfico interessante, abrangendo não só Portugal, mas todos os
países de civilização mediterrânica: a produção tradicional do
azeite e os costumes relacionados com a oliveira e a apanha da
azeitona.
Ora o ano mais
importante em que as andanças pelo país ocorreram foi precisamente
em 1969, o ano cheio de marcadores nas memórias de uma pessoa. No
período de férias passado em Aveiro, parte do meu tempo era ocupado
na Biblioteca Municipal, um edifício novo que ainda não tinha sido
estreado, um edifício moderno desenhado por um arquitecto de nome Fernando Távora. Embora ainda por inaugurar,
os responsáveis deixavam-me ir para lá trabalhar. E enquanto para lá
não ia, acompanhava o meu pai nas idas ao café e integrava-me no
grupo. E o senhor Fausto Ferreira era dos que mais gostava de
conversar comigo, procurando indagar cheio de curiosidade o que eu
andava a fazer e a razão das minhas idas diárias para a biblioteca.
Num desses encontros, em tom de brincadeira, o amigo Fausto Ferreira
sai-se com esta: – Então agora o meu amigo deu em azeiteiro!
O que foi ele dizer! Foi
uma brincadeira infeliz, que provocou uma chispa imprevista. O meu
pai ouviu e não gostou. Pegou-se com ele, que lhe estava a insultar
o filho. E gerou-se uma tremenda discussão, que me obrigou, a mim e
aos restantes presentes, a pôr água na fervura.
Entretanto veio o mundo
do trabalho, seguido por dois anos de férias forçadas em Angola.
Regressado a Aveiro, tinha entrado no estágio no Liceu Nacional de
Aveiro, pouco tempo depois mudado para Escola Secundária José
Estêvão, porque em Novembro de 1974, poucos meses depois do 25 de
Abril, com a reviravolta de 180 graus operada em todo o Portugal,
todas as escolas mudaram de designação.
E do senhor Fausto
Ferreira ficou a recordação dos tempos em que convivera com ele
durante a minha fase inicial da vida. Apenas esporádica e
fugitivamente o encontrava. Mas, verdadeiramente, só me voltei a
lembrar dele quando o encontrei, em 2001, por altura da celebração
dos 150 anos do Liceu de Aveiro. Depois disto, foi como se um
eclipse tivesse ocorrido, ainda antes de ele ter desaparecido
definitivamente.
Tiveram de passar oito
anos para que alguém mo fizesse novamente recordar. Esse reencontro
com ele, já ausente do mundo dos vivos, ficou a dever-se a um
amigo comum, o amigo Gaspar Albino, que, em finais de 2010, me veio pedir para
eu lhe fazer um PowerPoint para uma palestra evocativa, porque ele e
a filha,
Maria Celeste Pinheiro, iam fazer uma
palestra no auditório do Museu da Cidade em Janeiro do próximo ano.
E voltei a
reencontrá-lo, pela última vez, em Maio de 2019, quando me trouxeram
o espólio relativamente aos
150 anos do Liceu Nacional de Aveiro,
actualmente o AEJE (Agrupamento de Escolas José Estêvão), para eu
reconverter para formato digital e colocar à disposição de toda a
comunidade nas memórias do Liceu de Aveiro. Para minha surpresa,
vejo em várias fotografias um amigo esquecido; e as memórias
cobertas de poeira vieram à superfície. Para que fique
registado, esse espólio documental, se hoje existe, devemo-lo à colega Susana Santos,
que teve a feliz ideia de o compilar para memória dessa celebração. São
desse espólio as imagens a seguir apresentadas, que nos permitem
recordar o saudoso amigo Fausto Ferreira.
Aveiro, 11 de Julho de
2023
Henrique J. C. de
Oliveira
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Recebendo
Alberto Souto e
Fausto Ferreira, |
Fausto Ferreira, o primeiro da primeira fila. |
Já agora, se quiserem
mais imagens que nos recordam Fausto Ferreira, não têm mais do que
clicar no link acima destacado a azul. E para mais elementos
biográficos, cliquem no link seguinte:
Biografia registada
por ocasião da palestra de 21 de Janeiro de 2011.
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