Numa noite escura de trovoada, a tempestuosa esfera a que chamamos
“casa”, causava tumulto e caos onde quer que se fosse. Costuma ser desta
forma que este género de histórias começa, mas não esta, se bem que,
tecnicamente, já foi assim que começou. Mas não será assim o seu final.
Terá esta história sequer um final?
Entre os longínquos, e há muito esquecidos, Vale-Lado-Cá
e Vale-Lado-Lá, fluía o infinitamente profundo mistério, de seu nome,
Rio Sem Nome. Ninguém sabia onde ele nascia e ninguém sabia para onde
ele corria, por isso ninguém nele se atrevia. Na terra em que ninguém
circundava o dia trinta e um de outubro com uma caneta colorida, por
este não existir. Vale-Lado-Cá, conjunto de vários terrenos pintados
pelos pincéis naturais que são as folhas de outono, reconhecidos pela
sua fresca brisa de conforto. Brisa esta, portadora de reminiscências
dos doces que as nossas avós tinham sempre ao lume para o nosso regresso
a casa depois de uma infindável caminhada de quinhentos metros por
turbulentos caminhos de calçada e terra, depois de um cansativo dia de
criativas sabedorias e risos partilhados com novas amizades. Nesta terra
outubro apenas tinha trinta dias.
Henrique era o filho do meio de uma família de
marceneiros, todos eles habituados a uma vida de humildade, mas não
pobreza, felicidade, mas não luxo. Com a idade que, esta semana,
atingiria, às 23:59 do dia trinta de outubro, dezassete anos, começaria
a sua jornada como aprendiz de seu pai na oficina. Seu irmão mais velho
havia sido premiado com uma bolsa de mérito para frequentar uma das mais
prestigiadas universidades europeias, com esperanças de um futuro de
sucesso. Estaria, brevemente, de regresso a casa para celebrar o
aniversário do irmão. Desde então, tinha Henrique dez anos, e visitava o
pai na oficina e mostrava curiosidade para com a delicadeza com que seu
pai alterava as formas da natureza, calçava as luvas que o irmão usava
quando fazia o mesmo, apesar de lhe ficarem bastante largas, mas era
esta a sua maneira de atenuar as saudades que sentia pelo irmão,
enquanto este estava fora. A sua irmã mais nova, de sete anos, por quem
partilhava um forte sentimento de cumplicidade e proteção, tinha
começado dar os seus primeiros passos em direção ao seu futuro, tendo
iniciado, tardiamente, a primeira das épicas jornadas na sua vida, a
escola.
Henrique teria, durante mais alguns dias, dezasseis anos.
Apesar de bom amigo e confidente para aqueles que nele confiavam, não
era uma pessoa muito extrovertida. Era um observador, passeava pela
aldeia, contando as ovelhas que o pastor levava, quantas salsichas o cão
do costureiro tinha roubado ao talhante, quanto tempo demoraria o
talhante a perceber que tinha sido roubado e, enquanto deambulava, sem
rumo ou destino, naquela porção de terra que conhecia melhor que a si
mesmo, reparou numa nova montra que, até então, não tinha visto, naquela
rua pela qual todos os dias caminhava, se calhar não tinha prestado
atenção aos seus arredores, mas era muito pouco provável tal coisa
acontecer.
Uma vez que não tinha ninguém à espera dele, depois das
aulas, visto que os seus amigos tinham ido assistir a um jogo futebol, e
esse não era propriamente o seu passatempo favorito, e tinha ainda duas
horas para regressar a casa, que não era muito longe de onde atualmente
se encontrava, Henrique decidiu explorar a nova e súbita adição à
aldeia. Quando entrou deparou-se com estantes e armários de madeira
antiga, semelhantes às que vira o pai moldar quando era pequeno,
repletas de livros e discos de vinil. Ouvia-se uma melodia ao longe, e
uma voz distinta ecoava nas paredes de fundo bege e padrões peculiares.
No gramofone girava um disco do qual ele nunca tinha ouvido falar, e se
havia coisa sobre a qual Henrique nunca se enganava, era música.
Acompanhada pela música, ouvia-se uma voz feminina, rouca e já gasta por
muitas conversas e na partilha de inúmeras palavras já ditas. Henrique
seguiu a música e a voz. A loja estava completamente deserta, não havia
mais ninguém à vista, além de Henrique e a voz, e encontrou uma mulher,
que devia ter os seus setenta e três anos de idade. Ela estava
empoleirada, num escadote daqueles que têm rodas e passeiam entre
prateleiras, a repor e transportar livros que Henrique sempre queria ter
lido, mas nunca teve a oportunidade. Junto de onde estava, encontrava-se
uma semelhante coleção de discos de vinil. Os olhos de Henrique
brilhavam com a vista de tudo o que a loja exibia.
Henrique não se considerava mergulhado em beleza, mas
também não sentia a sua falta. Henrique tinha cabelos como as noites nas
quais eletricidade
/ 18 / é descarregada, olhos da água que reflete as
aves cantar e pairar nas altitudes e lábios da cor de um mágico pôr-do-sol.
Ao aproximar-se do escadote, a mulher, de seu nome
Brigântia, reparou na presença de Henrique no local. Após este lhe ter
dito que não tinha consigo o dinheiro para levar nada do que ali lhe
interessava, Brigântia, continuando a cantar, simplesmente pegou nas
mãos de Henrique e, com a gentileza de uma fada, deixou cair um livro
nelas. Olhou nos olhos de Henrique e apenas disse:
– Todas as histórias têm uma origem. Encontra a tua!
Henrique, perdido no labirinto de páginas e claves-de-sol
em que estava, sentia-se confuso com o que tinha acabado de experienciar
e, durante uns segundos, ficou imóvel a tentar processar o sucedido.
Questionava-se se Brigântia lhe tinha dito para encontrar a sua história
ou origem. Mas ela tinha de se estar a referir à sua história, tendo em
conta que ele já conhecia as suas origens, sabia quem eram os seus pais
e que toda a sua vida havia vivido em Vale-Lado-Cá. Certo?
O irmão do meio sentou-se num banco perto de uma das
janelas que encontrou, com vista para toda a aldeia, o que era estranho,
pois não se lembrava de ter subido escadas algumas. Ali sentado,
enquanto contemplava ler ou não o livro sem título que Brigântia lhe
tinha entregado. Tinha nas suas mãos, sujas do pó da oficina, uma
coletânea de folhas pintadas, coberta por uma capa envolta em tecido com
tons de verde tão escuro quanto uma esmeralda, nome de sua mãe. Não
havia nada escrito na capa. Depois de um incessante debate interior,
Henrique abriu o livro e deparou-se, imediatamente, com as palavras:
“Tantum illis qui in magicis rebus hunc librum credunt,
aperiet.”
O que é latim para:
“Apenas para os que acreditam em magia se abrirá este
livro.”
Henrique não sabia latim, mas, em baixo das palavras
estrangeiras escritas, constavam palavras, traduzidas à mão, apagadas
pelo tempo. A única coisa que o tempo conservou foi a palavra
“acreditam”.
O jovem rapaz virou então a página, mas não sem antes
olhar pela janela e ver as folhas e chuva cair como peças de um puzzle.
Completavam-se entre si como um jogo que o pai lhe tinha construído, a
partir do cepo da sua árvore preferida, quando esta caiu, devido a uma
tempestade, causada por uma rajada vinda do Vale-Lado-Lá. Tal rajada
seria, provavelmente a única coisa que teria, alguma vez, atravessado o
Rio Sem Nome. Ou teria sido…
Quando acordou, já eram horas de estar a chegar a casa. O
rapaz foi a correr pela rua, nunca a tinha observado à noite, pelo
menos, nunca a tinha observado como observava agora, com pressa e
ansiedade.
Tudo lhe parecia mais escuro, onde costumava ver árvores,
via agora sombras. Onde via as poças pela chuva sedentas, via apenas
buracos, dos quais não sairia se lá caísse.
Quando chegou a casa, a sua família estava toda na mesa,
já tinham jantado, estavam todos com um olhar preocupado. Quando o
viram, Henrique foi cumprimentado com abraços que escondiam a
preocupação e fortes palavras que cobriam a questão:
– Por onde andaste até estas horas, meu filho?
Preocupaste-nos mais do que possas imaginar! Estás bem, meu amor? –
Perguntava a mãe.
– Precisei da tua ajuda na oficina, onde estavas tu? –
Questionava o pai, com um ar desiludido.
Henrique explicou que adormeceu enquanto lia um livro e
mostrou-o a seus pais. Quando estes tentaram abrir o livro, tinham em
suas mãos uma caixa que imitava um livro, sem o recheio visível apenas
por aqueles que acreditam na mesma magia que Henrique. Os menos novos
queriam prosseguir com o inquérito, mas só sentiam felicidade pelo
regresso do filho.
– Ma…gui…gi…cis…Magicis!
Já sei ler! – Entusiasmava-se a mais nova, mas a sua
inocente voz não se ouvia no meio de abraços e argumentos.
Depois de exaltações e explicações, quando uma nuvem de
calma serenidade se fez sentir na casa desta nossa família, todos se
juntaram, como era habitual, nos fins-de-semana, noite de jogos. Uns
sentados no chão, outros de pé a incorporar o seu animal interior,
outros no chão, sem forças, de tanto rir.
Quando acordou, no dia seguinte, Henrique fazia o caminho
que sempre fazia, todos os dias, de lá para cá, de cá para lá, mas algo
havia mudado. Enquanto pisava todos os fragmentos da calçada, o rapaz
recordava o que se tinha mostrado acessível a seus olhos, no dia
anterior, e como tinha adormecido. Nem sabia se chegara à última página
daquela sua história mental ou não.
/ 19 /
Pensando que o levaria de volta a casa, Henrique saltou a
bordo do veículo, quando as portas se fecharam subitamente nas suas
costas, preparava-se para encontrar um lugar antes que lhe pedissem para
pagar. Depois de sentado, o irmão do meio olhou em sua volta e,
comparando-se com os outros membros da excursão, sentia-se excluído pelo
facto de ver em seu redor um grupo de homens altos e musculados,
fatigados de um dia de caça, de procurar abrigo e construir castros, de
recolher alimento. As suas roupas adornadas com medalhões dourados e
suas vestes feitas de pele de dragão, em honra daqueles que, há cerca de
dezassete
anos desapareceram. Henrique saiu do autocarro na
seguinte paragem, mais uma vez sentindo-se de parte e não deixou de
reparar que o motorista não passava de uma árvore cujas raízes invadiram
o volante e pedais.
Reparou também que a madeira desta árvore era a mesma de
que era feita a ponte e aquela com que havia visto seu pai e irmão
trabalhar.
Coberto pelo manto de luar sob o qual agora se
encontrava, Henrique encontrou uma suficiente quantidade de coragem para
pedir informações a um dos habitantes. Foi isso que fez e, quando tocou
no esquelético ombro de alguém que andava à sua frente, envolto numa
negra capa, via-se o que seria o rosto de uma mulher.
Depois de lhe explicar a sua situação, este ser pôs
Henrique à vontade para prosseguir com todas as questões que este lhe
quisesse colocar. Por esta altura, ele já desconfiava daquilo que a
mulher agora apenas confirmava:
– Qual é a… situação deste sítio? – Perguntava o rapaz.
Tendo cuidado com as palavras que escolhia, pois tinha medo do que lhe
pudesse acontecer se insultasse algum dos nativos.
– Querido rapaz, temo que para tudo aquilo que eu te
possa dizer, apesar de talvez ainda não o teres percebido, já conheces
as respostas. – Mistificava a encapuzada.
– O que é que quer dizer com isso? O quê? Como é a vida
nesta terra? É só isso que lhe pergunto. – Interrogava o rapaz confuso.
– Ora, que pergunta esta! Não é, pois claro, meu jovem
rapaz! – Explicava a figura que enfrentava Henrique entre gargalhadas
desfasadas, enquanto apenas abria a porta para mais perguntas.
Antes que o jovem arranjasse o tempo para mais uma
pergunta, a silhueta adicionou:
– Mas não temas, pobre rapaz! Este cobertor de escuridão
ao qual tu chamarias céu, se ainda não mudaram o seu nome desde que vivi
(onde tu agora vives), como um verdadeiro cobertor, por mais que
pontapeado que seja, por mais esticado, por mais antigo que seja, nunca
cobrirá todos nós. Em frente seguirás para encontrar
aqueles que o nosso céu não toca. – E com isto, enquanto
desviava um cabelo, enviado contra seus olhos por cortesia do vento,
Henrique, quando olhara em seu redor, estava sozinho.
No seu retilíneo e contínuo caminho, Henrique deparou-se
com uma árvore, igual à que teria já visto encarregue do autocarro. No
seu tronco escritas as palavras “No dia trinta e um de outubro poderão
Cá e Lá ser unidos”. O pobre jovem, confuso, perdido, assustado e,
agora, também arrependido. Arrependia-se de ter, alguma vez, pensado que
uma vida de aventuras o favoreceria.
“Trinta e um de outubro? O fuso horário é o mesmo de Cá
para Lá e de cá para lá… Talvez tenham já sido apagadas as palavras há
muito escritas. É esta a crueldade do tempo.” Os pensamentos do rapaz
eram feitos som, quando este, desesperado, chamou por ajuda de qualquer
ser que, às suas preces, atendesse. Henrique
ouvia, somente, o eco destorcido da sua voz sonante.
Intensificava-se o eco, sentido cada vez mais próximo e repetido. “Não é
assim que o eco funciona em Cá, mas eu já não sei nada. Só quero
encontrar ‘aqueles que o nosso céu não toca’ e voltar para casa!”
O eco permanecia, mas replicava, agora, as palavras
“Cinquenta e um passos diferem Terras de Cá e Terras de Lá”. Ansioso por
chegar a casa, Henrique seguia, contando os passos. Quando chegou ao seu
destino, deu de caras com um homem de barbas tão longas quanto a falésia
perto da qual se encontrava, estava de costas, sentado num sofá que não
parecia ter descanso de uso. O rapaz repousou a sua vista na paisagem
para a qual o homem parecia olhar. Observava, diante de si, devastação,
destroços restantes do que parecia ter sido, uma vez, uma cidade. Quanto
se fez conhecer, perante a sedentária figura, esta não reagiu à sua
interação. Este homem mostrava cabelos tão claros como os seus olhos que
espelhavam tudo aquilo que, em seu redor, havia.
Ao mover-se abruptamente, Henrique despertou, na pálida
criatura, uma reação. O homem, diferente dos seres que havia, até então,
encontrado tinha um aspeto humano. Quando percebeu que era cego,
Henrique estendeu, ao homem, a sua mão. Quando as duas se tocaram, o
jovem sentiu, dentro de si, o gélido toque da solidão e, sem prévia
partilha de palavras, o homem recitou, melancolicamente, as palavras:
– Todos os dias vejo destruição. Talvez um dia seja
diferente.
/ 20 /
Pensando que o levaria de volta a casa, Henrique saltou a
bordo do veículo, quando as portas se fecharam subitamente nas suas
costas, preparava-se para encontrar um lugar antes que lhe pedissem para
pagar. Depois de sentado, o irmão do meio olhou em sua volta e,
comparando-se com os outros membros da excursão, sentia-se excluído pelo
facto de ver em seu redor um grupo de homens altos e musculados,
fatigados de um dia de caça, de procurar abrigo e construir castros, de
recolher alimento. As suas roupas adornadas com medalhões dourados e
suas vestes feitas de pele de dragão, em honra daqueles que, há cerca de
dezassete anos desapareceram. Henrique saiu do autocarro na seguinte
paragem, mais uma vez sentindo-se de parte e não deixou de reparar que o
motorista não passava de uma árvore cujas raízes invadiram o volante e
pedais.
Reparou também que a madeira desta árvore era a mesma de
que era feita a ponte e aquela com que havia visto seu pai e irmão
trabalhar.
Coberto pelo manto de luar sob o qual agora se
encontrava, Henrique encontrou uma suficiente quantidade de coragem para
pedir informações a um dos habitantes. Foi isso que fez e, quando tocou
no esquelético ombro de alguém que andava à sua frente, envolto numa
negra capa, via-se o que seria o rosto de uma mulher.
Depois de lhe explicar a sua situação, este ser pôs
Henrique à vontade para prosseguir com todas as questões que este lhe
quisesse colocar. Por esta altura, ele já desconfiava daquilo que a
mulher agora apenas confirmava:
– Qual é a… situação deste sítio? – Perguntava o rapaz.
Tendo cuidado com as palavras que escolhia, pois tinha medo do que lhe
pudesse acontecer se insultasse algum dos nativos.
– Querido rapaz, temo que para tudo aquilo que eu te
possa dizer, apesar de talvez ainda não o teres percebido, já conheces
as respostas. – Mistificava a encapuzada.
– O que é que quer dizer com isso? O quê? Como é a vida
nesta terra? É só isso que lhe pergunto. – Interrogava o rapaz confuso.
– Ora, que pergunta esta! Não é, pois claro, meu jovem
rapaz! – Explicava a figura que enfrentava Henrique entre gargalhadas
desfasadas, enquanto apenas abria a porta para mais perguntas.
Antes que o jovem arranjasse o tempo para mais uma
pergunta, a silhueta adicionou:
– Mas não temas, pobre rapaz! Este cobertor de escuridão
ao qual tu chamarias céu, se ainda não mudaram o seu nome desde que vivi
(onde tu agora vives), como um verdadeiro cobertor, por mais que
pontapeado que seja, por mais esticado, por mais antigo que seja, nunca
cobrirá todos nós. Em frente seguirás para encontrar
aqueles que o nosso céu não toca. – E com isto, enquanto
desviava um cabelo, enviado contra seus olhos por cortesia do vento,
Henrique, quando olhara em seu redor, estava sozinho.
No seu retilíneo e contínuo caminho, Henrique deparou-se
com uma árvore, igual à que teria já visto encarregue do autocarro. No
seu tronco escritas as palavras “No dia trinta e um de outubro poderão
Cá e Lá ser unidos”. O pobre jovem, confuso, perdido, assustado e,
agora, também arrependido. Arrependia-se de ter, alguma vez, pensado que
uma vida de aventuras o favoreceria.
“Trinta e um de outubro? O fuso horário é o mesmo de Cá
para Lá e de cá para lá… Talvez tenham já sido apagadas as palavras há
muito escritas. É esta a crueldade do tempo.” Os pensamentos do rapaz
eram feitos som, quando este, desesperado, chamou por ajuda de qualquer
ser que, às suas preces, atendesse. Henrique
ouvia, somente, o eco destorcido da sua voz sonante.
Intensificava-se o eco, sentido cada vez mais próximo e repetido. “Não é
assim que o eco funciona em Cá, mas eu já não sei nada. Só quero
encontrar ‘aqueles que o nosso céu não toca’ e voltar para casa!”
O eco permanecia, mas replicava, agora, as palavras
“Cinquenta e um passos diferem Terras de Cá e Terras de Lá”. Ansioso por
chegar a casa, Henrique seguia, contando os passos. Quando chegou ao seu
destino, deu de caras com um homem de barbas tão longas quanto a falésia
perto da qual se encontrava, estava de costas, sentado num sofá que não
parecia ter descanso de uso. O rapaz repousou a sua vista na paisagem
para a qual o homem parecia olhar. Observava, diante de si, devastação,
destroços restantes do que parecia ter sido, uma vez, uma cidade. Quanto
se fez conhecer, perante a sedentária figura, esta não reagiu à sua
interação. Este homem mostrava cabelos tão claros como os seus olhos que
espelhavam tudo aquilo que, em seu redor, havia.
Ao mover-se abruptamente, Henrique despertou, na pálida
criatura, uma reação. O homem, diferente dos seres que havia, até então,
encontrado tinha um aspeto humano. Quando percebeu que era cego,
Henrique estendeu, ao homem, a sua mão. Quando as duas se tocaram, o
jovem sentiu, dentro de si, o gélido toque da solidão e, sem prévia
partilha de palavras, o homem recitou, melancolicamente, as palavras:
– Todos os dias vejo destruição. Talvez um dia seja
diferente.
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Talvez um dia veja beleza, risos e felicidade, de novo.
Talvez um dia.
O rapaz sentiu-se confuso, pois apesar de não lho ter
confirmado verbalmente, ele, de alguma forma, sabia que o ser humano
diante de si tinha perdido o dom da visão.
Após uma longa conversa, e troca de histórias de vida,
Henrique percebia agora o que Venceslau queria dizer quando mencionou a
destruição com que todos os dias vivia. Teria havido um período de tempo
em que paz e união ligavam os Vales. Venceslau devia ter a idade de
Henrique, nessa altura. No último dia de todos os outubros, a ligação
tornar-se-ia suficientemente forte para que vivos se pudessem reunir com
os seus falecidos e, no dia seguinte, relembrar o tempo que haviam
passado juntos e, durante mais um ano, atenuaria as suas saudades.
Quando os habitantes de Vale-Lado-Cá cortaram e levaram, secretamente,
uma das árvores que
abundam em Vale-Lado-Cá pela sua especial madeira, essa
ligação foi quebrada, despoletando, assim um clima de inimizade entre Cá
e Lá. Vale-Lado-Cá ainda vivia na sombra das consequências dessa
batalha. Uma das vítimas da batalha que esta rivalidade criou, foi a
visão de Venceslau.
O lugar em que se encontrava hoje, discursando com
Henrique, foi o mesmo em que teria sido cegado pela luz de um clarão
vindo do interior da terra. Os últimos movimentos que visualizou, as
últimas formas que a sua mente criou, as últimas cores que viu, foram as
que durante a batalha experienciou. O ódio nos olhos dos combatentes, o
sofrimento na cara dos inocentes, tudo o que teria acontecido naquele
dia o atormentava. Ele apenas gostaria de ter tido a oportunidade de
desviar o seu olhar. Reparar na borboleta que, tão gentilmente, pousava
na folha da árvore, deleitar o seu olhar cansado na vista das aves, que
voavam para sul e, brevemente, regressariam. Da mesma forma que, no ano
seguinte, as aves não regressaram, Venceslau não teve a oportunidade de
desfrutar, visivelmente, a beleza da natureza uma última vez.
Henrique lembrou-se que tinha consigo um walkman que
guardava com carinho, era uma herança de seu pai, que, quando lho
ofereceu, disse:
– Quando sentires que nuvens de tormenta te toldam o
pensamento, ouve esta cassete e sentirás a tranquilidade de um mundo
melhor!
Pensou em partilhar esta experiência com Venceslau, na
esperança de o desatormentar. Ao mesmo tempo que Venceslau recuperava
cor na sua alma, espelhada nos seus cansados olhos, Henrique, abrindo os
seus, encontrou-se de volta a sua casa. Estaria em Cá? Como teria vindo
de Lá?
Henrique tem o livro em suas mãos, o despertador toca, a
sua família entra no quarto cantando-lhe os parabéns, e ele lembra-se:
“É dia trinta e um de outubro, faço dezassete anos!”
Henrique entendia, agora, que Intervalis não teria o nome
que tem por se situar entre dois vales, mas sim por ser o intervalo de
um percurso de vida entre o seu início e o seu fim.
Terá sido
tudo um sonho? Será esta frase o fim? Será este texto um Intervalis?
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