Trajo de RomariaAo cimo da encosta termina o concelho de Azeméis e começa o de Cambra. Em frente, está o lugar das Baralhas; à esquerda, um ramal da estrada para a aldeia das Cavadas; à direita, sinuosa vereda. Por ela, mau grado a sua rudeza, deve seguir quem quiser relacionar-se com o passado da região, pois no monte próximo ergueu-se o crasto de OsseIa. Entre pinheiros e bravos penedais cobrem-se algumas centenas de metros. Na colina, outrora cheia de lares, de muralhas e de armas bélicas, existe agora somente pinheiros, tojo e soledade. Nas rochas, tão trilhadas há milhentos anos, os olhos buscam uma pegada impossível e só vêem indolentes sardões expondo ao sol os seus verdes e os seus oiros. Mas este próprio abandono, este próprio silêncio que se pega à terra de onde a vida humana desapareceu, torna mais sugestiva, Cruzeiro do Rogemais profunda, a áspera paisagem. Chega-se, enfim, ao topo do outeiro. Lá se ergue uma ermida com o seu pequeno adro. E sempre o mesmo silêncio, a mesma solidão. Em baixo, corre o Caima, entre escuros fraguedos. E, na banda oposta, levanta-se outro monte, depois a serrania. O Passado está sob esta terra nua do adro e nas declividades da colina. Nós próprios o vimos, éramos ainda crianças – mas vimo-lo. Foi em 1908. O Museu Municipal do Porto mandou fazer escavações neste cerro. As picaretas trabalharam dias seguidos, sob os olhos do poviléu das redondezas, que acudia em massa, julgando tratar-se de pesquisa a fabulosos tesouros. É que, anos antes, nas Baralhas, aqui pertinho, um sapateiro encontrara, ao abrir os alicerces para um muro, dezasseis manilhas de oiro, trabalho pré-romano, que lhe valeram uma riqueza e deram brado entre os arqueólogos. O crasto de OsseIa reservava, porém, surpresas de outra ordem. / 58 /

Levantadas as primeiras camadas de terra, em breve se ofereciam, aos olhos dos escavadores, várias sepulturas, feitas de lajes, numa das quais se ostentava ainda um crânio. Mais fundo, havia ruínas de edifícios antiquíssimos e exibiam-se restos de muralhas, mais remotas ainda. Moedas de outrora, romanas e lusitanas, fragmentos de cerâmica de várias épocas, fíbulas, pedaços de vidro e de bronze, outros destroços, jaziam na terra. Do encontrado concluiu-se que o morro, estação pré-romana, fora habitado e defendido por diversas raças, ao longo dos séculos. Quando fortificado, devia ter tido duas ou três ordens de muralhas e, dentro, as casas dos habitantes.

Depois destas escavações, a terra, que não foi toda explorada, voltou a fechar-se e assim se encontra, rasa, sobre as suas velhas sepulturas de lajes, até que um dia outras picaretas venham buscar nos declives do morro o mais que ele guarda ainda no seu silêncio e neste abandono a que a melancólica ermida parece fazer sentinela.

De regresso à estrada, vê-se, logo adiante das Baralhas, panorama de pasmar. É o Vale de Cambra. Quase ignorado até há pouco, a sua beleza adquire, dia a dia, maior renome. Cercado de montanhas de formas extravagantes, não é fácil descortinar em Portugal outro mais grandioso e espectacular. Quase não tem planos. Paisagem pitoresca de Vale de CambraA vista desce para a imensa cavidade onde refulgem o Caima e o Vigues; erra entre os campos agricultados e, depois, encontra, lá longe, o contraforte das serranias, onde branquejam dispersas aldeias, humildes casitas. A terra é verde e o céu é azul; é tudo verde e azul, com raras pintas brancas do casaredo, que, mais do que moradias dos homens, parecem janelas da própria paisagem. Ao crepúsculo, porém, o grande vale sofre metamorfose, torna-se policromo – e as suas cores separam-se aqui, muito nítidas, e dissolvem-se e confundem-se além, num encanto visual indescritível. Nas noites de luar, quando o grande balão de oiro surge na lomba das montanhas, o vale enche-se de magia, dum sortilégio que paira desde os píncaros longínquos às águas sussurrantes do Caima. De manhã, é o milagre. Todos os dias há um milagre de luz sobre a terra quando o sol nasce em Vale de Cambra.

O alegre casario alveja em Vale de CambraO espectáculo majestoso pode contemplar-se da estrada, onde há um miradoiro próprio. E pode sê-lo, também, da Quinta da Bela Vista, proeminência onde um homem de bom gosto, o sr. Tavares da Fonseca, mandou edificar uma casa cujas portas se abrem, gentilmente, aos forasteiros que desejem admirar dos seus terraços, erguidos em sítio eleito, este panorama excelso.

 

A estrada desce e entra em Pinheiro Manso, burgo asseado e muito branco, já com os seus ares de urbanismo e de modernidade. Um ramal avança para Castelões, velha freguesia, com algumas vetustas moradias e o seu cemitério e a sua igreja postos em sítio airoso. Sugestão romântica, melancólica embora, não é, porém, a ideia da morte que nos sai, aqui, ao caminho e sim uma ideia de comunhão ilimitada e eterna com a natureza bela que nos cerca, com o sol que prateia as vinhas e os pinhais, os jardins e as vertentes dormindo em silêncio. Estamos já ao pé da serra que se levanta por detrás de Castelões, fechando o Vale de Cambra. E no seu pico ergue-se a / 59 / Senhora da Saúde, ermida até há pouco, recentemente templo maior, acompanhado por um albergue. Para a festa que, lá em cima, se celebra todos os anos, começam a passar aqui, na madrugada de 14 de Agosto, verdadeiras multidões, Vem gente da beira-mar, a muitas léguas de lonjura, vem gente de todos os concelhos próximos, das montanhas vizinhas e das montanhas distantes – e até do Porto e de Coimbra gente vem. Desde as regiões vareiras às regiões de Arouca, não há estrada nem sinuoso atalho onde neste dia não se projecte a sombra dos romeiros a caminho da Senhora da Saúde. Empregam todos os veículos: a tartana remota, que se julga tirada de museu, a diligência de há tantos anos, carroças, tipóias, carros de bois engalanados, camionetas e automóveis.

Velha ponte romana em Vale de Cambra

A maioria vai a pé e a pé nu – que a festa nasceu humilde como a capelita primitiva e é, sobretudo, para gente de pé descalço. Lá vão elas com os pés grandes sobre o pó dos caminhos, a saia nova a bater-lhes na barriga das pernas; sobre a blusa de cor, estreada agora também, os oiros do povo; nas orelhas as arrecadas e, sobre a cabeça, um cesto com o farnel. Ao lado vão eles. Como ganham mais dinheiro do que elas, compraram sapatos para este dia; levam cavaquinhos, harmónicas, violas e, desde madrugada alta, começam a cantar por todos os caminhos. Chegados à ermida, não entram, que já a viram da primeira vez que ali vieram e a festa é mais pagã do que outra coisa. O píncaro está cheio de bandeirolas, de vendedores de quinquilharias coloridas, de frutas estivais, de chitas das mulheres; não há maior cromatismo em parte alguma, nem bulício maior. Eles e elas pousam o farnel debaixo de velho carvalho, na vizinhança dum carro de bois com a pipa de vinho em riba, e logo desatam a bailar, não acompanhando a música da filarmónica de Cambra, e sim a dos milhares de instrumentos populares que os romeiros levam. Bailam, cantam, suam e comem durante o dia inteiro.

À noitinha, as chitas das raparigas, depois do sol e do suor, desbotaram levemente; mas elas e eles compram plumas tingidas e estampas policromas; colocam-nas no peito e no chapéu e, assim adornados, iniciam a descida da serra, sempre a cantar e a bailar, enquanto outros, dispondo de maiores ócios, gastam a noite a fazer a mesma coisa no arraial. ArraialE cantando aqui, parando ali para o bailarico, fazem léguas e léguas, até que a voz do oceano, lá para as terras de Ovar, se sobreponha à voz deles e delas, ou o silêncio das montanhas arouquesas lhes lembre que chegaram a casa – às preocupações da vida, ao árduo trabalho pelo magro pão de cada dia.

Inédito

(Trecho dum trabalho destinado ao «Guia de Portugal»)

Ferreira de Castro
 

 

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