Não digam mal de Aveiro!     

Na linha férrea de Lisboa ao Porto, a seguir à estação das Quintans, o rodado grita nos carris, correndo nestes com velocidade, e em poucos minutos chega-se a Aveiro.

Antigamente, com trémulos na voz, a mulher dos doces cantarolava:

«Qué.é.é...rém... qué.é.ques ó.ó.vo...vos moles... ou mexilhão!»

Sim, estava-se em Aveiro! Mas já o combóio se pôs de novo em marcha − Aveiro passou.

Algum tempo mais e, depois de Cacia, os campos do Vouga, esmaltados de florinhas.

Nas valas que os recortam, os cálices dos nenúfares põem manchas brancas em leitos de folhagem glauca, espalhada largamente.

Animando esse quadro, de longe em longe, um barco perdido no vasto tabuleiro de terras e de águas, ou algumas cabeças de gado, roendo pachorrentamente tenras verduras.

O viço, a cor, o recorte daqueles campos, que se estendem a perder de vista, deixam, sem dúvida, uma agradável impressão, uma imagem que não se apaga de súbito. Mas da fria planura das terras areentas ou argilosas das mais chegadas proximidades de Aveiro, não se podendo supor o que seja a sua vastíssima laguna, o viajante não guardará qualquer bela recordação.

Estas terras da vila marítima, de muito vento e muito pó, sem o perfil de montanhas, de céus varridos de nuvens – tornam-se pouco interessantes!

Em todo o caso e quanto a Aveiro, os «ovos moles» não são maus, se não levarem abóbora... E fala-se nas procissões, na graciosidade das tricaninhas, nos alourados montes de sal, rebrilhando em fundo de anil, nas linhas inconfundíveis do barco moliceiro, que povoa a ria.

Talvez aquele mesmo viajante, incrédulo e mal disposto, algum dia se resolva.

E assim sucedeu. Parou em Aveiro, chegou ao centro da cidade e sentiu-se firme no acerto das suas desconfianças.

As águas da «Veneza do Vouga» estavam baixas e o cheiro da «maresia»... não se enquadra na escala de perfumes de Houbigant.

Uma volta pelo «Parque da Cidade», recanto aprazível, com efeito, − uma visita ao «Museu» e, sem mais demoras, − um passeio até à Costa Nova.

Sim, este passeio talvez dê uma vaga ideia. Não é certo.

As marinhas, os estaleiros da Gafanha − onde repousa a frota bacalhoeira − a vista daí para o lado da cidade, com o pano de fundo das serras, muito ao longe, o sítio do Forte, em apurado asseio − a ponte, o paredão até ao farol e o panorama do cimo deste − para quem se sentir com forças. Do outro lado da barra, S. Jacinto e a Aviação, cujo acesso é facilitado por uma estrada que parte do Forte. Por fim, a Costa Nova, que, infelizmente, quase de todo perdeu a graça das suas características casas de madeira. Como veneranda relíquia, o chamado «Palheiro de José Estêvão» fica mesmo ao chegar à Costa Nova, à direita da estrada, a poucas dezenas de metros.

E depois? Depois... os «ovos moles», em Aveiro, e fugir o mais depressa possível!

Não valeu, decerto, a pena. O dia esteve bom, não houve nortada nem choveu, brilhou o sol. A paisagem é sui géneris, mas monótona!

*

Algumas pessoas que, por força das circunstâncias, têm vindo residir em Aveiro temporariamente, não divergem daquele conceito: «a paisagem é monótona».

Em crise de aborrecimento, chegam a dizer mal de tudo e de todos, mas o aveirense que educar o seu espírito nos princípios da tolerância, não se molesta com a crítica.

Chegou a altura de as ditas pessoas saírem daqui e lá se vão.

Decorrem os tempos e essas mesmas pessoas começam a aparecer em Aveiro... para matar saudades!

Que mais poderia querer o aveirense?

*

Nem todos têm de que penitenciar-se. Há poucos dias, o sr. general Schiappa de Azevedo disse-me o seguinte:

Ao ser-lhe facultada, vai para 24 anos, a escolha de uma guarnição, optou por Aveiro, atraído apenas pela sua situação geográfica, pois na altura desconhecia completamente esta região.

Só teve que congratular-se, desde logo se sentindo atraído pelo meio e pelos encantos da paisagem, original e bem característica, de maravilhosa luz, sendo benigno o clima e excelentes os produtos.

Assim resultou uma permanência efectiva de mais de 10 anos e, chamado a outros destinos, conservou no entanto a sua casa, com o pensamento de, mais tarde, terminado o seu serviço militar, vir a ter residência fixa nesta cidade, que considera encantadora e onde granjeou bons amigos.

Deu realidade ao seu projecto e continua a seguir com apaixonado interesse os grandes progressos que Aveiro vem efectivando. Bem haja S. Ex.ª, pela sua simpatia e pelo seu valioso depoimento.

*

Depois de um daqueles almoços servidos no «Nava», onde os hors d'oeuvre são primorosos, pus-me a caminho do Outão. A pé, evidentemente.

Por companheira, apenas a minha Supero lkonta 2,8. E lá fui conversando com ela e com a paisagem, pela estrada adiante.

Serra e mar! Flores do monte, perfume forte de seivas resinosas. A dois passos, o Oceano.

No regresso, utilizei a caminheta: tinha visto e sentido, tinha compreendido todo o encanto de que me falavam.

Como farão aqueles que pretendem tomar conhecimento com Aveiro?

*

Manhã de leve bruma. O sol vai-se descobrindo. Aqui e além as sombras das terras e dos secos − em que novelos de névoa pousam ainda mas que pouco a pouco se dissipam, como fumo arrastado pela brisa.

Estamos na ria de Aveiro. Lindo! O céu é como que o ecrã dum imenso cinema.

Nesta paisagem, de infindável planura, o que marca, o que é inconfundível nada tem de permanente ou de certo.

O céu azul é apenas o ecrã vazio.

Mas há dias, particularmente há momentos, em que o quadro é de autêntica maravilha.

E não se pode pedir: «Assim mais algum tempo, para que estranhos venham ver isto!»

Todavia, às vezes, por felicidade, passam por cá artistas, príncipes das letras ou da tela, e esses sim, só esses são capazes de fixar e reproduzir o fugitivo momento, capazes de pintar e engrandecer as belezas da nossa terra.

Em certa ocasião de festa no Forte, de regresso à Costa Nova, a pé pela quase destruída estrada da beira do rio, ao fechar do dia, quase noite, o que eu vi; que cores, que cambiantes, que tonalidades!

Chegando à Costa Nova já as luzes estavam acesas.

Nesse cair da tarde senti-me mais feliz por viver.

E de cada vez que tal me suceda maior é o meu amor a esta terra.

Não me digam mal de Aveiro!

Dr. Jaime de Melo Freitas

 

 

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