A Casa Zé Bissa situava-se não muito longe da Praça do
Peixe, com acesso por duas ruas. Para a taberna entrava-se directamente
pela rua dos Marnotos; para a sala de jantar, a entrada directa era pela
rua Sargento Clemente de Morais. Mas no interior ambas as partes tinham
ligação.
É uma casa que remonta à primeira metade do século XX e
que teve o seu auge até finais dos anos setenta.
Na sala de jantar eram diariamente servidas refeições
confeccionadas pela esposa do dono, conhecido como Zé Bissa. Aliás esta
cozinheira, de mão cheia, honrava os pergaminhos da família, pois na
taberna do "Baunites", também família, eram apresentadas igualmente
refeições de grande qualidade. Estas refeições eram habituais nas
tabernas da altura, aliás como acontecia no Baunites, na Camila, no
Necas, no Rogério... Tudo tabernas desse tempo, cujo serviço de
restauração era oferecido nas respectivas salas de jantar – eram
conhecidas como "casas de pasto". Será o equivalente ao que os nossos
vizinhos espanhóis chamavam de "mesons".
A Casa, sendo gerida pelo Ti Zé Bissa e esposa Maria da
Luz ("dona" da cozinha), tinha como responsável da taberna o genro,
Dinis, casado com a Graciete, filha do patrão e que ajudava no serviço
de mesas do restaurante. Embora houvesse outro filho, o Carlos, este
tinha rumado ao Brasil onde constituiu família e por lá ficou.
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De muito pequeno comecei a fazer pequenas visitas à Casa
Zé Bissa: normalmente ao fim da tarde, quando o tempo estava bom. O meu
avô João Sarrazola levava-me a dar uma volta; muitas vezes parávamos no
Zé Bissa, até porque ele gostava de pôr a conversa em dia com o Ti Zé de
quem era amigo e família. Ali ficavam um pedaço à conversa, juntando-se
por vezes um ou outro amigo dos quais ainda me lembro muito bem do Ti Zé
Maria, amigo de ambos que tinha vindo há pouco dos Estados Unidos onde
estivera a trabalhar. O teor da conversa ia sempre parar ao mesmo: o
descontentamento pela situação em Portugal. Eu era muito miúdo, mas
apercebia-me bem do sentimento deles e das novas ideias que o Ti Zé
Maria tinha trazido dos Estados Unidos, onde o desenvolvimento era
enorme comparado com o marasmo de então, no nosso cantinho. Mal sabia eu
que estas conversas estavam a formar um modo de pensar no miúdo, que eu
era, e que mais tarde viriam a ter preponderância fulcral na minha
personalidade e que tem perdurado até aos dias de hoje.
Já adolescente, nos meus 17 anos começo a frequentar
novamente a Casa Zé Bissa, mas agora não para visitar o ti Zé e a ti
Maria da Luz, mas para reuniões aprazadas para o local e que tinham a
ver com jovens democratas de Aveiro, descontentes com o regime e que ali
se reuniam para discutir os seus pontos de vista e programarem esta ou
aquela acção, principalmente nos períodos eleitorais, que era quando o
regime o permitia. Aliás a utilização, pelos jovens, da Casa Zé Bissa
vem na sequência da utilização que era feita pelo núcleo da Oposição
Democrática de Aveiro, que era numeroso e constituído por personalidades
como Álvaro Seiça Neves, António Neto Brandão, Armando Seabra, Carlos
Candal, Costa e Melo, Figueiredo Leite, Flávio Sardo, João Sarabando,
Joaquim Silveira, José Gouveia, Júlio Calisto, Manuel Andrade, Mário
Sacramento, Oliveira e Silva, Pinto da Costa, Reinaldo Saraiva, Santos
Pato, Sousa Santos e tantos outros que me perdoarão por a memória não me
permitir lá chegar.
Todos os que frequentavam estas reuniões na Casa Zé Bissa
sabiam que corriam perigos por serem assinalados pela polícia política
do regime e estarem sujeitos a sevícias. O próprio Zé Bissa e sua
família sabiam
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dos riscos que corriam por cederem as suas instalações para reuniões que
discutiam estratégias de oposição ao regime. Mas, pelos vistos, coragem
foi o que nunca faltou, sobrepondo-se ao clima de terror que um regime
autocrático tentava impor.
Foi no Zé Bissa que se discutiu a organização das
comemorações 31 de Janeiro no ano de 1969, último evento em que Mário
Sacramento participou publicamente. E foi também aí que se desenvolveu a
organização do 2.º Congresso Republicano de Aveiro, que se viria a
realizar em Maio de 1969, já posterior ao falecimento do seu grande
obreiro – Mário Sacramento – que havia falecido pouco antes em finais de
Março.
Até para a constituição da lista da Oposição (CED)
concorrente às eleições de 1969, foi numa reunião no Zé Bissa que se
começou a delinear o esboço, para de seguida se fazerem os contactos com
os possíveis candidatos. As próprias reuniões de elaboração da
estratégia e de escolha dos locais onde se iriam fazer sessões de
apresentação, lá se realizaram. Aliás estas reuniões eram de uma
importância crucial, pois este período (pseudo)eleitoral era o único
tempo em que o regime permitia alguma intervenção cívica, para dar a
entender ao mundo que em Portugal "até havia eleições".
Embora fosse proibida toda a actividade cívica que
acentuasse a tónica da crítica ao regime, desde que não incluída no
curto período eleitoral atrás citado, a Casa Zé Bissa foi sempre a
âncora segura das reuniões da Oposição Democrática de Aveiro e
igualmente dos jovens democratas, em que o autor se integrava.
Em meados de 1972, começou-se a preparar na sala de
jantar do Zé Bissa, aquele que viria a ser o 3.º Congresso da Oposição
Democrática. Tudo começou pela eleição de uma Comissão Executiva, não
sem que anteriormente se tenham reunido nesta mesma Casa os jovens
democratas de Aveiro para indicar os seus representantes nessa mesma
comissão. Foi assim que os jovens Eufrázio Filipe, Mário Bastos
Rodrigues e eu próprio, foram indicados para esta comissão que teria 10
elementos, pois seria completada por Álvaro Seiça Neves, António Neto
Brandão, Carlos Candal, Flávio Sardo, João Sarabando, Joaquim Silveira e
Manuel Andrade.
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No entanto acontece que o Eufrázio Filipe tem de se mudar
para Arrentela, o que o impedia de continuar esta tarefa, tendo sido
substituído por Vergílio Rocha, outro jovem democrata. Mas mais uma
alteração teria que ser feita, pois ao tempo a maioridade era aos 21
anos e dos jovens só Mário Rodrigues havia feito os 21 anos em Maio de
1972. Assim teve que se esperar até Janeiro de 1973 para tornar pública
a Comissão Executiva, pois o autor destas linhas só nesse mês faria 21
anos e o Vergílio Rocha - que faria 21 anos em Julho – teve de abandonar
legalmente a Comissão (embora continuasse a participar nas reuniões),
passando esta a ser de 9 elementos.
É a partir desta eleição da Comissão Executiva que são
convidados os democratas de todos os distritos do país, com vista à
criação de uma Comissão Nacional. Esta reunião foi igualmente realizada
na Casa Zé Bissa e teve participação de inúmeros democratas que num
aceso debate delinearam as linhas gerais com que se orientaria a
realização do 3.º Congresso da Oposição Democrática. Lembro-me de alguns
dos nomes de democratas que estiveram presentes, não propriamente nesta
reunião, mas nas diversas que se realizaram de preparação do Congresso.
Embora sendo uma lista extensa, não evita muitas lacunas
que a falta de memória não me permite colmatar; no entanto, não referir
a presença na Casa Zé Bissa de pessoas que foram bem importantes, quanto
mais não fosse pela coragem demonstrada, seria uma injustiça para a
bravura daquela família e uma traição à História da Casa: Alberto Arons
de Carvalho (Lisboa), Alberto Costa (Leiria), Alberto dos Santos
Januário (Coimbra), Alberto Teixeira de Sousa (Porto), Alberto Vilaça
(Coimbra), Alberto Vilaverde Cabral (Lisboa), Alexandre Faria
(Bragança), Almor Viegas Pires (Porto), Álvaro Brasileiro (Santarém),
Álvaro Monteiro (Setúbal), Álvaro Rana (Lisboa), António Borges Coutinho
(Lisboa), António Galhordas (Lisboa), António Macedo VareIa (Braga),
António Maldonado Freitas (Leiria), António Reis (Lisboa), António Romeu
da Cunha Reis (Coimbra), Areosa Feio (Lisboa), Armando de Castro
(Porto), Arnaldo Mesquita (Porto), Blasco Hugo Fernandes (Lisboa),
Carlos Carvalhas (Lisboa), Carlos Manuel Guerra Fraião (Coimbra), Carlos
Sousa Vale (Castelo Branco), Custódio Maldonado Freitas (Leiria),
Deolinda de Sousa (Porto), Dulcínio Caiano
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Pereira (Lisboa), Egito Gonçalves (Porto), Emílio de Campos Coroa
(Faro), Fernando Semedo (Porto), Flávio Martins (Porto), Francisco
Marcelo Curto (Lisboa), Francisco Pereira de Moura (Lisboa), Gaspar
Teixeira (Lisboa), Gilberto Lindim Ramos (Lisboa), Helena Neves
(Lisboa), Henrique Sousa (Porto), Helder Madeira (Setúbal), Henrique
José de S. Neto (Leiria), Horácio Guimarães (Porto), Humberto Lopes
(Santarém), Jaime Gralheiro (Viseu), Joaquim Augusto Badalinho (Évora),
Jofre do Amaral Nogueira (Porto), José Augusto Nozes Pires (Porto), José
Garrett Guimarães (Porto), José Henriques Vareda (Leiria), José João
Louro (Lisboa), José Luís Nunes (Porto), José Magalhães Godinho
(Lisboa), José Manuel Mendes (Braga), José Saramago (Lisboa), José
Tengarrinha (Lisboa), José Maria Roque Lino (Lisboa), Levy Baptista
(Lisboa), Lindley Cintra (Lisboa), Lino Lima (Braga), Lino de Carvalho
(Lisboa), Lobão Vital (Porto), Luís Filipe Madeira (Faro), Luís Catarino
(Faro), Marcos Antunes (Setúbal), Maria Alina Peixoto (Porto), Mário
Canotilho (Guarda), Mário Sottomayor Cardia (Lisboa), Óscar Lopes
(Porto), Orlando de Carvalho (Coimbra), Pedro Coelho (Lisboa), Rui
Namorado (Coimbra), Santos Simões (Braga), Sérgio Ribeiro (Lisboa),
Sousa e Castro (Porto), Staline Rodrigues (Setúbal), Urbano Tavares
Rodrigues (Lisboa), Vasco da Gama Fernandes (Lisboa), Victor de Sá
(Braga), Virgínia Moura (Porto), Vital Moreira (Coimbra), Vítor Dias
(Lisboa)... e tantos, tantos outros.
Numa dessas reuniões, somos alertados que dois indivíduos
já haviam passado três vezes na rua Sargento Clemente de Morais, pelo
que me pediram para ir ver se os conhecia, não fossem alguns esbirros da
PIDE e, conviria tomar medidas. Eram de facto: um deles que eu conhecia
bem do Porto por já estar referenciado, pois era figura frequente no
"Piolho" o café dos estudantes junto à Praça dos Leões; o outro
acompanhava-o e era um funcionário da Câmara residente nas proximidades
e que fazia uns "servicitos" para a PIDE. As medidas que se tomaram foi
alguém ter saído, dirigir-se a eles questionando-os se procuravam alguma
coisa, o que os intimidou, deixando a rua livre. Com certeza de outro
sítio, ou de uma qualquer janela, controlaram posteriormente quem estava
presente na reunião.
Efectivamente a grande marca da Casa Zé Bissa é sem
dúvida a participação
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activa na luta contra o regime fascista. Se o serviço de refeições era
de grande qualidade e esmerado, também não é menos verdade que outras
casas deste tipo ofereciam idêntico serviço. Se o vinho era escolhido
com critério, igualmente o era noutras tabernas de Aveiro, uma ou outra
com o mesmo fornecedor. Se os petiscos para as merendas eram o deleite
dos clientes, também os havia noutras casas com esta ou aquela variante.
Mas o que não havia em quase mais nenhuma das outras casas (salvo raras
e honrosas excepções) era a coragem de um proprietário e sua família.
Tanta fama tinha a Casa de ser um espaço aberto,
contrário ao cinzentismo da época que outros grupos lá se juntavam,
fosse para qualquer refeição, fosse para uma merenda com o objectivo de
as pessoas se juntarem para conversar, o que seria perigoso noutros
sítios.
Já depois do 25 de Abril vim a saber que era habitual um
grupo de jovens aveirenses encomendarem no Zé Bissa, todas as
sextas-feiras Santas, uma feijoada, como que a desafiarem o jejum
(religiosamente) obrigatório e negando-se ao pagamento da "bula" em
substituição do jejum.
A Casa Zé Bissa deixou de existir nos anos 80. Hoje, em
substituição do edifício antigo está um prédio novo, recém construído.
No entanto faz parte da História de Aveiro e merecia um
tratamento mais digno por parte do poder local, pelo menos na sua
memória. A coragem de Zé Bissa e sua família, os antifascistas que lá
comungaram ideais, são pertença de uma História que sendo de Aveiro,
merece ser recordada e dada ao conhecimento, como exemplo, aos mais
novos cidadãos desta terra.
António Manuel Pinho Regala
Sobrinho neto do Zé Bissa e da Ti Maria da Luz
22 Setembro de 2021_
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