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4ª Série - Número 2 - Junho de 1999 - pp. 29-30

A excelente reflexão do Alcino Cartaxo, que me permito sugar como fazem certos animais parasitas, toca a questão das novas tecnologias da informação pegando por uma multiplicidade de pontas sem nunca se desligar de uma visão que tem sempre presente a totalidade multifacetada desta nova realidade, como multifacetadas são também as velhas realidades.

A Internet como suporte de uma "inteligência colectiva", a emergência das "indústrias da comunicação" ou o sucesso da "ideologia técnica", são algumas dessas pontas. Muito interessante é também a abordagem das significações culturais que se estabelecem em torno das novas tecnologias da informação num momento em que, embora em larga expansão, são ainda "demograficamente minoritárias". A crença na concretização da liberdade individual, na igualdade e na criatividade proporcionadas pela interactividade, a ideologização da velocidade e da universalidade do conhecimento, as novas formas de sociabilidade, o imediatismo da comunicação sem "ter que gerir o outro", a reconciliação com uma consciência ecológica, porque se trata de uma tecnologia limpa que não produz impactos ambientais negativos, a "conciliação do conhecimento e do consumo" e até a esperança nas suas potencialidades para superar a contradição entre o mundo dos países ricos e o mundo dos países pobres, todas estas questões que refiro de uma forma muito sintética e pobre são analisadas e desdobradas no texto do Alcino. Quem ainda não leu... é só ver aqui ao lado, vale a pena.

Há, por outro lado, um traço comum que vai passando em várias fases do texto, que é uma certa sedução, um certo carácter lúdico, um certo deslumbramento dos (alguns? muitos?) "cybernautas", perante o "objecto" utilizado. E isso leva-me a uma outra questão relacionada com uma nova doença já tipificada – a net dependência – dependência da forma de comunicar, da forma de se informar, dominando o mundo através do teclado, circulando à velocidade da luz, obtendo (in)formações sem parar, num imediatismo que não permite a reflexão; numa ânsia de comunicar, na linha de um célebre "boneco" criado pelo Raul Solnado no programa de televisão ZIP ZIP, nos finais dos anos sessenta, o baladeiro Ludgero Clodoaldo que "cantava para comunicar". Mas comunicar o quê, perguntava-lhe o entrevistador: "Comunicar comunicação".

 

A net de todas as liberdades, da liberdade de escolher e de criar, da informação quase sem limites, não estará também a criar um conjunto de cidadãos cada vez mais passivos e distraídos, alheados do mundo real, que só se revêem no virtual, para quem a vida é a que sai pelo ecrã? Não se estará a criar um homo (i)mediaticus, cultor da velocidade e da ubiquidade, apaixonado pelas novas formas de comunicação sobretudo / 30 / pelas formas –, dominado mais pelas imagens do que pelos textos, um quase deus que quer estar em toda a parte e por isso não está em parte nenhuma?

A internet é um meio, poderosíssimo, é certo, mas apenas um meio. É já uma conquista de civilização, como os caminhos-de-ferro, as auto-estradas ou outros meios e tecnologias que fazem parte do património da humanidade. No entanto, e apesar da sua expansão crescente, é ainda um facto novo, daí o deslumbramento que lhe anda associado. Os outros meios como a TV ainda lhe levam a palma, influenciam mais gente, têm mais poder. É talvez o seu carácter ainda minoritário que lhe dá essa sedução que têm todas as revoluções quando estão no começo, quando nelas se projectam todas as esperanças possíveis e impossíveis, legítimas e ilegítimas; mas que só são verdadeiramente revolucionárias quando se estendem ao maior número, quando se democratizam, quando se instalam no quotidiano de forma natural, sem já se dar por elas. A auto-estrada provocava mais deslumbramento quando chegava apenas de Lisboa a Vila Franca de Xira, ou quando pela primeira vez chegou ao Porto e motivou algumas viagens só para contar as pontes que a atravessam; quando se expandiu e vulgarizou, passou a integrar a normalidade, mas só aí se tornou verdadeiramente revolucionária, aumentando a rapidez e a comodidade dos cidadãos, tomando-se um simples meio de que cada vez prescindimos menos. Também o alargamento da rede, o abaixamento dos custos, a democratização tenderão a dar à internet e às suas imensas potencialidades o estatuto de simples instrumento, um meio onde se continuarão a reflectir e a produzir acontecimentos e conexões sem fim, e que sem ela dificilmente ocorreriam. Cumpre-se então a revolução e, provavelmente, o nosso homo (i)mediaticus será uma espécie em extinção, ou tão vulgar que já não se notará. Provavelmente também o mundo continuará injusto, uns continuarão a dominar os outros, uns mais pobres, outros mais ricos; servir-se-ão (servem-se) uns da internet para vender e outros para comprar, uns para se venderem, outros para espalhar as suas fés, novas e velhas. Teremos hipóteses de protestar, de ser criativos, de nos deixarmos levar ou de nos entretermos. Como as auto-estradas, o caminho também tem ida e volta, saídas e entradas, pontes e ligações. Como tecnologia, a internet é ambivalente, depende dos sentidos que se utilizarem, e consente uma pluralidade imensa de sentidos. Será (é) um terreno de confrontos e de lutas, espaço de cooperação, instrumento de amores e desamores. Rico, complexo, poderoso, mas simples instrumento. Dessacralizado.

Já ninguém faz canções às auto-estradas como nos anos sessenta.

Carlos Dias

Aveiro/Maio/1999