A excelente reflexão do Alcino Cartaxo, que me permito
sugar como fazem certos animais parasitas, toca a questão das novas
tecnologias da informação pegando por uma multiplicidade de pontas sem
nunca se desligar de uma visão que tem sempre presente a totalidade
multifacetada desta nova realidade, como multifacetadas são também as
velhas realidades.
A Internet como suporte de uma "inteligência colectiva",
a emergência das "indústrias da comunicação" ou o sucesso da "ideologia
técnica", são algumas dessas pontas. Muito interessante é também a
abordagem das significações culturais que se estabelecem em torno das
novas tecnologias da informação num momento em que, embora em larga
expansão, são ainda "demograficamente minoritárias". A crença na
concretização da liberdade individual, na igualdade e na criatividade
proporcionadas pela interactividade, a ideologização da velocidade e da
universalidade do conhecimento, as novas formas de sociabilidade, o
imediatismo da comunicação sem "ter que gerir o outro", a reconciliação
com uma consciência ecológica, porque se trata de uma tecnologia limpa
que não produz impactos ambientais negativos, a "conciliação do
conhecimento e do consumo" e até a esperança nas suas potencialidades
para superar a contradição entre o mundo dos países ricos e o mundo dos
países pobres, todas estas questões que refiro de uma forma muito
sintética e pobre são analisadas e desdobradas no texto do Alcino. Quem
ainda não leu... é só ver aqui ao lado, vale a pena.
Há, por outro lado, um traço comum que vai passando em
várias fases do texto, que é uma certa sedução, um certo carácter
lúdico, um certo deslumbramento dos (alguns? muitos?) "cybernautas",
perante o "objecto" utilizado. E isso leva-me a uma outra questão
relacionada com uma nova doença já tipificada – a net
dependência – dependência da forma de comunicar, da forma de se
informar, dominando o mundo através do teclado, circulando à velocidade
da luz, obtendo (in)formações sem parar, num imediatismo que não permite
a reflexão; numa ânsia de comunicar, na linha de um célebre "boneco"
criado pelo Raul Solnado no programa de televisão ZIP ZIP, nos finais
dos anos sessenta, o baladeiro Ludgero Clodoaldo que "cantava para
comunicar". Mas comunicar o quê, perguntava-lhe o entrevistador:
"Comunicar comunicação".
A net de todas as liberdades, da liberdade de escolher e de criar, da
informação quase sem limites, não estará também a criar um conjunto de
cidadãos cada vez mais passivos e distraídos, alheados do mundo real,
que só se revêem no virtual, para quem a vida é a que sai pelo ecrã? Não
se estará a criar um homo (i)mediaticus, cultor da velocidade e
da ubiquidade, apaixonado pelas novas formas de comunicação
–
sobretudo
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pelas formas –, dominado mais pelas imagens do que pelos textos, um
quase deus que quer estar em toda a parte e por isso não está em parte
nenhuma?
A
internet é um meio, poderosíssimo, é certo, mas apenas um meio. É já uma
conquista de civilização, como os caminhos-de-ferro, as auto-estradas ou
outros meios e tecnologias que fazem parte do património da humanidade.
No entanto, e apesar da sua expansão crescente, é ainda um facto novo,
daí o deslumbramento que lhe anda associado. Os outros meios como a TV
ainda lhe levam a palma, influenciam mais gente, têm mais poder. É
talvez o seu carácter ainda minoritário que lhe dá essa sedução que têm
todas as revoluções quando estão no começo, quando nelas se projectam
todas as esperanças possíveis e impossíveis, legítimas e ilegítimas; mas
que só são verdadeiramente revolucionárias quando se estendem ao maior
número, quando se democratizam, quando se instalam no quotidiano de
forma natural, sem já se dar por elas. A auto-estrada provocava mais
deslumbramento quando chegava apenas de Lisboa a Vila Franca de Xira, ou
quando pela primeira vez chegou ao Porto e motivou algumas viagens só
para contar as pontes que a atravessam; quando se expandiu e vulgarizou,
passou a integrar a normalidade, mas só aí se tornou verdadeiramente
revolucionária, aumentando a rapidez e a comodidade dos cidadãos,
tomando-se um simples meio de que cada vez prescindimos menos. Também o
alargamento da rede, o abaixamento dos custos, a democratização tenderão
a dar à internet e às suas imensas potencialidades o estatuto de simples
instrumento, um meio onde se continuarão a reflectir e a produzir
acontecimentos e conexões sem fim, e que sem ela dificilmente
ocorreriam. Cumpre-se então a revolução e, provavelmente, o nosso
homo (i)mediaticus será uma espécie em extinção, ou tão vulgar que
já não se notará. Provavelmente também o mundo continuará injusto, uns
continuarão a dominar os outros, uns mais pobres, outros mais ricos;
servir-se-ão (servem-se) uns da internet para vender e outros para
comprar, uns para se venderem, outros para espalhar as suas fés, novas e
velhas. Teremos hipóteses de protestar, de ser criativos, de nos
deixarmos levar ou de nos entretermos. Como as auto-estradas, o caminho
também tem ida e volta, saídas e entradas, pontes e ligações. Como
tecnologia, a internet é ambivalente, depende dos sentidos que se
utilizarem, e consente uma pluralidade imensa de sentidos. Será (é) um
terreno de confrontos e de lutas, espaço de cooperação, instrumento de
amores e desamores. Rico, complexo, poderoso, mas simples instrumento.
Dessacralizado.
Já ninguém faz canções às auto-estradas como nos anos
sessenta.
Carlos Dias
Aveiro/Maio/1999
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