«As mulheres, altas airosas e trigueiras trabalham como
mouras. Sempre de chapelinho redondo e xaile. Levantam-se de chapéu,
trabalham de chapéu, deitam-se de chapéu, e cuido que dormem com ele na
cabeça. A de Mira, feia mas esbelta, tem um ar grave mas senhoril quase
sempre. Lava as redes, puxa os cabos, carrega os gigos, cozinha no lar
enfumado com dois tijolos no chão e faz a lavoura – «o prazo». A mulher
aqui trabalha mais do que o homem – trabalha o dobro do homem. Não sai
de Mira, não vende o peixe, mas anda empregada na companha por conta do
proprietário, ou na salga, por conta do almocreve. No interior de
tábuas – o palheiro – possui um cântaro, dois potes alguns
farrapos nas paredes e uma enxerga sobre os bancos. Vêem-se aos grupos,
à espera que saia a rede ou à roda de um fogaréu onde assam as batatas.
Vêem-se, num carreiro de formigas, subindo e descendo o areal; altas e
direitas, do hábito de carregar o gigo à cabeça, ou à volta do saco,
haste bem lançada para o céu, sempre vestida de escuro e o lindo
chapelinho sobre o lenço.» .
«Quando passei na Gafanha, vi as cachopas
de beira-rio, todas molhadas, sempre metidas na água a rapar o moliço.
Feias e ingénuas. A uma calculei-lhe: – Tem para aí treze ou catorze
anos. – Tenho vinte e um, e três filhos, respondeu».
«A mulher da Murtosa, dizem os
entendidos, não se confunde com a de ÍIhavo e a de Ovar: é baixa e
atarracada; a de Ovar delicada e forte, alta e bem proporcionada, cheia
de predicados domésticos e morais. As de Ílhavo passam por as mais
lindas, pelo sorriso que encanta, pelo olhar, e pela magia que exalam.
Todas as mulheres da beira marinha são postas em destaque pela luz
carinhosa que as envolve e protege. Criam-se, nesta esplêndida paisagem
de água e cor, ao mesmo tempo pacífica e delicada.»
«A luz é o grande agente da beleza... Mas
a mocidade dura-lhes o que duram as rosas. Quase sempre de uma beleza
delicada, a mulher da beira-mar com excepção da do Algarve que é «a
prenda da casa», logo que casa, carrega com quase todo o peso do lar,
cresta-se e envelhece.»
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A ida ao mar
«Um rapaz no alto da duna, sopra o búzio
com as bochechas cheias, chamando a companha para a pesca. O barco está
pronto. Uma esteira de varas, duas juntas de bois para o puxar, homens
nus metidos na água e agarrados às cordas e a onda que salpica e os
alaga, Entra para dentro a companha. Refervem as ondas que o sacodem lá
no alto. Os fortes rapagões agarram-se aos quatro remos, a proa alvora.
É este o momento angustioso enquanto se não safam da cova do mar.
« – Eh arrais, a maré é agora! –
diz o revezeiro.
«O arrais segura a corda, que liga o
barco à terra e é o único leme para se dirigir. Tudo consiste em saber
"ferrar a volta na ré" para o livrar do vagalhão – tudo consiste em
destreza e pulso, senão o barco sacudido enche-se de água e vira. Dois
homens, os caladores, ajudam-no a soltar o extenso cabo enrolado
à popa que nunca mais larga da mão. Num instante se livra da onda que
quebra, mas a manobra é complicada. O barco tem quatro remos nos quatro
bancos: o do castelo da proa, o do remo da proa, o do remo da ré e o do
castelo da ré. A cada um destes pesadíssimos remos se agarram quatro
homens de pé nas estorveiras, que ficam nos intervalos dos
bancos, seis sentados e ainda outros, os camboeiros, puxando os
cambões, todos ao mesmo tempo, todos com o mesmo ritmo. O revezeiro, que
ordena a saída para o mar, manda também em cada remo. Na parte mais
delgada remam os caneiros, que trilham o remo e fazem a voga,
ajudados pelos segundos.
«O barco vai largando o grosso cabo com
nós, que se chamam balizas, até o momento em que o arrais sente o
peixe mais a terra, a aguagem, pela mudança da cor, ou distingue o
alcatraz que nas águas lúzias cai a pique sobre a manta da sardinha.
Outras vezes é a fervença ou gorgulhido que lhe indica onde está o peixe
– pequenas bolhas de ar que ascendem à superfície – ou mesmo a ardentia
com que os grandes bancos de sardinha iluminam o mar. Então o arrais de
pé dá o sinal dizendo:
– Em nome do Santíssimo Sacramento,
saco ao mar! – Toda a companha se descobre. Larga-se a cuada
de malha mais miúda, a manga, peça mais grossa, e por fim o cabo
que desenrola até à terra.»
«Voltam e o momento dramático repete-se.
O barco vem no alto da ressaca.
– Larga! Larga! – Os homens remam
cantando. Inunda-os um jorro impetuoso. Agora, é o arrais. que na
pancada do mar traz a corda na mão, guiando o barco. Um vagalhão de
espuma arrasta-o num último impulso pelo areal acima. Dois rapazes
metidos na água enfiam logo nas argolas do costado duas ganchorras de
ferro. Salpicos, alaridos. A companha salta em terra, jungem-se os bois
às cordas, lança-se o estrado de varais pela areia; sobre os
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varais, roletes; e, puxado pelos bois e pelos homens, o barco enorme
sobe, de proa voltada ao mar, pronto para nova arremetida.»
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