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A habitação

(◄◄◄Continuação da pág. 32)

Interiormente, nas casas de melhor aspecto, os tectos de masseira, de castanho, cobrem os aposentos numa tradição que deve entroncar com os trabalhos de ensamblaria dos artífices árabes, que tantos vestígios deixaram na nossa habitação, nas rótulas, balaústres e alpendres (cfr. pág. 38, Alfarge). São frequentes ainda, em certas vilas do norte, ao alto das janelas, os ganchos de ferro onde se prendiam as adufas, que tapavam as aberturas antes da aplicação das vidraças. As fachadas de granito das casas beiroas oferecem por vezes um grande carácter de força austera e sóbria, como se vê para os lados da Guarda, Mangualde e / 33 / outros pontos. Também nas aldeias de encosta, por onde se escalonam os enormes blocos graníticos, alguns em prodigioso equilíbrio, há casas-cavernas, talhadas na rocha viva, que lhes fornece a área do pavimento, além de uma ou duas paredes, servindo-lhes em alguns casos de cobertura, pelo aproveitamento de grandes lajes que avançam sobre os esteios naturais e formam vastas palas monolíticas. É a antítese da casa de adobe (ou adobo, adobe ou adoba em espanhol), paralelepípedo de barro a que se mistura palha cortada, seco ao sol ou ao forno, e privativo das regiões onde de todo falta a pedra, como nas zonas geológicas de formação recente, tais as das cercanias imediatas de Aveiro.

É este o antiquíssimo exemplo da Mesopotâmia, com as suas muralhas de adobes secos ao sol do mês de Nizam, chamado do tijolo, muralhas que uma cheia levava às vezes na impetuosidade da corrente. Mas o tijolo ou ladrilho (ladrillo em espanhol) é o barro cozido, e não simplesmente seco, assim como a taipa (esp. tapiel), de tanto uso também em certos pontos da Beira Litoral, é uma argamassa de terra e gesso calcada entre duas tábuas. Outras vezes é o xisto, a pedra lousinha, que fornece / 34 / quase todo o material das construções: vemo-lo na serra da Lousã, por exemplo na faixa pré-câmbrica do distrito de Aveiro e nas zonas xistosas da Beira Alta (parte do Caramulo, Gralheira, etc.). Quem da vila de Lousã, rodeada da sua cinta de olivais, sobe a vertente da serra que leva ao ponto culminante do Altar de Trevim e a portela que, próximo dele, põe em comunicação a Beira Alta com a Estremadura beirense, não pode deixar de notar os casinhotos de xisto, que na vertente oposta parecem subir a serra, pegados à rocha e alinhados ao lado uns dos outros, como cortejos de «processionários»), casinhotos rasgados de raras aberturas, e que por vezes se confundem de tal maneira com a própria rocha que parecem fraguedos também.

Em algumas regiões serranas são frequentes as habitações colmadas ou cobertas de giestas. Por vezes, como nas cercanias de Mangualde e em alguns pontos do distrito de Coimbra, vêem-se casas-cubatas, choupanas ou choças primitivas, cilíndricas, formadas de pedra solta e cobertas por aquele material. Nas zonas onde há o xisto, a cobertura é muitas vezes de lousa, como no vale do Paiva, na região montemurana e em Macieira do Sul. Na linha de contacto, o granito é usado na construção das paredes e o xisto na cobertura (Manhouce, Albergaria-das-Cabras). Em toda esta região serrana, as aberturas são em geral sumárias e pouco numerosas.

Nas zonas mais baixas do litoral, a telha forma a cobertura geral das habitações. Percorrendo a linha férrea do Norte, ao chegarmos aos arredores de Coimbra, não nos deixa de impressionar a brancura, claridade e nitidez das casas, postas em equilíbrio com a paisagem, numa nota de doçura rural e de pulcra alegria. É a região calcária, onde a alvenaria dá, com os seus variadíssimos recursos, um grande pitoresco às habitações, pelo emprego do tijolo, do azulejo, da telha recortada, da figura decorativa, que na faixa litoral de Aveiro e Coimbra ornamentam as empenas com figuras de olaria popular, modeladas na própria telha: leões heráldicos, de aspecto quimérico, perus, pombas, não deixando de empregar as telhas recortadas na ponta dos beirais.

A pedra de Ançã, macia e alva, extraída, com relativa abundância, nos arredores de Coimbra, das camadas do calcário bajociano material mais dócil, / 35 / embora friável, permite os lavores mais delicados da pedra. Grande parte das construções arquitectónicas da Beira Litoral, tanto civis como religiosas, são feitas nesta matéria tão plástica, embora tão pouco resistente às intempéries: de pedra de Ançã são os túmulos de S. Marcos, de Góis, da Trofa do Vouga ou de Oliveira do Hospital, as capelas de Cantanhede, Varziela, de S. Marcos, Penela, do palácio da Ega.

No baixo distrito de Aveiro, nas margens do Vouga inferior, parte das construções aproveitam também como material os arenitos, vermelhos do triássico da região do Eixo e Eirol.

Na Beira duriense, nas encostas que se voltam para o rio, as casas são muito caiadas como no Algarve, embora a sua traça arquitectural seja diferente; chegam mesmo a cobrir de listas brancas de cal os próprios telhados, que assim apresentam alternadamente faixas de um vermelho vivo e de um branco alvinitente; ao lado, contrastando com este branco e este vermelho, perfila-se geralmente o tronco negro dum cipreste.

Na casa citadina, pela infiltração das correntes da moda, por vezes de influência cosmopolita, a habitação foge ao emprego dos elementos construtivos espontâneos da casa rural, para se engalanar com os factores dos estilos arquitectónicos que nos vários períodos históricos foram renovando inicialmente os / 36 / monumentos religiosos. Assim o gótico, o manuelino, a arquitectura renascentista deram exemplares de trechos decorativos que ainda hoje se admiram, portas e janelas de curvas policêntricas, ornamentadas com a sinuosidade da corda, flanqueadas pelos colunelos torcidos, tão da simpatia da arte portuguesa dos começos do séc. XVI, e depois a simplicidade clássica, com a perfilagem das suas pilastras, das suas cornijas e dos seus frontões.

Do séc. XV pode citar-se, como um dos exemplares mais curiosos, embora de grande simplicidade, o solar dos Metelos, em Freixeda do Torrão, de austera silharia de granito, ligada por um arco e um passadiço a uma torre gótica, com os seus dois balcões de cachorros recortados, de pitoresco e elegante perfil.

Ao manuelino pertencem a casa onde é tradição ter nascido D. Duarte, em Viseu, e o palácio da Ega, no concelho de Condeixa. Exemplar rico desse período é a casa de Sub-Ripas, em Coimbra, quase plateresca, mas com o calabre do estilo bem patente no portal, emoldurando-o ao alto a modo de sanefa de pedra e correndo num frémito sob os janelões que o ladeiam superiormente. São frequentes os portais e janelas / 37 / desta época na cidade do Mondego e em alguns solares espalhados pela zona das Beiras (S. Pedro do Sul, Gouveia, Monsanto, etc.).

Do período do Renascimento podem citar-se alguns edifícios em Coimbra, como o paço episcopal, de tão curioso pátio, hoje transformado em museu.

Dos séculos XVII e XVIII, e principalmente da época barroca, há exemplares de maior gosto e também de maior carácter, da casa portuguesa, tanto citadina como rural. Na Beira, devem mencionar-se, entre os mais notáveis exemplares, alguns palacetes e casas solarengas de Viseu, Guarda e Aveiro. Citaremos, em especial, o palácio dos condes da Anadia, em Mangualde, com a sua guarnição, nas janelas, de aventais lavrados em bom gosto; a simples, mas tão graciosa casa de S. Miguel, em Viseu, com a dupla escadaria subindo do terreiro até ao alpendre apoiado em delicadas colunas; a casa do Cabo, na Pesqueira, dos Pais de Sande Castro, e hoje pertencente à baronesa de Fragozela; o palácio dos Ramalhos, em Condeixa-a-Nova, actualmente do capitalista Cândido Sottomayor; o solar dos marqueses da Graciosa, em Anadia; uma bela casa à beira / 38 / da estrada de Viseu a Moimenta da Beira, entre A-de-Barros e Rua, etc.

Antes de concluirmos esta nota, não queremos deixar de referir-nos à construção dos palheiros do litoral: obedece esta ao princípio pré-histórico da construção lenhosa que nas palafitas (do italiano palafitta, estacas, pilotis em francês) dos lagos alpinos (Suíça e Sabóia) e nos terramares da planície lombarda, estações sobre estacaria estabelecidas sobre terra firme, impôs os primórdios da habitação humana, quer por Insuficiência técnica quer mais provavelmente pela necessidade da utilização da madeira, na falta de material mais duradoiro e sólido. As pranchas pintadas de vermelhão elevam-se sobre estacaria em obediência ao ritmo invasor da duna, da qual pretendem esquivar-se, quando esta, passando-lhes por baixo, se vai reformar mais adiante ou prolongar-se ainda para mais longe. Vão da costa de Aveiro (Torreira, S. Jacinto, Costa Nova) até para além do Cabo Mondego, à Praia de Vieira, (vol. II, pág. 693), estendendo-se, por conseguinte, por toda a fímbria marítima da Beira Litoral. Construções da zona movediça, são efémeras diante da constante deslocação do mar de areia.

Falando do emprego da madeira na construção, não podemos deixar de nos referir ainda às pitorescas varandas corridas, análogas às balconadas de Navarra, que se encontram em muitos lugares da Beira, como em Manteigas, Unhais da Serra, algumas povoações do concelho de Tarouca e em Monsanto, a aldeia beiroa, que pela singularidade da sua posição e fisionomia, é tida como a mais linda aldeia portuguesa.

 

 

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