Para ripostar a uma desfeita levada a efeito por Pedro Jacques de
Magalhães (um dos mais hábeis e decididos cooperadores do Conde de
Castelo Melhor, no longo decurso da tão trabalhosa e grave Guerra da
Restauração), no ataque e saque da antiga vila leonesa de Sobradillo, o
duque de Ossuna, ao serviço de Filipe IV, transpôs a raia com uns cinco
mil homens, a fim de cercar e demolir a vila fortificada, tida por mal
guarnecida, de Castelo Rodrigo.
Pedro Jacques, porém, então em Almeida, afanosamente reforçada na sua
possante carapaça poligonal, de baluartes e redutos, escarpas e revelins,
logo acudiu, fazendo levantar o assédio e desbaratando completamente a
tropa espanhola, cujo comandante se livrou a custo de ser aprisionado.
Segundo o cômputo de Ericeira, as perdas desse corpo invasor filipino
não teriam sido inferiores a mil homens, no duro combate desferido em
redor da praça medieva vizinha da Serra da Marofa.
Ulteriormente, na prolongada guerra da Sucessão de Espanha, a província
sofreria de novo as durezas da invasão. Um exército, às ordens de
Berwick, assola a parte meridional da zona fronteiriça de Riba-Côa,
ataca e submete Castelo Branco, desmantelando, ao sul da Cova da Beira,
os velhos muros que circundavam o morro do vetusto roqueiro, edificado
nos. XII pelos incansáveis freires do Hospital.
Em Idanha-a-Nova, o campo chamado da matança, relembraria, segundo o
parecer de alguns, uma refrega sangrenta dessa campanha, tão rica de
transes imprevistos e promissores, como o da célebre entrada da tropa
portuguesa do Marquês de Minas, em Madrid, como de frustrações das
esperanças luso-galaicas.
Sobrevêm, mais tarde, as invasões napoleónicas, que o génio apolíneo e
demoníaco do futuro fantasma do Incêndio de Moscovo instruía de longe,
na maestria inverosímil da ubiquidade, compelindo-as a prodigiosas
marchas forçadas que inteiramente desconcertavam os dormitivos
discípulos de Frederico II ou de Schomberg.
A Beira obscura e dura recebe, primeiro, em dado dia,
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frígido e outoniço (a 18 de Novembro de 1807), as primeiras tropas de
Junot, desesperadas pela pobreza da planura leonesa e ávidas dos
celeiros e pomares da Península de Lisboa. Sob os descaídos bigodes,
resmungavam: – «Quando aparecerá, diante dos nossos olhos, a nova Terra
da Promissão?» –, sonhando com os odorantes laranjais, as verdes
campinas, as granjas opulentas e tranquilas, onde lhes estivesse
reservado um suportável aboleto, junto de algum fumegante caldeirão e um
abrigado alpendre.
Em poucas horas de marcha, essa tropa veterana e acossada vence as dez
léguas que lhe são dadas para palmilhar desde a aldeia raiana de Segura
até aos descampados de Ladoeiro e Alcains. Ao cair da noite, com as
botifarras escalavradas e os cintos apertados, entram, no dia 20, as
guardas avançadas de Laborde em Castelo Branco(1).
Mal suspeitavam o que daí a pouco os esperava, dentro de alguns meses.
A marcha precipitada e aziaga de Loison, desde Lamego a Abrantes, pela
Cova da Beira, no ano das sublevações e guerrilhas de 1808, é um dos
desfiles mais dramáticos que a imaginação do viajante poderá
reconstituir ou vislumbrar diante destes cenários.
Volvidos dois anos, Massena, acompanhado de Junot e Ney, surge com a
terceira invasão napoleónica, optando pela raia planáltica, vindo da
Cidade de Rodrigo. Cerca e submete a praça de Almeida. Desce a Pinhel e
Mangualde. Daqui inflecte para Viseu, persuadido que a carreteira da
vertente norte do Mondego lhe ofereceria mais segura passagem e
manutenção ao seu alongado cortejo punitivo do que a da tradicional
"estrada da Beira", da vertente esquerda. O desengano
não se faria esperar. Mercê de instruções de Wellesley, que atentamente
o precedia e perscrutava, os lavradores e criadores de gado
refugiavam-se nos refegos dos montes, reduzindo ao mínimo os recursos de
sustento do invasor
(2).
Massena, o magistral vencedor dos russos e austríacos na jornada
helvética do Lago de Zurich (que lhe valeria a
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gentil "promoção" de «enfant chéri de la Victoire» proferida e concedida
pelo próprio arcanjo da Vitória dos lagos de Austerliz), visivelmente
cansado e um tanto romanesco, demora um pouco mais do que seria de
esperar a sua estadia em Mangualde e Viseu, tendo ao lado uma garbosa
amazona que o acompanhava desde Salamanca, sob o disfarce de um imberbe
oficial...
Eis o que facilitaria bastante as precauções que Wellesley promove, mal
se persuadiu de que o exército invasor não se faria transferir para a
vertente sul do Mondego. Nessa previsão, as pontes do Cris e do Dão
seriam visadas e cortadas pelos improvisados sapadores da tropa ainda
tresmalhada.
O moroso exército napoleónico, por fim, encaminhar-se-ia por Tondela
para a passagem de Mortágua.
Após o revés do Buçaco (que custaria ao invasor cerca de quatro mil
mortos e feridos), Massena consegue descobrir (mas só depois do funesto
desastre, com a ajuda imprevista de um rústico andarilho caramulano), um
último recurso, a chamada passagem de Boialvo. Desse modo, com grande
surpresa do Inglês, de plantão, no lombo do Buçaco, coberto de feridos e
destroços, a força invasora, desemboca na Bairrada e alcança a
carreteira de Águeda, ou seja, a tão desejada rota da península de
Lisboa. Massena apressa-se a seguir-lhe o rasto. Sem perda de tempo, a
tropa invasora segue para o Sul, no propósito de alcançar a foz e a urbe
do Tejo.
Entretanto, Coimbra em breve seria retomada aos franceses pelos
milicianos de Trant – e todos os feridos mais graves que Massena,
confiante, havia alojado no convento novo de Santa Clara (uns trezentos,
à guarda de uma ligeira força) seriam impiedosamente
sacrificados pelos implacáveis subalternos do afamado guerrilheiro(3).
Tal teria sido o erro e descuido, extremamente grave, que Napoleão, ao
tomar conhecimento do imprudente desacerto de Massena, considerou
imperdoável "pecado 'militar" que, para sempre, deslustraria o tão
gabado mestre da estratégia de Zurich, tão obsidiado pelo desígnio de
surpreender as precauções das ignotas
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defesas de Torres, – cuja resistência em breve se verificariam muito
superiores às previsões do comando Invasor.
No intento de levar ajuda ao ataque contra os redutos das surpreendentes
linhas de Torres, um dos subalternos de Massena, Gardan, desce da
planura de Castela com uma alongada coluna de abastecimento, ajoujada de
munições, por Sabugal, Sortelha, Belmonte e Cova da Beira. Em breve,
porém, acossado pelos temerários milicianos, ver-se-ia obrigado, em
Alpedrinha, a desistir do intento, retrocedendo para Espanha, pela
fronteira de Penamacor.
Desesperado de transpor as rebarbativas "linhas” Massena decide-se a
retirar para Tomar. Aí espera palavras ou reforços de Napoleão, até que
o Inverno, agravando as privações, determina mais acentuado recuo. Os
anteriores sitiados seguem-no de perto. maltratando-o.
Um dos seus corpos de cobertura sofre, em Pombal, um duro revés.
Num breve bivaque, em Redinha, o próprio chefe napoleónico correria, por
instantes, o risco de ser aprisionado. Mais além, por sua vez, a tropa
de Ney (o prodigioso atacante dos cossacos na retirada da Rússia), sofre
ele mesmo os estragos de uma refrega não menos impressiva na Foz de
Arouce. As pontes, tão importantes do Cris e do Dão, conforme já se
referiu, haviam sido à pressa ofendidas antes da batalha do Buçaco. Uma
vez afastado o invasor, as guerrilhas agravar-lhes-iam a demolição. Em
dado momento, Massena, indignado e desconfiado, destitui Ney do seu
comando. Restava ao comandante napoleónico, como via de retirada, pela
margem esquerda do Mondego, a ponte de Mucela, vizinha da confluência do
Alva. É por essa ponte que a terceira invasão promovida pelo Corso,
fracassada, se evade, deixando atrás de si um rasto de estropiados. O
próprio Junot, ferido por um arcabuz esporádico, faz parte destes
numerosos escolhidos do azar.
Os invasores, percorrido o alongado sopé dos antigos Montes Hermínios,
tentam ainda manter-se nos flancos da montanha, por alturas da Guarda e
Sabugal; mas daí mesmo seriam desalojados pelos incansáveis piquetes
anglo-lusos.
Os plainos inóspitos e fronteiriços da província em breve puderam ver as
forças evanescentes da Águia napoleónica abandonar as casamatas da
fortaleza de
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Almeida, e receber o rude bota-fora de Fuentes de Oñoro.
Após um desastroso e inseguro combate, Massena envia ordens a Brenier,
cercado ainda nos resíduos de alguns revelins, recantos e casamatas da
escalavrada praça de guerra, a abandonar esse reduto e essa terra
planáltica que, pela primeira vez, na sua longa carreira, lhe impusera a
experiência amarga de um duríssimo desaire.
No decurso do séc. XIX, as Beiras testemunhariam ainda alguns eventos de
relativo interesse histórico. Mencionemos, entre os mais movimentados, a
incursão de 1826 do Marquês de Chaves que, depois de transpor o Douro
pela ponte da Régua, se apossou de quase toda a Beira Alta, em menos de
um mês, num rápido e efémero sucesso de reivindicação do "regime
tradicionalista", e o movimento, não menos rico de episódios militares e
políticos, de 1828, lançado pela junta do Porto, após o golpe de Estado
de D. Miguel, movimento que teria como principal teatro o distrito de
Coimbra, e como desenlace a célebre retirada para a Galiza das forças de
Sá da Bandeira, o heróico porta-estandarte do Alto de Santo Ovídio e
futuro organizador do cerco inverosímil do velho burgo de Gaia e
Miragaia, ou seja, do rude e duríssimo Porto.
Porto, 3 de Junho de 1984.
SANT'ANNA DIONÍSIO
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(1)
– O corpo de exército de Junot só apareceria às portas de Castelo Branco
na manhã do dia seguinte, em 21 de Novembro. Além do comandante-chefe da
força invasora com o seu Estado Maior destacava-se, ao seu lado, o
famigerado maneta, ou seja, o general Loison, a quem havia sido confiada
uma das colunas.
(2)
– Uma das origens do engano estratégico do marechal napoleónico parece
ter sido a funesta utilização de algumas cartas antiquadas das vias e
carreteiras da Beira, que o teriam persuadido de que a velha estrada da
província ser-lhe-ia multo mais desfavorável que a da vertente norte do
Mondego. Daí o desastre do Buçaco.
(3)
– Bem se poderia dizer que esse frio aniquilamento dos convalescentes
inermes da tropa napoleónica, no convento de Santa Clara a Nova, de
Coimbra, seria como que uma satânica réplica do fuzilamento, em massa,
mandado executar, por Soult, dois anos antes, no campo de Arrifana, em
consequência da morte do seu mais dedicado oficial às ordens, o coronel
Lameth, vítima de uma emboscada que um punhado de guerrilheiros, de
Riba-UI, lhe armou, em uma barroca, cerca de Oliveira de Azeméis.
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