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Manuel J. G. Carvalho - Nação, nacionalismo e democracia em Jaime de Magalhães Lima - 1999

2.2.2. O nacionalismo de Jaime Lima

O BREVE quadro que acabámos de esboçar, tentando retratar a ideia limiana de «nação», afasta, à partida, qualquer conotação extremista de nacionalismo. Com efeito, faria pouco sentido que um acérrimo defensor da diversidade, seja ela cultural ou étnica, entendida como pressuposto indispensável da unidade nacional, não continuasse coerente com este pensamento quando ultrapassava as fronteiras da Pátria. Omnipresente, a sua mundividência católica, servida por verdadeira religião de amor, aponta-lhe claramente o caminho, já que

«a transfusão da vida nacional na catolicidade romana não importa mutilação da Pátria. A grandeza de uma nação não está nem poderá estar no inventário e na história das singularidades pelas quais se aparta dos outros povos; antes dependerá do diverso grau em que o seu espírito se integrou na civilização e principalmente do carácter e nobreza dessa civilização.» (Lima, 1924: 67)
 

O nacionalismo limiano pretende-se, acima de tudo, organizador da grei, enquanto privilegia os valores e vivências nacionais, na Natureza e no Povo, e constitui uma verdadeira essência do Volksgeist – o Espírito dos Povos – não se fechando nas fronteiras do País, mas realizando-se na Humanidade, no / 69 / Weltgeist – O Espírito do Mundo – que, em Jaime Lima, não tem contornos hegelianos, pois não corresponde à hegemonia do espírito de um determinado povo num dado momento do processo histórico, antes à soma harmónica do espírito de todos os povos unidos pela religião, porquanto

«a honra e glória dos povos dominados pelo patriotismo será não calcar a terra estranha sem a veneração que nos inspira a entrada em morada alheia, onde sabemos que respiram afectos tão nobres como os nossos; e as fronteiras dessa nova pátria, subsistindo sempre, de contínuo se alargam e confundem à medida que se espraia o amor que a rege. (Lima, 1905: 132)
 

Estamos perante um pensamento ecléctico, resultado de um percurso e de uma reflexão pessoal que soube, um pouco por toda a parte, colher os frutos mais próximos do seu sentir e da sua sensibilidade democrática e religiosa. As raízes do seu nacionalismo aproximam-no da primeira geração romântica e levam-no a rebelar-se contra os posteriores desvios xenófobos e imperialistas do final de Oitocentos, defendendo que

«a tendência dos povos [...] é a abolição da antiga pátria inflamada em ódio contra os estranhos. Dominado pelo sentimento de fraternidade, o povo detesta esse patriotismo de avareza e disputa, conduzindo à guerra por meio de armas de fogo, tarifas alfandegárias e exclusão de raças. Se sobrevive à sua extinção real e mantém aparências de vitalidade, deve-o somente ao interesse de homens e classes que exploram o trabalho humano e, na cegueira da ambição de bens e mando, / 70 / conservam a arte de juntar os mansos em exércitos, precipitando-os em lutas mortíferas.» (Lima, 1905: 130)
 

Talvez esteja aqui uma das razões que levaram Jaime Lima a não aceitar o lugar de secretário-geral da Liga Patriótica, embora a ela tenha aderido: uma coisa são as ideias defendidas por Antero, outras seriam as acções desencadeadas pela heterogeneidade das adesões.

O nacionalismo de Jaime Lima corresponderá, por isso mesmo, a um culto da alma nacional, a um nacionalismo literário, artístico e das tradições populares, recorrendo a um certo historicismo de matriz ética e estética que procura fundar na sociedade rural e nos valores que a enformam, longe do consumismo e do cosmopolitismo urbano, aqui claramente na peugada de Tolstoi e John Ruskin:

«O nosso nacionalismo estético anda domiciliado nas cidades, é urbano, cultiva-se na cidade; e o nacionalismo, para se nutrir de alimento consentâneo, tem forçosamente de ser rural. No fundo, o nacionalismo é, em primeiro lugar, a expressão da afeição à terra e às criações que a terra gera; nas calçadas, pelas quais usamos espalhá-lo nas cidades, morre à míngua de chão onde entranhe as raízes. Além de que a cidade é, pela condição da latitude do seu comércio, inevitavelmente internacional: o mercado a edificou, e a essência e sobretudo a grandeza do mercado, por não dizer o seu ponto de honra, consiste em ser abastecido por muitas vias, e acumular, ligar e fundir as diversas actividades e variados bens de que essas vias são as artérias túmidas e latejantes.» (Lima, 1931b: 15-16) / 71 /


Haverá premissas limianas que parecem aproximá-lo de Maîstre e Bonald, os corifeus franceses da contra-revolução, mas as ilações de Jaime Lima apontam sempre em sentido inverso e, nesse campo ideológico, poderíamos considerá-las antinacionalistas. Algumas vezes parece aproximar-se de Michelet, na emoção com que rodeia a Pátria, nos temas da sua poesia em prosa, e também quando comunga com o escritor francês da ideia de uma pátria que seja «iniciação necessária à pátria universal»;

«O nacionalismo que, considerando a pátria um campo fechado por sentinelas possuídas de desconfiança, afere o patriotismo pelo desejo e capacidade de apreender os bens do mundo e alcançar primazias de força material, esse patriotismo aniquilou-o um largo sentimento de responsabilidade numa missão de amor perante Deus e a natureza. Ao dissolver-se, se meditamos serenamente o passado, parece-nos uma inquietação de demência. Foi a vaidade, o orgulho, e tantas vezes o simples capricho de imperar, representados por um chefe ou por um bando que sacrificava o povo ao seu interesse egoísta e cruel; para o animar à luta enlouquecia-o com visões de glória, nas quais uma espécie de embriaguez lhe fizesse esquecer a repugnância a deixar o trabalho, a paz e o lar, atraiçoando o amor que lhe enchia o peito. Esse patriotismo esvai-se, por fortuna da humanidade inteira.» (Lima, 1905: 131)


Opondo-se a qualquer tipo de imperialismo, nasça ele à direita ou à esquerda, arremessa o látego contra a corrupção dos ideais patrióticos, «os seus desvarios e crimes», os seus «temores, ódios e egoísmos» (Lima, 1915a: 61), assacando a estes
/ 72 / desvios e à ambição capitalista as causas da I Guerra Mundial. É que, se à direita se pede «Deus, Pátria e Rei», e à esquerda se exige «Liberdade, Igualdade e Fraternidade»,

«podemos estar certos de que de cada lado não se apuram algumas centenas de homens que vejam Deus no mesmo altar, que amem na pátria as mesmas feições, que dêem ao rei o mesmo trono, que encerrem a liberdade nos mesmos limites, repartam pela mesma medida a igualdade e sintam pelo mesmo coração a fraternidade.» (Lima, 1915a: 19)

É este o nacionalismo de Jaime Lima, amante e defensor dos valores nacionais quanto respeitador e amante das diferenças do outro, tudo argamassando num cristianismo franciscano e das origens, e passando ao lado das correntes católicas e ultramontanas de Oitocentos. Nesta Europa conturbada, quem mais dele se aproxima é Mazzini, mas os dois pensadores apenas se encontraram em 1914, quando Jaime Lima o descobre através de publicações inglesas, «poucos dias após a declaração da guerra» (Lima, 1915a: 142, 143-144, n. 1).

 

 

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