2.2.2. O nacionalismo de Jaime Lima
O
BREVE quadro que acabámos de esboçar, tentando retratar a ideia limiana
de «nação», afasta, à partida, qualquer conotação extremista de
nacionalismo. Com efeito, faria pouco sentido que um acérrimo defensor
da diversidade, seja ela cultural ou étnica, entendida como pressuposto
indispensável da unidade nacional, não continuasse coerente com este
pensamento quando ultrapassava as fronteiras da Pátria. Omnipresente, a
sua mundividência católica, servida por verdadeira religião de amor,
aponta-lhe claramente o caminho, já que
«a transfusão da vida nacional na catolicidade romana não
importa mutilação da Pátria. A grandeza de uma nação não está nem poderá
estar no inventário e na história das singularidades pelas quais se
aparta dos outros povos; antes dependerá do diverso grau em que o seu
espírito se integrou na civilização e principalmente do carácter e
nobreza dessa civilização.» (Lima, 1924: 67)
O nacionalismo limiano pretende-se, acima de tudo,
organizador da grei, enquanto privilegia os valores e vivências
nacionais, na Natureza e no Povo, e constitui uma verdadeira essência do
Volksgeist – o Espírito dos Povos – não se fechando nas
fronteiras do País, mas realizando-se na Humanidade, no
/ 69 /
Weltgeist – O Espírito do Mundo – que, em Jaime Lima, não tem
contornos hegelianos, pois não corresponde à hegemonia do espírito de um
determinado povo num dado momento do processo histórico, antes à soma
harmónica do espírito de todos os povos unidos pela religião, porquanto
«a honra e glória dos povos dominados pelo patriotismo
será não calcar a terra estranha sem a veneração que nos inspira a
entrada em morada alheia, onde sabemos que respiram afectos tão nobres
como os nossos; e as fronteiras dessa nova pátria, subsistindo sempre,
de contínuo se alargam e confundem à medida que se espraia o amor que a
rege. (Lima, 1905: 132)
Estamos perante um pensamento ecléctico, resultado de um
percurso e de uma reflexão pessoal que soube, um pouco por toda a parte,
colher os frutos mais próximos do seu sentir e da sua sensibilidade
democrática e religiosa. As raízes do seu nacionalismo aproximam-no da
primeira geração romântica e levam-no a rebelar-se contra os posteriores
desvios xenófobos e imperialistas do final de Oitocentos, defendendo que
«a tendência dos povos [...] é a abolição da antiga
pátria inflamada em ódio contra os estranhos. Dominado pelo sentimento
de fraternidade, o povo detesta esse patriotismo de avareza e disputa,
conduzindo à guerra por meio de armas de fogo, tarifas alfandegárias e
exclusão de raças. Se sobrevive à sua extinção real e mantém aparências
de vitalidade, deve-o somente ao interesse de homens e classes que
exploram o trabalho humano e, na cegueira da ambição de bens e mando,
/ 70 /
conservam a arte de juntar os mansos em exércitos, precipitando-os em
lutas mortíferas.» (Lima, 1905: 130)
Talvez esteja aqui uma das razões que levaram Jaime Lima
a não aceitar o lugar de secretário-geral da Liga Patriótica, embora a
ela tenha aderido: uma coisa são as ideias defendidas por Antero, outras
seriam as acções desencadeadas pela heterogeneidade das adesões.
O nacionalismo de Jaime Lima corresponderá, por isso
mesmo, a um culto da alma nacional, a um nacionalismo literário,
artístico e das tradições populares, recorrendo a um certo historicismo
de matriz ética e estética que procura fundar na sociedade rural e nos
valores que a enformam, longe do consumismo e do cosmopolitismo urbano,
aqui claramente na peugada de Tolstoi e John Ruskin:
«O nosso nacionalismo estético anda domiciliado nas
cidades, é urbano, cultiva-se na cidade; e o nacionalismo, para se
nutrir de alimento consentâneo, tem forçosamente de ser rural. No fundo,
o nacionalismo é, em primeiro lugar, a expressão da afeição à terra e às
criações que a terra gera; nas calçadas, pelas quais usamos espalhá-lo
nas cidades, morre à míngua de chão onde entranhe as raízes. Além de que
a cidade é, pela condição da latitude do seu comércio, inevitavelmente
internacional: o mercado a edificou, e a essência e sobretudo a grandeza
do mercado, por não dizer o seu ponto de honra, consiste em ser
abastecido por muitas vias, e acumular, ligar e fundir as diversas
actividades e variados bens de que essas vias são as artérias túmidas e
latejantes.» (Lima, 1931b: 15-16)
/
71 /
Haverá premissas limianas que parecem aproximá-lo de Maîstre e Bonald,
os corifeus franceses da contra-revolução, mas as ilações de Jaime Lima
apontam sempre em sentido inverso e, nesse campo ideológico, poderíamos
considerá-las antinacionalistas. Algumas vezes parece aproximar-se de
Michelet, na emoção com que rodeia a Pátria, nos temas da sua poesia em
prosa, e também quando comunga com o escritor francês da ideia de uma
pátria que seja «iniciação necessária à pátria universal»;
«O nacionalismo que, considerando a pátria um campo
fechado por sentinelas possuídas de desconfiança, afere o patriotismo
pelo desejo e capacidade de apreender os bens do mundo e alcançar
primazias de força material, esse patriotismo aniquilou-o um largo
sentimento de responsabilidade numa missão de amor perante Deus e a
natureza. Ao dissolver-se, se meditamos serenamente o passado,
parece-nos uma inquietação de demência. Foi a vaidade, o orgulho, e
tantas vezes o simples capricho de imperar, representados por um chefe
ou por um bando que sacrificava o povo ao seu interesse egoísta e cruel;
para o animar à luta enlouquecia-o com visões de glória, nas quais uma
espécie de embriaguez lhe fizesse esquecer a repugnância a deixar o
trabalho, a paz e o lar, atraiçoando o amor que lhe enchia o peito. Esse
patriotismo esvai-se, por fortuna da humanidade inteira.» (Lima, 1905:
131)
Opondo-se a qualquer tipo de imperialismo, nasça ele à direita ou à
esquerda, arremessa o látego contra a corrupção dos ideais patrióticos,
«os seus desvarios e crimes», os seus «temores, ódios e egoísmos» (Lima,
1915a: 61), assacando a estes
/ 72 /
desvios e à ambição capitalista as causas da I Guerra Mundial. É que, se
à direita se pede «Deus, Pátria e Rei», e à esquerda se exige
«Liberdade, Igualdade e Fraternidade»,
«podemos estar certos de que de cada lado não se apuram
algumas centenas de homens que vejam Deus no mesmo altar, que amem na
pátria as mesmas feições, que dêem ao rei o mesmo trono, que encerrem a
liberdade nos mesmos limites, repartam pela mesma medida a igualdade e
sintam pelo mesmo coração a fraternidade.» (Lima, 1915a: 19)
É este o nacionalismo de Jaime Lima, amante e defensor
dos valores nacionais quanto respeitador e amante das diferenças do
outro, tudo argamassando num cristianismo franciscano e das origens, e
passando ao lado das correntes católicas e ultramontanas de Oitocentos.
Nesta Europa conturbada, quem mais dele se aproxima é Mazzini, mas os
dois pensadores apenas se encontraram em 1914, quando Jaime Lima o
descobre através de publicações inglesas, «poucos dias após a declaração
da guerra» (Lima, 1915a: 142, 143-144, n. 1).
|