Escola Secundária José Estêvão, n.º 5, Out. - Dez. de 1991



Na minha turma havia um tipo gordo que tinha aptidão reconhecida para a Matemática. Chamava-se Albano e estava sentado atrás de mim.

O professor, sempre que acabava de explicar qualquer problema – complicado ou não – fazia pacientemente a mesma pergunta: "Quem não entendeu?" E lá punha eu – sempre eu! – o dedo no ar. Então, o mestre lançava-me um olhar cheio de compaixão, respirava bem fundo e começava de novo.

Mas uma única vez – parece-me que se tratava de qualquer matéria nova relacionada com hipérboles, imaginem! – eu tinha percebido tudo. Logo à primeira!

«Então, quem não entendeu?» – perguntou o professor de Matemática. Ninguém se mexeu. Claro que também não me mexi. Outra vez a pergunta «Quem não entendeu?». Atrás de mim, o Albano diz-me em surdina: «Eh pá! Levanta a pata! Não ouviste? Ele já perguntou duas vezes.» Virei-me para ele e disse: «Eu entendi.» «Tu?» – perguntou o Albano incrédulo. «Não pode ser!» «Entendi, pois!» – retorqui eu.

Nessa altura já se ouvia um sussurro pela turma toda. «Põe o dedo no ar, pá!»

«Vá lá, pá», insistia o Albano já nervoso, «Levanta o dedo!» E como eu não me mexia, sai-se o Albano, com voz mansa: «Por favor, pá, põe lá o dedinho no ar! Faz lá isso! Eu é que não apanhei uma do que o tipo disse. Estás a perceber?»

«Então põe tu o dedo no ar!», disse eu já furiosa. «Não posso! Ia dar muito nas vistas. Ele já está habituado a que sejas tu. Faz lá o jeito!»

E pronto! Pus o dedo no ar.

Então, o professor, lá do alto da sua cátedra, olhou para mim, ao mesmo tempo irónico e tranquilizador, fez-me um sinal com a mão e disse:

«Está bem! De qualquer maneira eu ia sempre repetir, por tua causa!»

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* Texto escrito para abertura do Programa de rádio "Dedo no ar", produzido por professores da Escola.

Disse adeus. Meteu-se ao caminho. Começou a cantar. Alto e desafinado.

Os lobos viram bem que ele estava nervoso e que cantava para afastar o medo.

Viu, ou imaginou que viu, os olhos dos lobos em volta. Ouviu, ou imaginou que ouviu, os passos cautelosos dos lobos em volta.

Os lobos cheiravam-no e cheiravam-lhe o perfume enjoativo que o medo exala. O medo cheira à distância – sabem os lobos isso melhor que ninguém. Fecharam os olhos para não se denunciarem. O cheiro chega para não o perder de vista. Não rosnam os lobos. Na escuridão, sem lua, os lobos não uivam. 

Não, não viu lobos nenhuns. E recomeçou a cantiga. Para afastar os lobos dos seus medos. Mas pareceu-lhe ter tocado em qualquer coisa húmida e fria. Pensou que podia ter sido o focinho do lobo mais atrevido da alcateia.

Um dos lobos aproximou-se tanto que o homem lhe tocou. No focinho. O lobo estremeceu de medo a esse contacto. Podia ter estragado a noite a toda a alcateia, com esse acto impulsivo. Os outros lobos estacaram e o ar dos lobos ficou carregado da ameaça muda e cega que a alcateia mandou para o lobo impulsivo.

Sempre cantando, o homem parou, tirou o cachimbo e o pacote do tabaco, encheu o cachimbo com os gestos nervosos dos dois dedos treinados. Com o cachimbo na boca, continuou a cantar. Cantar com o cachimbo na boca não é bem cantar. Procurou os fósforos nos bolsos. Em todos os bolsos. E nada. Deixou-se ficar de cachimbo na boca, trauteou um verso de irritação, e começou a andar mais depressa.

Os lobos sentiram o cheiro do tabaco. Sabem que atrás do tabaco vem o relâmpago do fósforo, / 43 / que tudo cega inicialmente mas que acaba por tudo mostrar. Como se obedecessem a um sinal combinado, os lobos alargaram o círculo, o cerco. Ouviram o homem a praguejar e souberam que ele não tinha encontrado os fósforos. Voltaram a apertar o círculo.

O homem teve a sensação que tinha estado livre de medo, por alguns momentos. Deve ter sido a expectativa de uma fumaça bem puxada – pensou ele. Ou terá acontecido que os lobos, na previsão do fogo, se afastaram? – ironizou com o medo. Verdade ou não, isso durou muito pouco tempo. Com o passo apertado, continua a caminhar, mas sente-se seguido e cercado. Canta, mas a voz sai embargada; mais parece que vai a chorar alto. Acaba por sentir-se pior só por se ouvir. Cala-se. Chupa o cachimbo, vigorosamente, como se respirasse por ele.

Os lobos aproximaram-se ainda mais, quando o homem começou a choramingar na canção. E mais ainda quando ele se calou. Mais ainda quando ele se apressou e quando ele começou a respirar ruidosamente pelo cachimbo. Estranham que ele ainda não tenha tropeçado nos lobos que lhe barram a fuga para a frente. Fazem prodígios aqueles lobos a andar sempre de lado e para trás. Sentem vontade de prolongar o cerco só pelo gozo que a perícia lhes proporciona.

O homem chegou ao fim da rua e virou para a viela. Sentiu-se em segurança, naquele beco sem saída de sua casa. Recomeçou a cantar, na esperança que algum vizinho o ouça e venha à porta e a viela se ilumine alguma coisa. Tropeça. Deve ter sido nalguma soleira. Não pode ainda ser a sua. A sua porta está mesmo pegada ao tapume do fim do beco. Já não pensa que pode ter tropeçado num lobo. Acelera.

Os lobos fizeram prodígios para dar a curva. Tiveram de apertar mais o cerco. Sentem o bafo uns dos outros. Um dos lobos tropeçou numa das soleiras salientes e não pode evitar que o homem tropeçasse nele. Já não acreditam que o homem não tenha dado por eles.

O homem parou ao fim do beco. Apalpou os bolsos, à procura das chaves. Vá lá! Ao menos as chaves apareceram. Pega nelas, e continua o caminho, apoiado à parede.

Os lobos ouviram tilintar qualquer coisa... Não sabem o que é que o homem tem na mão e o que é que prepara. Desconfiados, tomam cautelas e preparam-se. Os lobos da frente bateram numa parede. Não podem recuar mais. Tensos, esperam o sinal.

O homem mete a chave na fechadura. Roda-a. Abre a porta, entra rapidamente e fecha a porta imediatamente. Acende a luz da entrada, tira o sobretudo, vai pela casa fora acendendo tudo quanto é luz. Na mesa, descobre uma caixa de fósforos e acende o cachimbo.

Os lobos não perceberam. Mas sentem a falta do homem. Metem os rabos entre as pernas e dispersam-se. Contra a lua, que apareceu no céu, recorta-se o lobo que uiva. Como se de um sinal se tratasse, os lobos dirigem-se para a sede do medo. Planeiam o trabalho cuidadosamente na cabeça do homem. ■

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* Texto escrito para abertura do programa radiofónico sobre educação e cultura "Dedo no Ar", produzido e realizado por Arsélio Martins, Esmeralda Assunção, José Alberto Lopes, José António Moreira e Manuela Seiça Neves.
 

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

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