Escola Secundária José Estêvão, n.º 25, Novembro de 1999

 

Viagens em Terras Castelhanas

Uma viagem a Segóvia ao estilo de Almeida Garrett

 

 

Partir à descoberta de novas terras ou permanecer em terras lusas é uma escolha que não requer muito tempo de reflexão! Principalmente se tivermos em conta que estranhamente, nos parece sempre mais aliciante uma visita ao estrangeiro do que uma viagem em solo lusitano.

O curioso é que desde há algum tempo os planos feitos para uma viagem à cidade de Segóvia acarretaram consigo situações um tanto bizarras e diversos momentos de atribulação. Mas nada que uma turma de 11.º ano, aliada a professores perspicazes, não pudesse resolver. Finalmente, e após vários momentos críticos, ficou decidido que Segóvia nos receberia como visitantes por dois dias.

Assim, ficou decidido partir de Aveiro no dia 18 de Março de 1999, uma quinta-feira, pelas 7h:30m. No entanto, quando chegámos à porta do liceu, local de encontro das três turmas do 11.º ano e dos professores acompanhantes, o condutor da camioneta que nos devia levar ao nosso destino, estava provavelmente ainda a fazer a sua "toilette”, actividade à qual deve dedicar todo o seu tempo, motivo que nos fez esperar, sob os primeiros raios matinais, cerca de uma hora. Finalmente, partimos pelas 8h:30m, confortavelmente instalados, ao encontro de novos horizontes. Entretanto, uma tendinite iria por momentos abalar a saúde da minha estimada amiga e companheira de viagem Vera. Mas, como a indústria farmacêutica proporciona aos seus consumidores milagrosos produtos, pouco tempo depois Vera encontrava-se restabelecida e pronta para afrontar o convívio fraterno dos nossos "amiguinhos” das turmas vizinhas.

A auto-estrada que leva à fronteira oferece-nos / 29 / paisagens essencialmente marcadas pela monotonia e uma luz demasiado opaca para os nossos olhos ávidos de mudança. Mas, de camioneta ou de avião, com direito a bilhetes de primeira classe, acabaríamos por chegar a Espanha da mesma maneira, então para quê perdermos tempo com lamúrias infantis? Assim, passámos tranquilamente a fronteira e entrámos em solo espanhol, sem mais demoras, pois já era tempo de saborear a próxima refeição do dia: o almoço!

Santo Deus! Que pavorosa visão! Não desejo que os caros leitores alguma vez deparem com tal! Da janela da nossa camioneta, em frente a um restaurante espanhol, foi-nos possível observar um camião estacionado ao nosso lado onde jaziam vacas, ou membros de seus corpos expostos ao ar livre, servindo de local de repasto para todos os insectos das redondezas. Estranha situação alguns anos após o episódio polémico das "vacas loucas", nomeadamente aqui na terra dos "nuestros hermanos”. Mas havia que fechar os olhos a esses percalços de viagens, tomar a nossa refeição e partir, saciados.

O percurso até Segóvia desenrolou-se então sem mais acontecimentos nefastos. Por volta das 16h:30m avistámos as muralhas de Segóvia, o que originou uma agitação profunda entre os nossos companheiros de viagem, que deixavam transparecer, através dos seus gritinhos histéricos, a sua alegria por chegar ao destino tão ansiado!

Na cidade medieval, envolta de mistérios, pressinto ainda planar, ó nobre Alcazar, trágicos destinos dentro dos teus altos muros, ocultos nas tuas passagens secretas, torres ao abandono.

Cenário perfeito para as aventuras de Percival e Lancelote, ou os devaneios de Luís II da Baviera! O que não dariam muitos românticos para contemplar o voo dos corvos à volta das torres, atraentemente sinistras, desse castelo de inspiração alemã! Quadro perfeito para os olhos ansiando por sedutoras imagens!

Se Gérard de Nerval me pudesse ouvir acusar-me-ia de tentar vulgarizar o seu estilo tão único de descrição de locais de embriagante beleza e Waterhouse forçar-me-ia de certo a levá-lo a tal local para poder assim fazer desse castelo o cenário onde, certamente, pintaria uma das suas musas, trajada de longas vestes, envenenando um possível pretendente através de lânguidos olhares e poções mágicas.

Foi uma pena o castelo só estar aberto aos visitantes até às 18h:30m, pois quem sabe em quantas mais aventuras nos poderíamos ter metido e que horríveis segredos descoberto!; mas havia que recordar que não estávamos a rodar o "Drácula” de Francis Ford Coppola e nem sequer tínhamos direito a toda uma equipa de maquilhadores, cabeleireiros e assessores de moda.

As ruas da cidade não se cobriam de tapetes vermelhos à nossa passagem, mas encheram-se, sim, de mais estudantes a brincar aos turistas.

Foi então decretado que as três muitíssimo bem comportadas turmas tinham autorização para se dispersar e, tal como borboletinhas selvagens, explorar a cidade à vontade. Desta forma, aproveitaram para aliviar os seus bolsos das várias pesetas com que os tinham recheado, nas diversas lojinhas turísticas, enquanto os vendedores rejubilavam de prazer por ver tais criaturas inocentes dispostas a serem exploradas.

Estimados leitores, não desejando maçar-vos mais com estes pormenores, convido-vos a conhecer o hotel para o qual logo seguimos.

Instalados no EI Corregidor, pudemo-nos aperceber de que não seríamos invadidos por uma / 30 / legião de baratas ou certos roedores clandestinos durante a norte, o que a bem dizer apaziguou a camada feminina do grupo. Após instalação, jantámos para, em seguida, nos dedicarmos a uma esmerada maquilhagem (sim porque a "night' espanhola esperava-nos). Depois de inundadas por um frasco de brilhantes para os olhos, saímos para a rua que, em breve, se veria infestada por estes curiosos pirilampos.

Foi apenas por volta da meia-noite (sim, pois o tempo da Cinderela já lá vai!) que pudemos entrar numa discoteca espanhola, acompanhados evidentemente pelos nossos protectores professores.

Eu e as minhas amigas decidimos inaugurar imediatamente a pista de dança ao som dos agudos da Tina Turner, e assim libertar toda a tensão acumulada pelos testes das semanas anteriores, o que nos custou alguns olhares reprovadores do clã adolescente que nos rodeava; mas, felizmente, a pista não se transformou numa arena e não houve cristãos chacinados, pois afinal era em Espanha que estávamos. Foi antes um local onde nos divertimos, animadíssimos. E desta vez, era Ricky Martin que nos fazia bailar! No momento em que os "barmen” se apressavam a servir as bebidas pedidas por alguns dos alunos, os professores entraram em alerta e vieram 'armados dos seus escudos e lanças' correr em seu socorro! E assim se passaram cerca de duas horas, após as quais nos viemos arrastando até ao hotel, onde nos preparámos para uma noite merecida de descanso.

Desgraça! Durante a norte, os telefones internos começaram a tocar desalmadamente e as portas foram-se pouco a pouco abrindo, formando em cada quarto reuniões em pijama! O resto é estritamente confidencial. Se houve conspirações, já não sei, não quero saber e tenho raiva a quem souber. O que sei é que ninguém foi assassinado, mas se foi, ressuscitou, pois logo pela manhã, todos se levantaram e se dirigiram para o restaurante do hotel, onde desfrutaram de um consistente pequeno-almoço, que lhes viria a dar forças para o novo dia que se apresentava.

Após as malas feitas, partimos satisfeitos com o caloroso acolhimento que recebemos e, evidentemente, com o facto de não termos de fazer as nossas camas ao levantar!

Próximo destino: Granja de San IIdefonso.

Seguiram-se fotografias em conjunto, individuais, acrobáticas, enquanto visitávamos uma construção colossal, que serviu de residência a Filipe V. Mergulhámos no universo dos cristais, dos veludos, deixámo-nos absorver por aquele espaço imenso, percorrendo galerias de quadros e tapeçarias, onde pude mesmo contemplar algumas obras do meu caro Dürer.

Enfim, suspendamos o exame desta questão. O resto são memórias perpetuadas em fotografias. Durante as duas horas de repouso que nos foram dadas, encarnámos em aventureiros destemidos e procedemos a uma minuciosa exploração da localidade. Aventuras estas que nos permitiram, por mera curiosidade, assistir a uma missa celebrada em espanhol. E agora vos digo, caras leitoras, assíduas ouvintes da celebração religiosa, vós que vos dedicais à vida cristã, com tanto fervor e boa vontade, mesmo que seja para depois criticar, discriminar e caluniar o próximo (como de certo não vos foi ensinado no templo sagrado), renunciai à sesta quotidiana e vinde fazer parte deste acto logo após o almoço; e assim, nas vossas cabecinhas ocas, tende a ilusória esperança de que os pecados cometidos durante a manhã vos serão perdoados à tarde!

Dito isto, regressemos à camioneta que nos espera de modo a sermos conduzidos ao próximo destino: Ávila. / 31 /

Teríamos entrado numa cidade fantasma? Dentro das muralhas da dita, as estreitas ruas medievais encontravam-se completamente desertas e o comércio fechado. Mas eis que a visão de um outro grupo de turistas veio varrer de vez as nossas suspeitas. Era apenas um feriado, o de S. José. Que pena! Teria dado um perfeito relato embebido em poesia, mas que se dane! A visita à Catedral previa-se complicada, pois havia uma grande afluência de pessoas; e como o sol teimava em nos atingir com os seus lancinantes raios, decidimos dedicar o resto do nosso precioso tempo ao repouso. É preciso ver que ainda não estávamos restabelecidos da noite anterior.

Impossibilitados de fazer compras, pois as lojas continuavam obstinadamente fechadas, regressámos ao nosso tradicional transporte, onde permanecemos até Vilar Formoso. Aí, os ogres mais gulosos puderam reabastecer as suas mochilas com gigantescos sacos de bombons e enormes tabletes de chocolate na fronteira de Espanha. Satisfeitos, os mesmos ogres puderam continuar o seu percurso até Mangualde, onde os seus estômagos começaram a preveni-los que a hora do jantar se aproximava. E foi ao avistar uma estação de serviço, já em território português, que estes seres vorazes começaram a planear um assalto à cozinha, e possível tortura psicológica ao cozinheiro, caso este se recusasse a preparar-nos uma sopa "à nossa moda”!

Sim, pois os caros leitores não imaginam decerto o suplício que é ingerir comida de plástico durante dois dias consecutivos, após os quais ideias pouco cristãs começam a invadir as nossas mentes ávidas de um alimento saudável. Não, não foi necessário recorrer à violência, pois à nossa chegada foi-nos servida uma sopinha de batata, que saboreámos deliciados, enquanto alguns colegas acabavam com os restantes pacotinhos de batatas frijas esquecidos no fundo das mochilas.

Assim, continuámos a nossa viagem até Aveiro, que se passou agradavelmente entre risos, conversas afáveis e planos para uma próxima viagem.

Foi então com prazer que passámos o "Feira Nova”, o canal de Aveiro e chegámos à porta da nossa prezada escola José Estêvão, pelas 23h:30m, onde os nossos progenitores ansiavam por verificar se continuávamos inteirinhos, como da última vez que pousaram os olhos sobres nós.

Neste contexto, a nossa directora de turma pôde tranquilamente apreciar a partida das suas "criaturinhas amorosas" sob as asas paternais, ou maternais, aqueles que bem no íntimo sabiam que, longe das suas crias, tinham tido a rara oportunidade de desfrutar de dois longos e preciosos dias de paz e sossego.

Vanessa Autun

 

 

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págs. 28 a 31