Escola Secundária José Estêvão, n.º 1, Out.-Dez. de 1990

ESPARTILHO

  Catarina Soares Martins 

Não posso com o Gomes de Carvalho! E logo fui sonhar com ele! De todos os que me espartilharam ele foi o pior... O pior também não; dos piores. De que te ris? Achas piada a que me encolham? Claro que se não fossem esses Gomes de Carvalho todos que para ai andam, tu nem sequer existias. Eu ocuparia tudo, livre, brava, solta...

Lembro-me tão bem de como tudo era antes dele chegar! Não foi o primeiro a aborrecer-me, mas houve uma época em que fui tão livre... Imagina tu como era, com todos a fugir de mim e do meu lodo! Muito me diverti; sem pescadores a cortar-me com barcos e redes, sem agricultores a usar-me, sem salinas a prender-me... Todos barafustavam e eu ria! Então mandaram o Oudinot prender-me e fazer-me servil: ele fez uns projectos, iniciou umas obras, mas foi-se embora. E apareceu o Luís Gomes de Carvalho, em 1803!

Durante 5 anos encheu-me de pedras e espetou-me ferros e paus. Foi um tempo atribulado, ele contra os outros, todos contra mim. Ele com a barra fechada a querer domar-me, eles a quererem abrir diques para me usar. Eu com pouca força para lutar! Acabaram por ganhar as gentes da terra e do mar que me queriam usar: queriam peixe, sal, boas colheitas... Sempre foram muito exigentes! E o Gomes de Carvalho fez-lhes a vontade e abriu um dique, em 1806. Então foi ainda pior; domada e usada!

Em 1808 acabaram as obras e descansei, chorando de raiva e ganhando forças. Quando 10 anos mais tarde ele construiu o dique na margem norte, eu, já recuperada, só precisei de 2 anos para o deitar abaixo. E pouco depois ele foi-se embora! Disseram que ele os tratava mal e que não tinha sabido construir o paredão. Nunca acreditaram na minha força! Mesmo quando eu rompi tudo o que fizeram depois dele, a culpa era sempre do director de obras; a partir de 34, e num curto período, tive 8 directores. Mas não evitaram que, por algum tempo, fosse novamente dona e senhora do mundo!

Agora sou rainha destronada; suja, usada e cada vez mais espartilhada, para que tu cresças.

Mas corre em mim a mesma fúria de há 200 atrás!

E hei-de recuperar a coroa!

1.º Prémio de prosa do escalão B do

Prémio Literário de José Estêvão ‘90.

Tema: A ria que outrora sorria


 

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

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