Relembro o canto evanescente das cigarras em cio
como o bom augúrio de um imaginado e lindo estio,
o tão desejado verão do nosso contentamento
que vamos desenhando nos rastos deste caminho
ladeado de urze, tojo, rosas, e amores perfeitos
plantados a esmo pela pródiga natureza
nos idos já esquecidos em que ainda sonhávamos
com areias quentes em praias sem alforrecas
e oásis a convidarem para uma vida calma e airosa.
E agora sobraçando este feixe de nardos
despojo que nos resta das promessas perdidas
aqui vamos, ajoujados de súbitos desejos
por dentro deste inverno sem primavera à vista,
neste fugir sempre a fugir. afadigando os passos
já trôpegos, com sentimentos de desconfiança
e o receio de alguma triste surpresa na encruzilhada
aquando de mais uma encenação de rota segura
nesta incontornável demanda do porto de abrigo
onde naufragado está o bote de todas as esperanças
afundado que foi na virulenta ressaca da maré.
Essa saudosa embarcação, queremos revê-la;
senti-la na evocação dessa maldita efeméride,
doloroso desprazer a que não nos podemos furtar
e, nesse então, à sombra das vitórias havidas
festejadas ao som monocórdico das cigarras
deixemos a imaginação partir à desfilada
pois estaremos já na tarde acolhedora do nosso estio
esquecidos, certamente, da malvadez deste inverno
que há-de ficar submerso, sem remédio nem remissão,
nos odores dos crisântemos e na sombra dos ciprestes
envolvendo como assustador espectro as sepulturas
dos que, não resistindo à sua diabólica voracidade
serão por nós guardados na eternidade da memória.
Dezembro de 2020 |