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a ilha do sal


crónica de carlos grangeon
 

 



Para quem vem de longe, de avião, o primeiro contacto com Cabo Verde não é animador. A ilha do Sal, onde está instalado o único aeroporto do arquipélago que permite a aterragem e descolagem de grandes aviões intercontinentais, é duma aridez confrangedora.

A ilha, com 32 kms de comprimento por 12 kms na sua maior largura, é como um imenso porta aviões fundeado nas águas quentes dos trópicos.
 

/ 5 / Plana e seca, quase completamente desprovida de vegetação, a monotonia da sua paisagem, em que prevalecem os tons cinzentos e amarelados, é cortada aqui e além por pequenas montanhas de lava, isoladas, negras, de forma cónica, testemunhos das ciclópicas convulsões vulcânicas que deram origem ao arquipélago. Isto dá à ilha um aspecto lunar, que não deixa de ter uma estranha e rude beleza.

Espargo, onde está o aeroporto e os principais aquartelamentos militares, Preguiça, a dois passos, Palmeira, aldeia de pescadores, com as instalações da Shell, Pedra de Lume, com as suas curiosas salinas e Santa Maria, sede do concelho, com fábrica de conservas e salinas, são as únicas povoações onde se concentra a população fixa da ilha, num total de cerca de 1 900 habitantes e composta principalmente de mulatos (85%), pretos (10%) e brancos (5%).

De que vive esta gente? Alguns da pesca, muito rudimentar, outros da extracção do sal ou de pequeno comércio e, a maior parte, depende do aeroporto e das forças armadas que guarnecem a ilha. O nível de vida é muito baixo, mas, em contra partida, quase não há analfabetos.

É na verdade uma característica curiosa e simpática da população de Cabo Verde o seu gosto e aptidão para o estudo.

O aeroporto, com condições extraordinárias para dele se fazer a grande placa giratória do Atlântico Central, não acompanhou o progresso da aviação e deixou de ser procurado pelas grandes carreiras internacionais, que passaram a preferir Dakar ou Las Palmas.

Só os antiquados aviões do Voo da Amizade da TAP-PANAIR para o Brasil, e agora os aviões militares de transporte, continuam a utilizá-lo.

/ 6 / Os jornais anunciam que vão ser feitas obras importantíssimas de ampliação de pistas e modernização das instalações, no valor de 76000 contos. É uma obra que se impõe e vai ser de decisiva importância para o progresso desta ilha e de todo o arquipélago.

Numa semana de permanência na ilha do Sal, a que fomos forçados por falta de comunicações para S. Vicente, tivemos tempo de sobra para ver tudo o que ela tem de interessante e para a percorrer em todos os sentidos.

Poucas ilhas terão sido baptizadas com tanta propriedade como esta. De constituição vulcânica, as cavernas imensas que se formaram no seu subsolo poroso encheram-se de água do mar que nelas foi depositando, ao longo de milhares de anos, o sal que acabou por as encher completamente, formando enormes jazigos de sal gema.

Como na ilha chove raramente, os poços que se abrem, embora de entrada dêem água doce, acabam, a pouco e pouco, por dar água cada vez mais salgada.

Há só dois ou três poços, em toda a ilha, onde a água se tem mantido em razoáveis condições de ser utilizada para beber. Para neles se abastecerem, vem gente de muito longe, com latas ou bidões que vão rolando pelo solo calcinado.

No Espargo, para uso do aeroporto, aquartelamento e hotel, há uma moderna instalação de destilação de água do mar suficiente para as necessidades indispensáveis desta zona.

No próprio hotel, edifício de um só pavimento construído há muitos anos pela Alitália, em madeira e fibrocimento, a água canalizada nos quartos de banho é salgada e muito salgada.

Aproveitando esta abundância de sal, há duas importantes instalações de extracção, já muito antigas e, cada uma no seu género, interessantíssimas.

A Pedra de Lume tem as salinas a 150 metros de altitude, / 7 / na cratera de um vulcão extinto, cujo remota actividade é evocado pelo nome – Pedra de Lume.

A água do mar, que se infiltra através de fendas das rochas porosas alagando os jazigos de sal gema, é bombeada na vertical até ao nível da cratera e lançada nos grandes tabuleiros rectangulares da salina, onde se faz a extracção do sal de forma muito diferente da usada em Aveiro.

A exploração é feita todo o ano e o sal só é retirado dos tabuleiros das salinas quando a camada atinge uma espessura de 15 a 20 centímetros. Por este motivo, a extracção faz-se com pequenos tractores apropriados.

O sal retirado é triturado e transportado por cabo aéreo até à refinaria e armazéns, na enseada de Pedra de Lume, onde é refinado, calibrado e embalado para a exportação.

Vistas dos bordos da cratera, as salinas têm um aspecto maravilhoso, com os rectângulos que os constituem de várias cores, que vão do branco imaculado ao rosa vivo e ao verde, conforme a flora ou fauna microscópica que as povoam.

É um espectáculo maravilhoso e inesperado para quem, depois de subir a encosta rude da montanha, se abeira dos bordos da cratera enorme.

As salinas de Santa Maria são completamente diferentes. Numa planura a 5 ou 10 metros acima do nível do mar, abrem / 8 / poços donde a água, impregnada de sal, é trazida à superfície por meio de toscos moinhos de vento de madeira que, rangendo e chiando, vão alimentando as salinas. A salinidade da água é tal que nas valas por onde corre se formam blocos de sal de caprichosos formatos.

O sal forma uma espessa crosta nos tabuleiros das salinas, donde é arrancado de três em três meses, triturado, calibrado e embalado em sacos de juta.

O embarque é feito numa velha ponte cais privativa, de madeira, dotada de uma linha de «decauville» e de um «derrick» para carga dos batelões que transportam o sal para bordo.

Tanto em Santa Maria como em Pedra de Lume os navios ficam ao largo, a cerca de 300 metros de terra, o que torna por vezes difíceis as operações de embarque e desembarque de passageiros ou mercadorias, sobretudo na época das calemas.

A aridez salgada da ilha tem como consequência, além da quase completa ausência de vegetação, uma pobreza de fauna absolutamente confrangedora.

Além dos cães, gatos e moscas que se encontram, em pequena quantidade, nos povoados, vêm-se apenas burros, cabras e corvos.

Os burros e as cabras andam em liberdade pelas planuras da ilha, deixando perplexo quem os vê, pois não se pode fazer ideia de que se alimentam.

Bocados de fazenda, madeira, papel ou cartão, tudo lhes serve para matar a fome, uma fome a que estão habituados desde que nasceram.

E assim vão vivendo e se reproduzem, dando-nos uma ideia do poder de adaptação dos seres vivos aos ambientes mais difíceis.

Quando chove, o que é raríssimo, logo a terra refrescada começa a cobrir-se de uma ténue camada de verdura, capim finíssimo que dia a dia se vê crescer, crescer até que a seca, retomando o seu despótico domínio, aniquila implacavelmente estas manifestações de vida que emprestam fugazmente à ilha uma aparência de frescura repousante.

Seca, sede, fome, são o flagelo permanente desta gente pacífica e resignada que, isolada / 9 / no mar imenso, vive uma vida em que a pobreza e a monotonia são as características dominantes.

E por quase todo o arquipélago, numas ilhas mais noutras menos, a vida é assim.

O que ainda vai valendo a esta gente é o clima extremamente saudável. Não há humidades prejudiciais nem mosquitos transmissores de doenças. Nem tudo pode ser mau. E esta gente, de feitio indolente e brando, também se diverte e distrai, com os seus bailaricos ao som das mornas e coladeiras, belas expressões musicais do folclore de Cabo Verde.

O mar em volta é abundante em peixe, mas os pescadores são poucos e os processos primitivos. Pesca-se principalmente atum, bicuda (espécie de pescada) e lagosta. Os perceves, abundantíssimos nas rochas vulcânicas da costa, atingem tamanhos inconcebíveis de trinta centímetros e mais.

Exceptuando o peixe e algum leite e ovos, tudo o que é alimento é importado das outras ilhas ou da Metrópole.

As comunicações com o resto do arquipélago são por vezes difíceis.

Há uma carreira regular de aviões, 3 vezes por semana, da / 10 / Praia a São Vicente, com escala pelo Sal e São Nicolau, dotada de dois aviões de 6 lugares, mas com um só piloto.

As comunicações por mar fazem-se por meio de velhos palhabotes que de vez em quando tocam em St.ª Maria e Pedra de Lume e agora também pelo «Santo Antão», moderno navio-motor de cabotagem que serve todas as ilhas.

Quanto a comunicações internas, há as ruas asfaltadas do Espargo (aeroporto) e o resto são trilhos apenas demarcados, por onde os «jeeps» se vão desconjuntando e moendo os ossos dos seus ocupantes.

E é isto a ilha do Sal, que com os actuais acontecimentos de África e mercê da posição extraordinariamente feliz do seu aeroporto, tem cada vez maior importância nas ligações entre as várias parcelas do Mundo Português.

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