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a brigada nocturna

HÁ factos passados na nossa vida que, ou pela repercussão que tiveram ou pelo espectaculoso e inebriante entusiasmo que nos comunicaram, ou ainda, pelo inédito do seu nascimento, criaram actividade em nós, tornando-os inesquecíveis.

Assim, relembro à laia de episódio, o que foi a vida no «São Gonçalinho» – nos mares da Groenlândia, no mês de Maio quando no ano de 1954 eu fazia o meu baptismo na pesca do «fiel amigo».

Esta campanha, começada com bons auspícios, esteve prestes a fracassar; porém, o génio explorador que há tanto caracteriza os nossos marinheiros, tornou-a na mais abundante de quantas se têm realizado.

Os navios da nossa Empresa tinham, mais uma vez, sido os pioneiros dos bancos da Groenlândia naquela hora matutina. Jamais alguém tinha pensado em pescar por aquelas paragens com o Sol tão perto do horizonte.

Então, da miséria em que saímos dos bancos da Terra Nova, foi como se entrássemos repentinamente num oásis: o convés do nosso navio, de triste, sombrio e vazio, espargiu cintilações – naquela luz plúmbea, mortanceira, que o cinzento céu despovoado, iluminado por um Sol desmaiado, a tudo comunica – transbordando de peso e volume, pela faustosa riqueza que como prémio nos era oferecida.

/ 5 / Tornaram-se aqui, todos, ainda poucos, os braços existentes a bordo.

O movimento no nosso convés assemelhava-se a Trafalgar Square: homens que corriam aos aros a receber as portas; homens que lançavam «boxes» às guias que vinham partidas; homens que desamarravam o saco atolando no peixe que já enchia o quête; homens que em ritmos certos de cadência acelerada golpeavam, eviscerando, decapitando ou escalando; ainda outros em azáfama confusa ao leigo, lavavam, mediam, transportavam e baldeavam peixe para o porão. Tudo isto se repetia 24 horas no dia. E era sem opressão, sem desagrado, havia entusiasmo e alegria, diligência e dedicação. Um entusiasmo comunicativo, uma alegria inebriante que todos sentiam e a todos animava na tarefa do trabalho.

À fúria do entusiasmo das primeiras horas, opunha-se já a inércia inevitável do cansaço. Os nossos homens estavam em «cima» havia 36 horas e pelas suas mãos tinham passado neste período, tanto como 1.400 quintais de bom bacalhau. Havia que descansar, que dormir um sono reparador. Mas o nosso navio encontrava-se em estado de sítio: as vísceras, cabeças e espinhas de milhares e milhares de peixes acumulavam-se, em amálgama ensanguentada, por todo o convés; os quêtes, ainda cheios e transbordantes; as redes, algumas, necessitavam reforços. Mas os homens, esses, mais que tudo, careciam de descanso.

Nasceu assim a «Brigada Nocturna» que, constituída por todos aqueles que têm o seu serviço regulamentado por quartos, estando – como necessariamente estava – o navio parado, podiam arregaçar mangas e lançarem-se na tarefa imprescindível de limpeza, baldeação do peixe do parque para o quête, reforçar as redes, transferir sal de um para outro lado, enfim, completando um sem número de pequenas e / 6 / grandes coisas que, não requerendo especialização, ocupam braços, roubando tempo.

A actuação da «Brigada Nocturna» estendia-se quase sempre por 4 a 5 longas horas. E recordo com o dali saíamos nos primeiros dias, digo noites, aqueles que pela condição do seu trabalho não estavam acostumados a esforços físicos.

Ainda me lembro de uns a queixarem-se dos rins, outros das costas, braços e pernas, mas todos aguentavam firmes e de pé, é certo que enquanto uns por prazer, outros... porque não dizer? Por vergonha.

Mas a cada noite a «Brigada» mais rendia, e era com admiração que os nossos homens viam pela manhã cedo, quando meio dormidos, meio entorpecidos, voltavam à lide, a escolha feita, o convés arrumado, o porão safe, as redes prontas, as mesas lavadas, como se mão de fada durante o sono tudo aquilo fizesse. Nesta quadra, todos bem castigavam os músculos. Mas o que impressionava eram os olhos encarnados e expulsos das faces pela mirrança das carnes, as vozes fracas pela rouquidão, as mãos disformes, inchadas, cortadas pelos múltiplos golpes e picadas, retesadas pelo gélido bafo glaciar, rosetadas de «roxas», de bordeados leitosos pelo prolongado contacto com a água.

Foi uma luta de heróis: 10.000 quintais em 19 dias, dezenas de redes consertadas, toneladas de sal que correram todos os cantos do porão, parecendo combinado em ocupar sempre o lugar mais impróprio.

Tudo isto foi, porém, necessário, para que no fim pudéssemos cantar vitória com os porões atestados, o «sal alagado», como se diz na gíria da pesca.

episódio narrado por

José Valente de Oliveira e Sousa

 

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