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            foto de

António Matias

 

lucubrações nocturnas

à guisa de conto

 

     – Quem não gosta de recordar a mocidade, mundo de fagueiras ilusões, que o tempo vai diluindo?
     – Quem não adora ter presente idos amores, recordações que são saudade, anseios que se tornaram quimeras?
     A horas mortas me pergunto e me respondo.
     Nesses momentos, cerro os olhos e transporto-me ao passado. Embrenho-me nele e vivo-o no presente...
     Tenho dezasseis anos e um espírito fraco.
     O romantismo ultrapassado de Camilo deu-me volta ao miolo, tal como aconteceu ao da «triste figura» com as novelas de cavalaria. Num sorriso de garota vejo um mundo de promessas. Nos seus olhos, quase sempre indiferentes, vejo (Oh, cego!) centelhas de amor. O seu andar donairoso subjuga-me, enche a minha alma de estranhas sensações. E apaixono-me. A todas eu amo, porque nelas somente vejo candura.
     Mas agora reparo: como está maravilhosa a noite! Tudo é silêncio. E eu, que sou o poeta da solidão, amo as noites calmas.
     Há no alto um luar doentio, ofuscado por miríades de estrelas. Em meu redor tudo é irreal.
     Olho as águas silenciosas da ria que banham esta Costa Nova linda. Os barcos dormem sobre o espelho líquido onde se mira, vaidoso, o firmamento. E eu fixo intensamente as águas.
/
13 / Fico fascinado. Elas reproduzem um rosto de donzela, formoso como jamais vi.
     Os olhos, muito rasgados, têm a cor negra da noite e os seus cabelos, negros também, são longos e cintilantes.
     Volto-me e ela sorri. Tento falar, mas apenas consigo emitir um suspiro prolongado. Ela sorri de novo e afasta-se.
     Sigo-a durante algum tempo, até que desaparece no interior duma moderna moradia.
     Quedo-me na expectativa.
     De súbito, abre-se uma janela do primeiro andar e ela reaparece. Olhamo-nos e sorrimos.
     Uma série de noites iguais se sucede. . .
     Eu não falo com ela, nem ela comigo.
     Mas olhamo-nos e sorrimos. . .
     Mas (há sempre um mas...) um dia vem em que olho em vão a janela onde ela costuma aparecer. Em seu lugar, há apenas um cortinado que drapeja ao cicio da brisa, como que a dizer adeus...
     E noites iguais se sucedem...
     É desesperado o meu viver. Verto lágrimas de dor. Inutilmente.
     E hoje, noite igual à noite em que pela primeira vez a vi, contemplo as águas calmas da ria. Igualmente sorriem as estrelas e a lua e dormem os barcos.
     Deslizam-me pela face duas lágrimas que tombam na superfície plácida das águas.
     – Que vejo, meu Deus?
     – Sim, sim, é ela, a sua imagem reflectida. E sorri!
     Volto-me num arrebatamento e não vejo mais do que as esguias silhuetas dos velhos prédios perfilados ao longo do passeio.
     Olho outra vez a ria. A imagem desaparecera.
     Sim, leitor, a donzela do conto é a mocidade, menina eternamente caprichosa, que se aparta de nós, desvanecendo-se nas brumas do passado.
     Por isso, também a ti pergunto:
     – Quem não gosta de recordar a mocidade, mundo de fagueiras ilusões, que o tempo vai diluindo?
     – Quem não adora ter presente idos amores, recordações que são saudade. anseios que se tornaram quimeras?


joão carlos soares

 

  nostalgia  

poesia de
maria de fátima
freire de lima

 
  Quanto me cerca é nostálgico!
Monótono o meu sentir!
Na morte não se é enérgico,
E não se pode mentir.

Até a Plácida noite,
Ao longe, me faz pensar!
Como é tão suave a morte
Em deixando de amar.
Em mim paira a tempestade
D'um amor que foi tufão.
Sou feliz, vivo na saudade,
Fugi da tua prisão.

Desta Pérfida proeza,
O culpado é o vento,
Que traz e leva a presa
E deixou o desalento.

 

 

 

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