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Pouca gente em Aveiro conhece a historia desta sua compatriota, verdadeira hiroina do seculo XVI, e decerto no olvido ficaria para as gerações hodiernas e vindouras, se um ilustre filho desta terra e meu amígo, o Sr. Marques Gomes, a não tivesse buscado nas publicações coevas e tornado conhecida pelas suas Memorias de Aveiro.

Ao reler os apontamentos que possuo, referentes à destemida donzela, pasmo de tanto valor e heroismo, e penalisa-me que, na sua patria, não se tenha honrado a memoria de tão sublimada individualidade. Quando ha pouco aí se procedeu á nova nomenclatura das ruas, tive desejos de lembrar á comissão o nome de Antonia Rodrigues; receoso, porém, de que a lembrança, por tão obscura procedencia, não fosse aceite, conservei-me no silencio, esperando um dia contribuir para a glorificação desse vulto historico.

Grande numero de escritores antigos, entre os quais Duarte Nunes de Leão, contemporaneo de Antonia Rodrigues a quem conheceu, dão o nascimento da nossa heroina em 1580; porém, o sr. Vilhena Barbosa, ocupando-se ha poucos anos do mesmo assunto, citou a data de 1560 a 1562, certamente por equivoco, pois que, tendo Antonia nascido nesta data, e voltando ao reino no tempo de Filipe 2.º de Portugal, como os antigos dizem e o sr. Barbosa confirma, seria preciso ter 30 e tantos anos, o que não se apura das notas do erudito escritor, que indica, quando muito, 20 e tantos. E nesta hipotese, a viagem de Antonia realisar-se-ia por 1580 e tal – quando Filipe 2.º só tomou a coroa portugueza a 13 de setembro de 1598, data do falecimento do seu antecessor.

Sem duvidar um instante do saber do insigne escritor, inclino-me á opinião dos antigos, cujas datas coincidem perfeitamente.

A 31 de março de 1580, sendo donatario desta então vila D. Alvaro de Lencastre, 3.º duque de Aveiro, nasceu Antonia Rodrigues, filha de Simão Rodrigues Mareares e Leonor Dias, numa casa de mesquinha aparencia, aí na beira-mar. Seu pae, a quem a vida trabalhosa do mar acarretára graves e prolongadas doenças, não tendo depois meios de subsistencia, mandou a filha, aos 12 anos, para a companhia duma irmã casada que ao tempo vivia em Lisboa. Antonia era uma linda creança de cabelos e olhos negros, rosada, cheia de vivacidade, travêssa mesmo, o que fez com que a irmã principiasse por dar-lhe maus tratos. Depois de cinco anos passados em constante luta domestica, Antonia fugiu de casa, tendo antecipadamente cortado o cabelo e vestido um fato de marujo que a ocultas comprára na Feira da Ladra, com o fim de desfarçar-se e sair do reino em busca de paragens desconhecidas. Chegada que foi á praça da Ribeira soube da proxima partida da caravela Nossa Senhora do Socorro que carregava trigo para a Africa; ajusta-se como grumete sob o nome de Antonio Rodrigues, e lá vai, no dia imediato, mares fora, subindo impavidamente à extrema altura dos mastros, descendo com agilidade e executando com rapidez todos os serviços inherentes ao seu logar, dando, assim, motivo á geral admiração dos tripulantes.

 

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A caravela aportou a Mazagão. Esta praça de guerra, situada na provincia de Duquela, imperio de Marrocos, a 165 leguas de Aveiro, foi descoberta em 1502 pelo português Manuel Jorge de Melo, por nós construida e fortificada e em nosso poder até ao reinado de D. José 1.º que vergonhosamente a abandonou, depois dela ter resistido tantos anos aos fortes cercos e duros combates das hostes maritanas!

Segundo uns, Antonia fôra abandonado em Mazagão pelo mestre da caravela, a quem culpara, pelo roubo que este fizera no carregamento durante o trajecto; segundo outros, era Mazagão o termo da viagem, e portanto ali terminava o contrato do grumete, bem a pezar do mestre, que via no pequeno um marinheiro audaz. Como quer que fosse, Antonia Rodrigues ficou e, dirigindo-se destemidamente ao capitão-mór da praça, alistou-se na arma de infanteria com o nome com que embarcara.

Conservando sempre incognito o seu verdadeiro sexo, principiou por fazer serviços rudes da caserna como: cosinhar, matar cevados. etc. Pandigava e dormia com os camaradas e namorava as moças mais belas.

Pouco tempo depois do seu alistamento no exercito luzo, o seu nome tornou-se assás conhecido em toda a vila, pela destreza com que jogava as armas e intrepidez com que antecipava os cristãos nas sortidas contra os descendentes de Mahomet.

Antes de decorridos dois anos, Antonio foi mudado, por distincção, para a arma de cavalaria; e tão rapidamente e com tal mestria nela se desenvolveu, que poucos mezes depois ninguém, entre todos os fidalgos, montava um cavalo com tanta firmeza e elegancia.

Foi nesta arma que Antonio Rodrigues se tornou verdadeiramente celebre assombrando o exercito luzo e lançando o terror nas fileiras inimigas. Contam-se até verdadeiros prodigios de audacia e valor em varias correrias que «o terror dos mouros» dirigiu combatendo encarniçadamente e distinguindo-se acima de todos!

Faz-me lembrar Eurico, «o cavaleiro negro», junto ao Chryssus, brandindo freneticamente o seu poderoso frankisk e assolando as hostis de Tarik.

Por tudo isto que era algo sobrenatural, a nobreza de Mazagão abriu-lhe os seus salões e recebeu-o em alta consideração. Não tardaram as damas a requestal-o, a que ele correspondeu gentilmente, vendo-se, com tudo, por vezes, seriamente embaraçado com tantas e tão elevadas pretenções. Durante três anos foi entretendo estes amores ficticios, até que um dia, receiando qualquer desfecho desagradavel, abandonou a D. Beatriz de Mendonça, dama ilustre, que nutria pelo mancebo profundo amor. Esta senhora apaixonou-se por tal forma do namorado que a desprezara, que seu pae, D. Diogo de Mendonça, um dos primeiros fidalgos de Mazagão, teve de pedir ao capitão-mór para que fizesse com que Antonio lhe despozasse a filha. Chamado este ao alcaçar à presença ao governador, e não podendo, sem grande desdouro para si, anuir ao que lhe era pedido, confessou o seu verdadeiro sexo e toda a sua vida aventureira. A nova correu pela vila com a rapidez do raio, deixando os habitantes maravilhados. E, em verdade, quem podia supor tanta destreza, valentia e heroicidade numa mulher?

 


 

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Antonio Rodrigues, «a cavaleira», como depois lhe chamavam, foi muito presenteada pelas damas, que a vestiram consoante o seu sexo. Continuou gosando a consideração e o respeito da nobreza da vila, e todos os fidalgos, à porfia, desejavam possuil-a. Um destes, militar distincto do exercito cristão desposou-a com grandes pompas, a que assistiu a gente mais grada da fortaleza. Vieram depois a Portugal. Filipe 2.º que a esse tempo esbulhava o nosso reino em proveito do seu, ao ser-lhe apresentada a celebre heroina, cuja fama echoava jà na metropole, galardoou-a com a mercê de duzentos cruzados para ajuda da viagem, uma tença de dez mil réis anuais, em vida, e uma fanga de farinha cada mez. Anos depois Antonia enviuvou. Voltou ao reino quando tinha perto de 35 anos, em companhia dum filho, creança ainda, a quem D. Filipe fez a mercê de nomear moço da sua real camara.

Até hoje, por mais que tenha procurado, não me foi possivel saber aonde faleceu e jaz sepultada.

Eis, a simples e defeituosos traços, a historia dessa grande mulher que tão heroicamente honrou a sua patria e cujo renome quasi passa desapercebido aos filhos de Aveiro.

Adriano Costa.

A sua origem perde-se na noite dos tempos no dizer da lenda; documentos escriptos de encontestavel fé acusam a sua existencia, já como vila, em 950, 1059 e 4090.

O concelho esse, pelo menos, é quasi tão antigo como era a monarquia portuguesa; haja vista o foral que lhe concedeu D. Afonso Henriques em 1151.

E' uberrimo o seu vale, deliciosas as suas murcelas e grandioso o seu mosteiro. Neste, quasi tamanho como toda a vila reunida, cifra-se tudo que em Arouca ha digno de vêr-se.

Fundado no seculo X, enrequecido pelas importantes doações que lhe fez a rainha de Castela D. Mafalda, filha do nosso D. Sancho I, que o escolheu para sua residencia, e pelos dotes de muitas senhoras ricas que ali professaram facil foi a reconstrução do primitivo edificio com a larguesa e solidez que ainda hoje se admiram, na segunda metade do seculo XVIII, conforme a traça de Manuel dos Santos Barbosa, de Jemunde.

A egreja é um bom templo, com uma linda tribuna de talha, delineada por D. Joaquim Lourença S. Ferraz da Cunha. Num dos altares latrais, lado da pistola, em sarcofago de ebano e prata, o cadaver mumificado da mesma rainha D. Mafalda, cononisada por Pio VI em 27 de julho de 1792, e que no dizer de Herculano parece ter merecido, mais do que suas irmãs, Tereza e Sancha o ser contada no numero dos santos. Sobre tudo, notavel é o coro. Vastissimo, fica como o de Lorvão ao niveI do pavimento do templo e tem quasi que mesma altura deste. Reveste-lhe as paredes dalto a baixo sumptuoso cadeirado de talha pintada e dourada, duma riqueza de ornatos que assombra.

Para admirar tambem, existem ainda ali uma apreciavel coleção de pinturas portuguêsas, em taboa, de começo do seculo XVI; um triptico contendo esquirolas de diferentes santos, revestido externa e internamente duma capa de prata, ornamentação vegetal, e, uma cruz de prata dourada, em que, se vera est fama se guardam um pedaço do lenho em que Jesus Cristo foi crucificado e um dos espinhos da corôa com que lhe cingiram a fronte, tudo do seculo XVI.

Marques Gomes.