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…dunas, e as ondas ao serviço de Cupido obrigarem as donzelas e matronas ainda frescalhotas, para não se enxarcarem completamente, a mostrarem, aos espectadores alerta, as pernas até aos joelhos e upa…

No campo da capela, um armazém de taboado, que se empoleirava sobre estacas e colunas quadradas de adobes abriam em lei que dois reques de barracas, armadas de ripas, esteiras e lôna, e ali se estabeleciam as botequineiras, os cafezes e as pipas obesas. Na frente estendiam-se as canastras com regueifas, pinhões, tremoços, pevides, cavacas, folares e flores de matizes variegados.

Era já, áquelas horas, uma baralha formidável de gente que se acotevelava e cruzava, numa grande feira de gente divertida. Uns vinham da capela com o registo estampado na copa dos chapeus; outros perseguiam as raparigas com a liberdade, que a ocasião lhes proporcionava; outros cantavam ao desafio com moçoilas rosadas e bem fornidas de carnes, que soltavam piadas da geral e feriam com atrevidos conceitos os rapazes pouco desembaraçados. A’s oito da noite acendiam-se os balões nas bambolinas de verdura e as lanternas do frontespicio da capela, e enchiam-se as areias declinosas e a planura de milhares de pessoas, que iam gosar o arraial em toda a sua pujança de alegria á solta e azougada.

O Zé Pereira alternava-se com as peças do escolhido reportorio da banda, o sussurro do mar proximo casava-se (também ele!) com a ingente voz disparatada e formidavel da multidão, os devotos, os bebados e os namorados eram ás centenas, ebrios de fanatismo, de vinho e de amor.

Subiam os foguetes e as mánicas de papel de cor, ourinando faiscas e estalos, rodava esfusiante com entusiasmo o fogo de vistas, obrigado a bombas reais e a lumes brilhantissimos de diversos coloridos. Mas o interessante do entremez eram os foguetões de lagrimas, que iluminavam o espaço, surpreendendo monticulos onde varios pais-Adões estavam ensaiando cenas paradisiacas com Evas pouco esquivas aos galanteios. Enquanto isto se desenrolava neste campo de manobras. nos toldos dos barcos batia-se o fado, choravam as violas e guitarras, e um pandemonio gentio se amontoava pelas estradas e estacadas dos palheiros que emergiam iluminados da ria, a farfalhar espuma.

Pelas tabernas petiscava-se; em algumas bateiras cosinhava-se com alarido; sob toldos de velas e esteiras espernegavam vultos cingidos e empilhados a resonarem etc., etc.

 

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Nas dependencias de alguns lagares de sardinha dançavam dansas de roda, valsas e polcas, magotes de raparigas encantadoras, airosas e esmeradas de Ilhavo e Aveiro. Era do estilo os conquistadores, os peraltas e a rapaziada fina das duas terras e da Bairrada participarem do baile e dançarem infatigavelmente, toda a noite e todo o dia, desde sabado até quinta-feira proxima. Resultavam desta aproximação democratica, amiganços e casórios, servindo Nossa Senhora da Saude de notario.

No domingo á tarde, ao toque da sineta, saía a procissão com os seus andores empenachados e opulenta de lantejolas e com os barquinhos classicos onde S. Pedro ia de arrais e os apostolos de remadores. Claro está que havia as infalíveis girandolas crepitosas, e nos largos areentos os bonecos de fogo, caricaturais, que terminavam estoirando aos pedaços sobre o povoleo á gargalhada.

Em seguida, começava o desfile dos barcos que coalhavam a praia. Era um espectaculo imponente a largada de centenas de bateiras, saleiras e moliceiros, desprendendo as velas numa marcha compacta, triunfal, perdendo-se alfim e distanciando-se no horisonte, com as suas flamulas e bandeiras a trapejar ao vento. Mas se estas hordas solicitadas pela faina agricola se afastavam da Costa Nova, a alegria continuava vibrante e macabra na praia, mais desafogada mas não menos intensa e brilhante, por todos os dias até á quinta-feira da semana, com o flirt, os namoros e os bailaricos incessantes em que as tricaninhas esbeltas, de Ilhavo e Aveiro, eram prodigas de sorrisos, abraços e promessas.

Hoje, o arraial existe, mas quantum mutatus ab illo!

E aqui está como, com duas lagrimas, mais grossas do que perolas de Golconda, eu fecho este galhofeiro assunto que – parece incrível! – me ia enternecendo.

Mello Freitas.