António Christo
GUSTAVO FERREIRA PINTO BASTO
Discurso proferido no Salão Nobre da Câmara Municipal de Aveiro, em 4 de
Maio de 1952
V V
CISIAL
–
ANADIA
– 1953
–
Separata do Relatório da gerência de 1952
da Câmara Municipal de Aveiro
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Ex.mo Senhor Arcebispo-Bispo de Aveiro,
Ex.mo Senhor Governador Civil,
Ex.mo Senhor Presidente da Câmara,
Minhas Senhoras,
Meus Senhores:
Lamentavelmente,
não tive coragem para declinar o encargo de fazer, nesta sessão
Iuzídíssima, o elogio histórico de Gustavo Ferreira Pinto Basto.
Desejoso de corresponder de algum modo à amabilidade do convite,
obrigado em consciência a louvar os talentos e virtudes de um homem
excepcional com largo crédito na gratidão dos aveirenses. não ponderei
que a doença me colocou numa triste situação de invalidez sem remédio.
que me impossibilita de emprestar às palavras todo o calor da minha
devotada simpatia.
Somada a tamanha deficiência a circunstância de ter de celebrar os
méritos, de uma pessoa que não conheci, apresento-me com o compreensível
embaraço de quem se sente inferior à excelência e à responsabilidade do
assunto.
Sou obrigado a estas confissões e à promessa de que empenharei toda a
minha vontade na consagração de um nome querido. para que a forçada
pobreza e o
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fatal desalinho do discurso não pareçam menos respeito pela distinta
assembleia que terá a caridade de escutá-lo e desculpá-lo.
* * *
Gustavo Ferreira Pinto Basto nasceu na Quinta do Silveiro, da freguesia
de Oiã, concelho de Oliveira do Bairro, em 26 de Janeiro de 1842.
A sua chegada ao mundo foi uma aleluia trivial, por comum a todos os
homens, que apenas se regista pela circunstância de ser elemento
indispensável em qualquer biografia.
Mas já o facto de pelo nascimento ser estranho e pelo coração ser nosso,
redobra a gratidão dos aveirenses pela honrosa mercê da escolha e
encarece os benefícios que prodigamente dispensou à sua terra adoptiva.
Não basta lembrar que sua mãe, D. Maria Inocência Ferreira Pinto Basto,
o foi de seis filhos: para usar a expressão feliz de um eminente
pensador, importa dizer, com mais justeza, que a nobre senhora teve um
filho seis vezes. Quero significar que, na exuberância e
indivisibilidade do seu amor, soube praticar o milagre de dar o coração
inteirinho a cada um deles.
Do avô, José Ferreira Pinto Basto, de quem José Estêvão dizia que
«deixou nos costumes da sua vida as instruções para o seu panegírico»,
herdou o pai, Augusto Ferreira Pinto Basto, primeiro administrador da
Fábrica da Vista-Alegre, que aquele penosa e gloriosamente fundara, uma
soma de aprimoradas qualidades intelectuais e morais que constituía
grosso cabedal de invejável fortuna.
Pertencendo a uma família ilustre e altamente enobrecida por suas
preclaras virtudes, Gustavo Ferreira Pinto Basto teve na casa paterna
uma escola onde se professava, não direi apenas a superioridade, mas o
«absolutismo da moral». Educado nesta doutrina
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luminosa e fecunda, com ela enriqueceu o seu espírito. E mantendo-se
escrupulosamente fiel às regras de tão alevantado código, na prática de
todas as suas actividades, privadas ou públicas, foi coerente e íntegro
como um perfeito homem de bem.
É esta, sem sombra de dúvida, a primeira afirmação que deve fazer-se
aqui e a mais grata e dignificante homenagem que pode prestar-se à sua
memória.
* *
*
Tenha ou não lido os formosos versos de Lamartine, Gustavo Ferreira
Pinto Basto soube vivê-los intensamente:
Ó família! Ó mistério! Ó coração da natureza!
Em que o amor que desabrocha em cada criatura
Se concentra no lar para cuidar dos berços!
Gota de sangue, tirada da artéria do mundo,
Que corre de coração em coração, sempre quente e fecunda,
E se ramifica em eternos regatos...
Em 1875 casava nesta cidade com D. Maria José de Almeida Azevedo
Ferreira Pinto Basto, senhora de rara distinção. que eu conheci ainda a
perfumar de santidade a sua casa da Rua Direita e a iluminar de
benemerências as escurentezas de pobres tugúrios.
E então se multiplicaram os berços no lar venerando e correu de coração
em coração o sangue riquíssimo de substanciosas e amoráveis seivas que
aviventou e enobreceu três filhos: o Doutor Egas Ferreira Pinto Basto,
oficial distinto de Engenharia e professor egrégio da Faculdade de
Ciências da Universidade de Coimbra, ilustre pelo seu talento e digno
pelo seu carácter; e D. Clementina Ferreira Pinto Basto de Gusmão
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Calheiros e D. Clotilde Ferreira Pinto Basto Couceiro da Costa, duas
insignes senhoras que inundaram Aveiro com os primores da sua educação e
as excelências da sua caridade, a última das quais levou à Índia, com a
sua presença gentil, a certeza de que não se estiolaram no coração das
mulheres portuguesas as virtudes de antanho.
E todos estes, pelo comércio sagrado de novos consórcios, multiplicaram
a família distinta: andam agora os netos de Gustavo Ferreira Pinto Basto
pelas encruzilhadas do século ou pelos lajedos das clausuras, a
acrescentar à cintilante auréola do avô outras refulgências de cultura e
bondade prestimosas.
Trago para aqui estas intimidades familiares por singularmente honrosas
e fundamentais para a compreensão dos actos públicos do homenageado: foi
no lar que Gustavo Ferreira Pinto Basto, aperfeiçoando e exercitando
singulares faculdades intelectuais e afectivas, aprendeu a governar e a
servir
–
admirável aliança de predicados que, como diria Bossuet, constituem a
verdadeira autoridade e afinal o encheram de prestígio.
* *
*
Emerson escreveu algures que a primeira condição de sucesso no mundo...
é ser um bom animal. E eu acompanho-o se, como me parece, quis
significar em termos incisivos que a saúde física é altamente vantajosa
para todas as batalhas da vida.
Parto deste ponto para retratar com fidelidade Gustavo Ferreira Pinto
Basto, através de informações escrupulosas, dignas de todo o crédito.
Mas acrescento desde já que o vigor da sua compleição física era
porventura ultrapassado pela robustez da sua compleição moral.
De máscula estatura, forte, aprumado, arcaboiço desenvolvido
–
logo o seu todo revelava um ânimo varonil e intemerato, uma vontade
decidida e inquebrantável,
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uma grande capacidade de impor-se e de dominar-se.
A sua fisionomia estava em aberta contradição com o seu carácter, pois a
dureza granítica do seu aspecto escondia um coração docemente sensível e
extremamente compassivo.
Era realmente um homem austero, para si de uma ilimitada severidade;
mas, em desconcertante e encantador contraste, aninhava na sua alma
catadupas de indulgência, de generosidade e de compaixão para os outros
–
o que lhe granjeou a incondicional simpatia dos trabalhadores, dos
oprimidos e dos pobrezinhos.
Iluminavam-lhe o rosto, como dois carvões, uns olhos vivíssimos, a
denunciar todo o ardor de uma inteligência perspicaz.
Cabe aqui anotar que se a inteligência é dom gratuito de Deus, a
ilustração é conquista de um esforço pessoal: já alguém lembrou, muito
acertadamente, que o saber custa árduos sacrifícios.
Gustavo Ferreira Pinto Basto não abafou sob o alqueire da preguiça a
chama dos seus talentos: em penosas vigílias, enriqueceu a sua
penetrante inteligência com o património de uma cultura invulgar.
Creio faltar apenas um traço para a perfeição do retrato:
–
Este homem por tantos títulos ilustre e com tão fundados direitos à
admiração de todos, era de uma simplicidade quase inverosímil.
Floriam-lhe o peito as insígnias de Cavaleiro da Ordem de São Bento de
Avis, consagração dos méritos revelados durante a sua brilhantíssima
carreira militar que, por motivo de doença, terminou no posto de
tenente-coronel.
Mas sendo, em atenção à sua rara envergadura moral, intelectual e
social, indigitado para lugares proeminentes e querendo o Rei
distingui-lo com a Carta do Conselho e com outros títulos e
condecorações, sempre se mostrou desambicioso e tudo recusou por
verdadeira modéstia.
Tinha, na realidade, todas as condições para triunfar.
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Porque no seu tempo a política era paixão irresistível das almas mais
bem dotadas, Gustavo Ferreira Pinto Basto militou nos partidos que teve
como dignos dos seus aplausos e dos seus préstimos, mantendo-se
intransigentemente fiel ao regime que sempre serviu com nobreza.
Por mais de uma vez, no ardor dos combates desencadeados, foi
desapiedadamente ferido com doestos irritantes, vexames inconcebíveis,
afrontas iníquas, injustiças dolorosas...
E não obstante, este homem íntegro castigava-as perdoando-as e
declarando nobremente, como no discurso da sua terceira investidura na
presidência do Município, em 30 de Novembro de 1908, que ao entrar a
porta da Câmara deixava fora a política e que ninguém fosse supor nele
ressentimentos ou propósitos de cevar ódios ou más vontades, pois estava
para servir, não sabia diferençar amigos ou inimigos e a todos faria
inteira justiça.
Os ultrajes que suportou, as calúnias que sofreu, jamais conseguiram
ensombrar a sua consciência ou enlamear o seu nome.
E a retumbante vitória final foi ainda sua: perante o cadáver deste
grande homem, os seus adversários políticos choraram irreprimivelmente a
perda irremediável e consolaram-se da saudade fazendo justiça às suas
invulgares qualidades pessoais e aos assinalados serviços que prestou a
Aveiro.
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Esta é a terra adorável onde passou a maior parte da sua vida operosa,
onde encontrou a alma que Deus criara para ser o par da sua alma, onde o
seu ninho
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floriu nas bênçãos de três berços lindos
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terra hospitaleira que o recebeu gentilmente beijando-lhe a fronte e
que, grata aos seus benefícios, lhe guarda e venera as cinzas e lhe
recorda e zela a memória.
Gustavo Ferreira Pinto Basto tudo merece porque muito amou a terra que
elegeu por sua.
Durante alguns anos presidente da antiga e benemérita Associação
Comercial de Aveiro, sempre exerceu o cargo honroso e espinhoso com
notável elevação e raro aprumo, prestando no desempenho dele estimáveis
serviços.
Os relatórios e representações que subscreveu, e nos quais se descobre o
cuidado da mais rigorosa precisão, são em extremo curiosos e de
excepcional importância.
Ali se tratam inteligente e devotadamente alguns dos problemas
fundamentais do desenvolvimento de Aveiro, ocupando destacado lugar as
representações dirigidas ao Rei a pedir a criação da Junta da Barra e de
um Curso Elementar de Comércio, ambas datadas de 1897.
Está por fazer a história da prestimosa Associação, de cujos triunfos
brilhantes Gustavo Ferreira Pinto Basto comparticipa e é um dos maiores
quinhoeiros.
* *
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Mas onde mais refulgiram os seus invejáveis talentos e teve melhor
ensejo de exercitar a sua provada dedicação por esta terra, foi na
presidência da Câmara Municipal, durante os quatro biénios da sua
administração inteligente e zelosíssima.
Numa visão clara das coisas, o seu primeiro cuidado foi restringir
despesas, aumentar receitas, equilibrar as contas, restaurar o crédito
do Município, cujos cofres chegou muitas vezes a abonar do seu bolso.
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Fê-lo com uma tenacidade invulgar, vencendo todas as resistências e
sufocando todas as revoltas, uma das quais deu brado e ficou conhecida
na história de Aveiro pela «guerra do nabo».
Então se votou apaixonadamente à grande obra do ressurgimento e
progresso da nossa terra, estudando com carinho e resolvendo
triunfantemente, dentro do condicionalismo da época, muitos dos seus
problemas essenciais.
A sua actividade obedecia a um plano maduramente pensado, em que o
indispensável primava sobre o útil e nunca o secundário preteria o
essencial: por isso tratou logo de começo do abastecimento de água e da
rede de esgotos, melhorando quanto possível as canalizações.
Com um sentido urbanístico tanto mais admirável quanto é certo que a
ciência da urbanização estava pouco divulgada na época em que viveu,
deu-se pressa em transformar o acanhado burgo numa cidade de praças e
avenidas desafogadas, onde o sol penetrasse afoitamente e a circulação
pudesse fazer-se sem embaraços.
E assim é que, fazendo desaparecer tortuosidades e aleijões, transmudou
o velho Largo do Terreiro na magnífica Praça do Marquês de Pombal;
rasgou novas avenidas, como a de Castro Matoso, ou continuou as
existentes, como a de Araújo e Silva; abriu e alargou ruas, como a que
tem o seu nome em sinal de gratidão; rompeu canais e construiu estradas,
como o Canal de São Roque, a artéria que o liga à Estação do Caminho de
Ferro e a estrada da Pega, que margina uma extensa faixa de marinhas e
dá curso ao trânsito até São Tiago.
A instrução e a beneficência, duas nobres preocupações da sua
inteligência e da sua bondade, ficaram-lhe devendo a construção do
edifício da Escola Central da freguesia da Glória e a edificação do
antigo Asilo-Escola Distrital, onde hoje está o Quartel do Regimento de
Infantaria.
Foi ele quem construiu o mercado do peixe, denominado
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Mercado de José Estêvão, e resgatou o da hortaliça, que se chamou
Mercado de Manuel Firmino.
Foi ele quem levantou o Bairro da Apresentação, calcetou o antigo Largo
da Cadeia, agora Praça da República, desafogou arruamentos estreitos,
melhorou e embelezou quanto pôde, levando a efeito uma série de obras
que seria difícil e fastidioso enumerar.
Este importante conjunto de importantíssimos trabalhos custou-lhe
aturadas vigílias, inúmeros sacrifícios, incalculáveis canseiras,
quantas vezes lhe acarretando incompreensões, despeitos e ódios.
Gustavo Ferreira Pinto Basto, com uma persistência assombrosa e uma
tenacidade raríssima, surdo a todos os agravos, estudava e realizava,
era simultaneamente o engenheiro, o arquitecto e o capataz da Câmara,
cujos interesses zelava
–
e ele próprio o declarou
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com empenho maior ao que lhe merecia a gerência dos negócios da sua
casa.
...Assim foi que transformou Aveiro numa cidade linda e arejada e de
longe assentou as pedras basilares do seu franco progresso e bem mereceu
viver para sempre no culto amorável da nossa saudade, do nosso respeito
e do nosso agradecimento.
Meus Senhores:
O grande Taine, querendo definir com a possível exactidão um homem
superior e distinto, sem defeitos irremediáveis a ensombrar-lhe as
qualidades excelsas, alinhou estas palavras:
«Um nobre, digno de comandar, íntegro, desinteressado, capaz de se expor
e até de sacrificar-se pelos que dirige, homem de honra e de consciência
ao mesmo tempo, em quem os instintos generosos foram confirmados pela
justa reflexão, e que, procedendo bem em harmonia com a sua natureza,
ainda procede melhor em obediência aos seus princípios».
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Eu completo a definição para ajustá-la ao meu intento:
Um homem com todos aqueles predicados e que, vibrando com a beleza da
terra que adoptou, foi nela exemplarmente bom e eminentemente útil.
E agora concluo que neste quadro se desenha com exactidão a figura
excepcional de Gustavo Ferreira Pinto Basto.
Eis porque, estonteado com tal grandeza, sinceramente lastimo que não
fosse outro o escolhido para o seu panegírico e para o louvor da Câmara
que tanto se dignificou promovendo esta homenagem justíssima.
António Christo
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