Retalhos das Memórias de um ex-Combatente


A caçada

Tínhamos ido há dias fazer uma patrulha para a reserva de caça, quando nos apareceram os guardas da reserva a chamar-nos a atenção de que não poderíamos andar por ali, que aquilo era uma reserva de caça, e só eles estavam autorizados a patrulhar aquela zona.

O Sargento Miranda, que comandava a patrulha, ficou perplexo e disse-lhes:

– Os senhores fazem o vosso serviço e nós fazemos o nosso!

O que parecia ser o chefe da patrulha dos guardas da reserva ainda ripostou, mas o Miranda, já irritado, perguntou-lhes:

– Digam-me só o que é que vocês querem esconder da tropa? Se o não fizerem nós procuramos, e vimos à reserva quantas vezes julgarmos necessárias. Não admitimos intromissão no nosso serviço. E vão-se embora antes que eu me chateie.

Os da reserva retiraram e não mais nos incomodaram.

O Cefo

Hoje o cozinheiro avisou o Alferes de que já não havia carne para confecção das refeições. O Alferes chamou o Sargento Miranda, por saber que ele era um amante da caça. Mandou-o preparar um Unimog e o Jipe para irem fazer uma patrulha na reserva. Havia sempre voluntários para estes serviços. Eu e o Costa Pereira ficámos na Muxima.

Pouco depois dirigi-me para o cais de embarque, mesmo junto da água, onde sempre fazia mais fresco. O Costa Pereira ficou-se pela caserna. Iria, pensei, proceder a mais uma das suas hibernações rápidas!

O tempo ia passando, o nada fazer também é, por vezes, incómodo. Havia militares que arranjavam uma cana com um fio atado na ponta, e entretinham-se a pescar, outros conversavam, outros ainda escreviam à família. Vi passar um Jipe com civis em direcção ao Sul, coisa que não era normal por aqueles sítios. Parou em frente à nossa caserna. Lá se vai a hibernação do Costa Pereira…

Nessa altura chegou a patrulha que tinha ido para a reserva. No Unimog vinha um magnífico exemplar de Cefo, que se havia atravessado em frente da viatura. Já havia carne fresca!

Uma vez descarregada a peça de caça, logo o Miranda tratou de o desmanchar e preparar.

Caçadores de crocodilos

O pescador que normalmente nos fornecia o peixe tinha chegado e ajudava no serviço. Ao ver que o Miranda mandou deitar as tripas ao rio, gritou:

– Senhor Furriel, não deita o melhor do animal fora.

Olhámos espantados!

– Para que queres as tripas?

– Para a panela. É a melhor parte do animal!!!

E exemplificou, dirigindo-se ao rio:

– Lava-se a tripa no rio, passa-se entre dois dedos (e fez com os dedos o sinal de vitória), e põe-se na panela. Ferve-se e está pronta a comer…

Nisto chega o Costa Pereira a avisar o Alferes de que tinham estado com ele caçadores de crocodilos; tinham-lhe mostrado a licença de caça e indicaram-lhe a direcção para onde essa noite iriam caçar. Se a tropa ouvisse tiros que ficasse descansada, pois eram eles. Já tinha avisado o resto da "malta". Mais tarde viemos a saber que os civis do Jipe, anteriormente referidos, eram os caçadores.

E o tempo aqui continuava a seguir lento. Nada de anormal. Uma volta pela povoação, que não demorava muito. Uma ida até à fortaleza, e isso já era um caso mais sério. A fortaleza ficava numa elevação muito íngreme, era necessário andar à volta, por caminhos de pedra, até chegar lá acima. Mas valia a pena. Conversava-se um pouco com a malta das transmissões, dava-se uma volta pela fortaleza que, tendo sido muito importante na época da colonização, pois servia de defesa ao rio e para montante da Muxima, não havia inimigo ou caravela que conseguisse passar. Agora eram só paredes no ar, com excepção de algumas guaritas que serviriam de abrigo ao pessoal que estivesse de serviço.

 

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Na Fortaleza da Muxima. A guarita mais parece um símbolo fálico.

 

Mas porque quereria o inimigo passar além da Muxima? É que para montante existiam minas muito ricas de vários metais. Uma caravela que conseguisse chegar lá e carregar, traria uma grande fortuna.


Grande algazarra!

Descia até à povoação, quando ouvi homens a vociferar para o lado do Hotel. Dirigi-me para lá e vi quatro brancos a saírem do Hotel aos berros com a dona do estabelecimento.

Aproximei-me e tentei saber o que se tinha passado:

– Chegámos de madrugada, e tínhamos pensado dormir no Hotel – diz-nos um – Batemos, batemos e ninguém nos atendeu. Tivemos de dormir no Jipe, o que não foi nada agradável.

– Pois. Deviam estar a dormir e não ouviram – disse eu tentando amenizar o ambiente.

– Mas deviam ter alguém alerta! Gritou o mais irritado.

Ainda me lembrei de perguntar se tinham marcado dormida… mas fiquei calado ao lembrar o local onde nos encontrávamos. Por experiência pensei como deveria ter sido desagradável passar a noite na viatura, especialmente por pessoas acostumadas a dormir em cama fofa. É a vida, calha a todos!

Os quatro homens tomaram o pequeno-almoço, pagaram e saíram. Iam seguir viagem pela Quissama e perto do Cabo Ledo atravessariam o rio em direcção a Luanda num batelão destinado a essas travessias.

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“Paquete Mucumbi” no cais da Muxima

 

O Alferes Miranda chegou e quis inteirar-se do que se havia passado. Contámos-lhe a história. Ao perguntar quem eram os passantes foi-lhe dito que eram técnicos da Junta Autónoma das Estradas de Angola, e que deveriam vir de Novo Redondo, com destino a Luanda.

O chefe da manada

Foi recebido um rádio, com ordem expressa de, quando o pelotão fosse reabastecer a Cabo Ledo, o Ribau se apresentar no Comando da Companhia!

– O que é que tu fizeste agora, para receberes tamanha honra? – Pergunta-me com ar de gozo o Alferes Miranda.

– Que eu saiba, nada de mal – respondi. Mas o que for soará!

E no dia aprazado lá fomos. Dois Unimogs, o caminho era longo e no caso de avaria não era nada agradável ficar no meio do mato sem ajuda.

Saímos de manhã, pela fresca, seguindo a picada que nos levava directamente a Cabo Ledo. Todos os animais da reserva parece que tinham combinado vir pastar para junto da picada. Era girafas, zebras, burros do mato, cefos e outros animais mais pequenos. Nas alturas, um bando de grifos voava em círculos largos. Por cada volta que davam iam descendo. Ali havia de certeza algum animal morto. Não tardariam a aterrar e então ouviríamos a barulheira infernal que aqueles animais imundos fazem, ao disputar o seu pedaço de carne.

Mais à frente, uma manada de cefos começou a aproximar-se da picada, parecendo querer atravessá-la, mesmo à nossa frente. Disse ao condutor para não diminuir a velocidade, a ver o que sucedia.

É então que um dos animais maiores – devia ser o chefe da manada – se aproximou da viatura. Pôs-se à nossa frente, e como não diminuíssemos a velocidade, atirou uma parelha de coices contra o pára-brisas do Unimog que só por sorte acertou de raspão. Mandei imediatamente parar a viatura, não fosse vir outra parelha que acertasse em cheio e partisse o vidro. Era mais um problema que eu teria de enfrentar! Parámos.

O “mais velho” ficou à frente da viatura enquanto o resto da manada atravessava a picada tranquilamente. Levou algum tempo, pois eram muitos animais. As crias seguiam no meio. A manada ocupava uma extensa área de terreno. Quando terminaram a travessia a viatura arrancou vagarosamente, pois o chefe da manada quando a viatura arrancou, seguiu na sua frente sem pressas, pela picada, como a querer dizer à tropa “aqui quem manda sou eu”.

Depois, seguiu apressado atrás dos outros, e nós seguimos o nosso caminho.


Para que serve isto?!

Chegados a Cabo Ledo, fui saber na secretaria a razão do meu chamamento:

– Foste chamado para escreveres os “louvores” à mão, do pessoal que foi louvado lá no “Norte”, porque tens uma boa caligrafia – disse-me o Primeiro-Sargento.

Fiz-lhe ver que era um operacional e esse serviço pertencia à secretaria. Lá no “Norte” nunca fui dispensado de nenhuma operação para ficar no acampamento a fazer serviço de secretaria. Além disso, estava em Cabo Ledo o Sargento Azevedo, que tinha muito melhor caligrafia que a minha!

– Ordens do Capitão – diz o “Primeiro”

Desculpa de mau pagador. O Azevedo como estava presente conseguiu desenrascar-se! O Ribau mais uma vez foi premiado com o desenrascanso de outros!

Bem, pensei, não vale a pena chatear-me, mas vou chatear outros.

– Meu “Primeiro” – disse eu dirigindo-me ao nosso Primeiro – preciso, para fazer o serviço, de tinta, canetas de caligrafia e aparos cortados de caligrafia, para que o serviço fique decente.

– Não tenho nada disso – disse-me o Primeiro-Sargento. Faz com a tua caneta de tinta permanente!

– Bem, eu faço. Mas depois não me venham dizer que ficou uma porcaria…

Deram-me as redacções dos louvores e os papéis onde deveriam ser escritos (papel liso, sem linhas, para fazer caligrafia, marginado por, salvo erro, flores). Se os louvores fossem escritos em letra de imprensa ficariam bonitos.

Não sei para que nos servirão aqueles arrazoados. A nós que não somos profissionais, para quê? Foram louvados alguns alferes e sargentos milicianos, cabos e soldados. Tudo voluntários, à força…

Ainda recordo um soldado que, depois de receber o louvor com pompa e circunstância, ao dirigir-se para a caserna me perguntou:

– Meu Furriel, para que serve isto?

– Olha, lá no “Puto”, quando tiveres dificuldades financeiras, vais à mercearia, mostras o louvor e o merceeiro dá-te as mercearias de borla…

– Oh!!! – Exclamou o soldado.

Regressei à Muxima quando o pelotão se preparava para regressar a Cabo Ledo, donde seguiria para Luanda (Grafanil), juntamente com o resto da Companhia.

No dia aprazado lá partimos em direcção a Luanda. O pessoal parecia mais alegre. Alguns cantavam a canção do Duo Ouro Negro “Muxima”. Muitos tinham lá estado ou tinham por lá passado. “Meu Deus, será agora que vamos embora?!” Ir para Luanda era um bom prenúncio!
Para atravessar o Rio Quanza levou o seu tempo. Eram muitas viaturas, mas lá passámos. Agora até ao Grafanil não haveria mais obstáculos.