Retalhos das Memórias de um ex-Combatente


Coluna de reabastecimento

Os dias iam passando. Tudo parecia bem, embora estivéssemos cientes de que de um momento para o outro podia haver “borrasca”.

E assim foi. Chegou uma ordem: preparar a Companhia para ir fazer a segurança a uma coluna de reabastecimento que irá até São José de Encoje. Mais uma vez o meu mapa foi consultado. Era longe e tínhamos de passar pelo coração dos Dembos. Bem, é só passar. Ali não havia, agora, notícia de grandes “makas”.

Íamos passar por Nambuangongo. Veio-me à memória a reportagem que tinha ouvido ainda no “Puto” do Artur Agostinho na Emissora Nacional a bordo de um PV2, aquando da tomada da povoação, que os terroristas já consideravam como a “sua” capital. Uma reportagem impressionante, que nunca mais consegui ouvir. Enfim, coisas da política. E de política não percebo mesmo nada!

Era ainda madrugada quando se começou a organizar a coluna. Abria com um Unimog, seguido de duas viaturas civis de carga, até que terminava já com uma extensão apreciável. A segurança era feita por dois pelotões, portanto seis Unimogues, mais dois Jipes dos Comandantes de Pelotão onde estavam instaladas as transmissões. Como não havia notícia de minas no percurso, na frente seguia uma das viaturas civis conhecedora do caminho.

Tudo organizado, saímos de Luanda, passámos por Cacuaco e, depois, por fazendas onde se trabalhava e por povoações de que desconhecíamos o nome. O pó levantado pela coluna era um suplício! Nem o lenço verde nos valia de muito, embora ajudasse. Óculos no bolso, de vez em quando o lenço era tirado para sacudir o pó acumulado. Agora era a povoação do Caxito. Passámos adiante. Agora Balacende. Este nome diz-me qualquer coisa… ah, já sei, foi aqui que no início das “makas” esteve um pelotão de companheiros que fizeram comigo a recruta no R.I.10, de Aveiro. Era um lugar terrível. Quando havia operações nocturnas, especialmente emboscadas e havia nuvens altas, as luzes da “Cidade Grande” – Luanda – projectavam-se nas nuvens e a imaginação, na escuridão, traçava a vida da noite de Luanda e o contraste com o lugar onde eles estavam. Houve até um que era ali dos lados da Curia, que ficou mesmo “apanhado”. Imaginem só, tentou fazer um violino com tábuas de um caixote de sabão! Adiante…

Nambuangongo

A nossa viagem decorria normalmente. O nosso objectivo era ir pernoitar a Nambuangongo. Era princípio da tarde, a marcha era lenta e felizmente não houve avarias, nem o IN se manifestou até esta altura. Ao entardecer começámos uma subida de vários quilómetros. Lá no alto vimos uma povoação. Só à entrada vimos uma placa com o nome: "Nambuangongo".

Ordem para a coluna estacionar no largo da igreja. Olhei em volta. Uma pequena povoação com casas de comércio. Ah! Ao fundo, na parte mais alta lá está a Igreja onde foi içada a Bandeira Nacional quando da tomada da povoação pela tropa portuguesa. As suas paredes antes crivadas de balas, estavam agora bem rebocadas e caiadas de branco. A bandeira continuava lá, bem no alto da torre!

Tudo aquilo eram símbolos. A Igreja, a sua torre, a bandeira a flutuar à aragem quente do fim de tarde. Símbolos que tinham para nós muito valor!

Comi a bucha olhando para aquilo tudo. Com o cair da noite as coisas iam desaparecendo, ficando apenas a imaginação a trabalhar.

Até São José de Encoje

Procurei o Alferes para saber qual o caminho que iríamos tomar na manhã seguinte, já que sabia pelo mapa que havia dois. Um pelotão seguiria a escoltar parte das viaturas, para Bessa-Monteiro e Zala, e o outro com as restantes para São José de Encoje.

“Hum... Qual dos dois será o pior?!” interroguei-me. Se fôssemos para Bessa-Monteito e Zala havia sempre a possibilidade muito provável de se ouvir o “Tango dos Barbudos”. Esta possibilidade seduzia-me, não sei porquê! Masoquismo?!

Encoje era muito mais longe e, além disso, havia uma operação militar na zona por onde teríamos de passar o que com tantas viaturas poderia causar-nos problemas!

O Alferes Miranda também não sabia, de modo que tínhamos de esperar para a madrugada seguinte, até que ele recebesse ordem de marcha. Dormimos onde calhou, e como calhou!

Chegou a madrugada e com ela as ordens:

– Então, meu Alferes?

– O outro pelotão vai para Zala. Nós vamos para São José de Encoje.

Não sei se fiquei triste se contente! Mas ali cumprem-se ordens e está tudo dito. Não vale a pena tentarmos pensar por nós. As ordens vêm de “cima” e nós “só” temos de cumpri-las!

Ordem para preparar a coluna. Ordem para iniciar a marcha...

Começou mais uma jornada de pó e calor. A picada até nem era muito má: pouca curvas, muitas subidas e descidas. A marcha era lenta, mas contínua. Assim andámos umas horas, até que a paisagem se ia modificando.

Agora seguimos pelo cume de uma serra. Ou melhor, não era bem pelo cume, a picada tinha sido feita uns dois metros abaixo do cume. À direita tínhamos a encosta que descia até a um vale profundo onde, lá muito em baixo, havia uma mata cerrada.

À esquerda existia uma muralha constituída por uma serra, que tanto nos podia proteger, como servir de lugar para nos emboscarem e atacar-nos à granada de mão. Seguimos viagem com estes meus pensamentos na cabeça.

Mais umas horas de viagem, com o rame-rame das viaturas, hora acelerando, hora reduzindo a velocidade, conforme o terreno. A nossa vontade lentamente ia adormecendo.

De repente, de além do cume da serra vem um som nosso conhecido: o “Tango dos Barbudos”.

Ouvia-se um pouco ao longe mas por precaução mandei parar a minha viatura, a primeira da coluna. Desci com dois homens para saber se haveria perigo por perto. Seguimos em direcção ao cume da serra e ao chegar perto rastejámos, não fosse alguma bala perdida atingir-nos. Observámos e vimos que a seguir ao cume o terreno voltava a descer para um vale profundo com mata, que continuava na contra encosta. Era daqui e do vale que vinham os tiros. Possivelmente alguém tinha sido apanhado numa emboscada no vale e estava a reagir a ela. Era longe e para nós não havia perigo. Estávamos protegidos pela serra e seguimos caminho.

Esta cena lembrou-me uma outra que havia lido nas “Selecções do Readers Digest” sobre a Batalha de Guadalcanal (salvo as devidas proporções). Como observadores, a nossa posição era a mesma.

Devíamos estar perto do nosso destino. Os tiros ouviam-se cada vez mais longe e a picada era agora mais cómoda. O cume tinha acabado transformando-se num planalto. Era nesse planalto que ficava o nosso destino. Já se avistava uma bandeira, de que mal se distinguiam as cores, comidas pelo tempo e a intempérie. A Bandeira Nacional.

Chegámos. À entrada da povoação um grupo de soldados estava a dar sepultura a um colega que no dia anterior havia falecido em combate, quando a sua unidade sofreu uma emboscada. Parámos. Os soldados continuaram no seu serviço. As primeiras pasadas daquela terra dura de Angola ao baterem no caixão produziam um som lúgubre, que jamais irei esquecer!

Mais um, por Angola!

As viaturas iam agora descarregar o mais rápido que lhes fosse possível para podermos iniciar o regresso ainda nesse dia. Entretivemo-nos por ali, conversando com os militares que estavam na zona, e com os camionistas civis a quem fomos fornecer segurança.

Os militares eram como nós, voluntários à força! Os civis iam voluntariamente, porque era zona de guerra e “dava” mais dinheiro. Além disso convinham à tropa, pois eram grandes conhecedores da zona!

Finalmente terminou o serviço de descarga. Embora fosse já meio da tarde, o Comandante do Pelotão deu ordem de regresso. Passaríamos mais uma noite em Nambuangongo. Só na madrugada seguinte seguiríamos para Luanda.

Assim foi, e no princípio da tarde chegámos ao Grafanil!

Finalmente! Não porque tivéssemos medo, mas a responsabilidade pesava-nos muito, como pesava aos militares aquartelados pelos locais onde passávamos, patrulhando os caminhos onde havia mais possibilidades de o IN nos montar uma emboscada.