Retalhos das Memórias de um ex-Combatente


Primeira emboscada

A primeira emboscada nocturna calhou ao nosso pelotão. Tinha de ser! Não éramos melhores, nem piores, do que os outros pelotões. Mas éramos sempre os primeiros a alinhar, vá-se lá saber porquê! Linhas que a sorte tece…

Combinámos com o Alferes o local onde iríamos fazer a emboscada. Havia, a caminho de Cuimba, uma sanzala abandonada com algumas casas de adobes de barro, meio arruinadas. Seria aí a nossa primeira emboscada nocturna. Cada Secção ocuparia uma casa: a primeira Secção, a primeira casa; a segunda, a casa do meio; e a terceira, a última casa, isto no sentido Pangala/Cuimba. Assim fizemos. Abandonámos as viaturas antes da sanzala e fizemos o resto do percurso a pé. Chegámos já com a noite a cobrir-nos e instalámo-nos. Cada secção era constituída por dez homens. Ocupámos as janelas e a porta única que havia. O silêncio era total. De repente, sinto uma revolução nos intestinos. O sistema nervoso tinha-me traído. “E agora?” – pensei – “Valha-me Deus. Tenho de sair lá para fora e evacuar”. E não podia demorar muito. Comuniquei ao Cabo Pombal o que se passava e pedi-lhe que ficasse de arma apontada junto à porta. Ao menor ruído deveria disparar!

Deixei a minha arma junto dele e sai silenciosamente, devagar. Logo que cheguei lá fora arreei as calças e sem me importar com o ruído que poderia fazer, aquela aguada saiu sob pressão. Eu teria de ser rápido. Olho para trás. O meu traseiro parecia tão branco! Se os “gajos” estivessem por perto não deixariam de o notar. Mais um esguicho. Fiquei vazio. Apanho um punhado de capim, limpo-me à pressa, subo as calças e meto-me outra vez entre paredes.

A noite passou-se sem qualquer outro percalço. Finalmente amanheceu. Ouvimos ruído de viaturas vindo do lado do nosso acampamento. Vinham buscar-nos. Enquanto tomávamos o café, as perguntas sucederam-se:

– Como era o ambiente na noite? Que ruídos se ouviam mais?

Resolvi aliviar o ambiente, e contei o que me tinha acontecido na emboscada. Foi uma risada. O Bica, um açoriano sempre bem-disposto, disparou logo:

– Porá, até te cagaste com o medo!

E terá sido, pensei. Com o medo, o sistema nervoso não se aguentou e disparou para baixo.

Aquele ajuntamento à volta da mesa foi motivado pela curiosidade e pela necessidade de saberem notícias. Terminado o café, cada um foi para os serviços que lhes estavam destinados.

– Ai, ai, Costa Pereira – disse eu – o que agora sabia bem era uma boa chuveirada!

– Tu estás é a precisar de médico! – Retorquiu.

– Uma boa chuveirada no sítio onde nos encontramos?! E também não queres o cu lavado com água de malvas?

Já que os luxos aqui eram outros, lavei a cara, as orelhas e o pescoço numa bacia de água, e senti-me aliviado.

O chuveiro

Uma chuveirada, continuei a pensar! Nisto passou por mim o Sargento Mecânico Lino, e atirei-lhe à queima-roupa:

– Ó Lino, tu que és habilidoso é que podias arranjar uma casa de banho com chuveiro para a malta tomar banho!

Olhou para mim, com ar amargurado, e disse:

– A casa de banho com chuveiro arranja-se. E a água?

– Pois é! A água tem que ser trazida da fonte nos barris pelo pelotão que estiver de serviço.

– Vou pensar nisso – respondeu o Lino.

Ao jantar o Lino relatou a conversa que tinha tido comigo. Todos concordaram. Então ele explicou-nos a sua ideia:

– Num dos cantos onde está a ser feita a nossa caserna – ele foi o arquitecto do nosso acampamento – faz-se mais uma parede e, como não há porta, põe-se um oleado a proteger de vistas menos decorosas quem estiver a tomar banho.

Assim foi feito. Quatro estacas fora da caserna à altura do telhado e na armação que as segurava foram postos quatro grandes bidões, daqueles onde vinha o gasóleo para as viaturas. Depois de bem lavados, foram ligados uns aos outros e o último ligado ao chuveiro. Serviam na perfeição. O chuveiro era pequeno, para economizar água. Até havia água quente, por vezes quente de mais! O sol encarregava-se de a aquecer.