ALGURES
POR Aí
Ao entrar para o primeiro ano da Faculdade de Direito,
despedia-me do meu antigo colégio onde fizera os últimos anos
do Liceu. O director, conhecendo as dificuldades financeiras
que os meus pais, e, por consequência, eu tinha na altura,
resolveu convidar-me para desempenhar no colégio a função de
prefeito. Ele conhecia as minhas capacidades para exercer o
cargo e sabia que este trabalho em nada iria prejudicar as
minhas aulas, podendo assim ganhar uns cobres, o que me
permitiria, com o dinheiro que ali recebia, fazer face a
algumas das muitas despesas, que iria ter de enfrentar
durante o ano.
O colégio era apenas masculino; tinha rapazes dos dez aos
dezoito anos; eu era só um pouco mais velho que alguns deles,
dos quais tinha sido colega. Teria de fazer um esforço
acrescido para poder exercer a autoridade que se impunha
perante estes, de modo a que a disciplina fosse assegurada sem
grandes ondas.
É por demais conhecida a irreverência que os jovens destas
idades ousam quando pretendem sobressair.
As coisas
correram bem até um certo dia, em que um grupo resolveu, penso
eu, pôr à prova a minha capacidade para gerir conflitos e
descobrir os delatores.
Os alunos
tinham por hábito conversar nos corredores, nos intervalos das
aulas, ou enquanto não tocava para qualquer actividade;
toque, no fim do qual, todos deveriam dirigir-se de imediato
para a sala indicada. Nesse dia, porém, embora já tivesse
tocado há uns minutos para o estudo, quando eu me aproximava
da respectiva sala, verifiquei que, de um dos lados do
corredor, se encontrava um magote de rapazes do quinto ano,
entre os quais, alguns que se distinguiam pelo seu mau
comportamento. Para não ter de os enfrentar, e repreender de
imediato, desviei-me por outra ala que me levava directamente
à sala em questão. Foi só ao chegar próximo da porta, que me
apercebi da razão pela qual eles se encontravam no corredor,
parados para além da hora. Os malandros ocupavam acintosamente
o corredor, para me fazerem desviar, passando pelo outro lado.
Ali um pouco antes da porta de acesso à sala, estava
espalhada pelo chão uma porção razoável de pedaços de papel,
coisa muito pouco habitual. Baixei-me para apanhar o primeiro,
e logo vi que era na realidade uma provocação. Um a um,
recolhi todos os pedaços, e pude constatar que todos eles
tinham desenhado partes podengas do homem: pénis e testículos.
Escondi os papéis dentro do bolso do casaco, e com os meus
botões ia pensando qual deveria ser a minha reacção perante
toda aquela tropa, que, tendo entrado de imediato para a sala,
já me esperavam sentados nos seus respectivos lugares, em
silêncio, como se nada de anormal se houvesse passado.
Sentei-me também na minha cadeira por de trás da secretária,
que se encontrava sobre um estrado, e permaneci calado, como
se nada tivesse sucedido, fingindo que tudo estava nos
conformes. De quando em vez, descobria alguns deles
perscrutando-me à socapa, a ver se da minha parte havia alguma
reacção, enquanto eu, impávido e sereno, continuava a maquinar
em como dar a volta ao texto.
Sabendo que o João Pedro era muitas vezes o pioneiro na
asneira, resolvi, ao fim de ter meditado seriamente no
assunto, deitar mão de uma artimanha.
Peguei num dos papelitos, e no canto, com uma letra
escangalhada escrevi: João Pedro.
Uns momentos antes da hora do intervalo, pedi a atenção de
todos os presentes, e comuniquei-lhes:
– Pensam que eu não sei quem foi que fez a malandrice de há
pouco? Estão enganados e o atrevidinho vai pagar caro a
esperteza.
Todos me olharam estupefactos.
Eu, após uma breve e estudada pausa, continuei, dirigindo-me
ao João Pedro:
–
Como é costume, João Pedro,
resolveste fazer mais uma das
tuas! És
tão pateta, porém, que escreveste o teu nome num dos cantos de
um dos desenhos, não sei se o fizeste por palermice ou se foi
de propósito, para me afrontares. Seja como for, vais ter de
ajustar contas com o senhor director, e podes ficar ciente de
que não te vais ficar a rir. (Eles tinham por hábito não se
acusarem uns aos outros, pelo que era sempre difícil descobrir
o culpado, em qualquer circunstância).
Na minha estratégia estava já prevista essa reacção, de
silêncio e de cumplicidade. O rapaz, ao sentir-se
injustiçado, e pensando que algum dos colegas o havia traído,
escrevendo o nome dele no papel, reagiu conforme eu tinha
previsto. Vendo-se encurralado, e acusado injustamente,
levantou-se furioso, e quase gaguejando, esclareceu:
–
Pois fique a saber que não fui
eu, mas uma vez que alguém
me quis
tramar, eu sou forçado a dizer-lhe quem o fez. E,
enraivecido, mencionou todos os culpados: Fulano, sicrano e
beltrano.
A armadilha tinha sortido efeito, o desordeiro mor caíra na
esparrela, mas eu não poderia descansar, porque da próxima
vez, esta estratégia já não funcionaria, pois a memória dos
rapazes era excelente. |