Histórias de Bolso das Gentes de Aveiro - 2006/2007


O Prefeito

ALGURES POR Aí

Ao entrar para o primeiro ano da Faculdade de Direito, despe­dia-me do meu antigo colégio onde fizera os últimos anos do Liceu. O director, conhecendo as dificuldades financeiras que os meus pais, e, por consequência, eu tinha na altura, resolveu convidar-me para desempenhar no colégio a função de prefeito. Ele conhecia as minhas capacidades para exercer o cargo e sabia que este trabalho em nada iria prejudicar as minhas aulas, podendo assim ganhar uns cobres, o que me permitiria, com o dinheiro que ali recebia, fazer face a al­gumas das muitas despesas, que iria ter de enfrentar durante o ano.

O colégio era apenas masculino; tinha rapazes dos dez aos dezoito anos; eu era só um pouco mais velho que alguns deles, dos quais tinha sido colega. Teria de fazer um esforço acrescido para poder exercer a autoridade que se impunha perante estes, de modo a que a disciplina fosse assegurada sem grandes ondas.

É por demais conhecida a irreverência que os jovens destas idades ousam quando pretendem sobressair.

As coisas correram bem até um certo dia, em que um grupo resolveu, penso eu, pôr à prova a minha capacidade para gerir con­flitos e descobrir os delatores.

Os alunos tinham por hábito conversar nos corredores, nos intervalos das aulas, ou enquanto não tocava para qualquer activi­dade; toque, no fim do qual, todos deveriam dirigir-se de imediato para a sala indicada. Nesse dia, porém, embora já tivesse tocado há uns minutos para o estudo, quando eu me aproximava da respectiva sala, verifiquei que, de um dos lados do corredor, se encontrava um magote de rapazes do quinto ano, entre os quais, alguns que se distinguiam pelo seu mau comportamento. Para não ter de os en­frentar, e repreender de imediato, desviei-me por outra ala que me levava directamente à sala em questão. Foi só ao chegar próximo da porta, que me apercebi da razão pela qual eles se encontravam no corredor, parados para além da hora. Os malandros ocupavam acintosamente o corredor, para me fazerem desviar, passando pelo outro lado. Ali um pouco antes da porta de acesso à sala, estava es­palhada pelo chão uma porção razoável de pedaços de papel, coisa muito pouco habitual. Baixei-me para apanhar o primeiro, e logo vi que era na realidade uma provocação. Um a um, recolhi todos os pedaços, e pude constatar que todos eles tinham desenhado partes podengas do homem: pénis e testículos. Escondi os papéis dentro do bolso do casaco, e com os meus botões ia pensando qual deveria ser a minha reacção perante toda aquela tropa, que, tendo entrado de imediato para a sala, já me esperavam sentados nos seus respecti­vos lugares, em silêncio, como se nada de anormal se houvesse pas­sado. Sentei-me também na minha cadeira por de trás da secretária, que se encontrava sobre um estrado, e permaneci calado, como se nada tivesse sucedido, fingindo que tudo estava nos conformes. De quando em vez, descobria alguns deles perscrutando-me à socapa, a ver se da minha parte havia alguma reacção, enquanto eu, impávido e sereno, continuava a maquinar em como dar a volta ao texto.

Sabendo que o João Pedro era muitas vezes o pioneiro na as­neira, resolvi, ao fim de ter meditado seriamente no assunto, deitar mão de uma artimanha.

Peguei num dos papelitos, e no canto, com uma letra escanga­lhada escrevi: João Pedro.

Uns momentos antes da hora do intervalo, pedi a atenção de todos os presentes, e comuniquei-lhes:

– Pensam que eu não sei quem foi que fez a malandrice de há pouco? Estão enganados e o atrevidinho vai pagar caro a esper­teza.

Todos me olharam estupefactos.

Eu, após uma breve e estudada pausa, continuei, dirigindo-me ao João Pedro:

Como é costume, João Pedro, resolveste fazer mais uma das tuas! És tão pateta, porém, que escreveste o teu nome num dos cantos de um dos desenhos, não sei se o fizeste por palermice ou se foi de propósito, para me afrontares. Seja como for, vais ter de ajustar contas com o senhor director, e podes ficar ciente de que não te vais ficar a rir. (Eles tinham por hábito não se acusarem uns aos outros, pelo que era sempre difícil descobrir o culpado, em qualquer circunstância).

Na minha estratégia estava já prevista essa reacção, de silên­cio e de cumplicidade. O rapaz, ao sentir-se injustiçado, e pensando que algum dos colegas o havia traído, escrevendo o nome dele no papel, reagiu conforme eu tinha previsto. Vendo-se encurralado, e acusado injustamente, levantou-se furioso, e quase gaguejando, es­clareceu:

Pois fique a saber que não fui eu, mas uma vez que alguém me quis tramar, eu sou forçado a dizer-lhe quem o fez. E, enraiveci­do, mencionou todos os culpados: Fulano, sicrano e beltrano.

A armadilha tinha sortido efeito, o desordeiro mor caíra na esparrela, mas eu não poderia descansar, porque da próxima vez, esta estratégia já não funcionaria, pois a memória dos rapazes era excelente.


      Página anterior   Índice geral   Página seguinte