FESTA DE SANTO AMARO - ROMARIA DE INVERNO


 
 

Passado o Natal, bem no centro do Inverno, mais propriamente, a quinze de Janeiro, festeja-se, desde tempos imemoriais, Santo Amaro de Malhapão. – “A Festa dos Figos, lhe chamam alguns”. É que em tempos idos, quando a mesa não era tão farta como hoje, os figos secos eram um manjar dos deuses e não se comiam todos os dias. Aproveitavam os antigos para os comprar na festa de Santo Amaro em Malhapão onde os encontravam em abundância e de boa qualidade.


Porém o que atraía e atrai tão grande número de peregrinos, naquele dia, à capela de Santo Amaro é sem dúvida a fama dos seus milagres e da ajuda que Ele dispensa a quem a Ele recorre com suas orações, pedindo-Lhe saúde principalmente saúde para suas pernas. Até se costuma dizer a quem se encontra em aflições para escapar de qualquer embaraço: - “Pede pernas a Santo Amaro.”

 

Se por lá aparecermos no próximo dia quinze de Janeiro encontraremos, como sempre acontece nesse dia, a igreja (sim porque hoje Santo Amaro já não tem a sua antiga capela mas uma grande igreja que foi construída em seu louvor) repleta de fiéis assistindo à missa para de seguida tomarem parte na procissão com a finalidade de pagarem as promessas feitas ao Santo pelas graças e bênçãos dele recebidas. Logo atrás do seu andor seguirá pelas ruas do lugar compacta multidão levando nas mãos enormes velas, pernas, braços, cabeças, corpos de crianças, tudo isto feito em cera, que depois depositam a seus pés, com gratidão, após terminar e recolher o cortejo.

 

Ainda não há muitos anos viam-se muitos homens com os ombros carregados de armas, alguns fazendo o percurso às arrecuas agradecendo o facto de terem sido salvos da guerra, bem como mulheres que faziam todo o trajecto da procissão de joelhos, algumas levando os filhos ao colo.

 

Todas estas e muitas outras manifestações de fé testemunham a popularidade e fama de Santo Amaro e do modo como as pessoas nele confiam quando a doença ou a desgraça lhes bate à porta.

 

Para além da fé era também a grandiosidade dos festejos que em tempos atraía tanta gente àquela romaria apesar da escassez dos transportes. Vinham pessoas a pé de todas as redondezas. As mulheres que traziam os seus farnéis à cabeça, em bonitos cestos de verga tapados com tolhas brancas, vestiam blusas de flanela e saias compridas de lã grosseira que durante o caminho protegiam com uma saia de chita a qual despiam e levavam no braço ao entrar no arraial; cobriam a cabeça com lenços floridos ou de merino preto e, pelas costas usavam um xaile de lã. Os homens que ao ombro transportavam, enfiado numa cana, o garrafão do vinho da adega lá de casa, porque não havia dinheiro para pagar vinho na taberna, apresentavam-se calçados de botas cardadas, vestiam calças e casacos de burel e como agasalho, samarras ou gabões.

 

Chegados ao arraial a sua primeira preocupação era arranjar um espaço onde pudessem instalar-se para abrirem a manta, estenderem a tolha e aí poderem almoçar no fim da procissão.

 

Entravam pelos aidos, muitas vezes sem licença dos donos e instalavam-se, dentro dos cabanais ou ao abrigo duma meda de palha ou de agulhas, de preferência voltados para o sol, e se havia laranjas por ali raramente escapavam à cobiça dos menos escrupulosos. À tarde compravam uns figuitos para a merenda ou para levar aos familiares que não tinham vindo à festa. Quem ficava para a noitada, poderia beber, ali mesmo no arraial, uma água-ardente, um anis, ou aquecer-se com uma caneca de café que as doceiras ferviam em grandes chaleiras donde emanava um cheiro que era um regalo. Ao lado das bancas destas mulheres, iluminadas com gasómetros de carbureto, estava sempre aceso um grande fogareiro onde quem passava podia aquecer as mãos geladas pelo duro frio do Inverno.

 

Em determinada época foram populares as regueifas, vindas de Santa Maria da Feira, mas volvidos alguns anos as regueifeiras deixaram de aparecer.

 

Nas vésperas do dia quinze começavam a chegar à aldeia rebanhos de ovelhas e carneiros e, ali no arraial, debaixo de uma árvore, dava-se início à matança. As pessoas acorriam para poderem escolher a rês que mais lhes agradava, e compravam, consoante as suas possibilidades, mais ou menos quilos de carneiro para assar no forno. A pequenada gostava de espreitar os matadores a esfolarem as rezes e de se divertir a jogar à bola com as bexigas dos animais que enchiam de ar, soprando por uma cana.

 

Por esta altura chegavam também os armadores que montavam os arcos e os coretos, depois os fogueteiros, os músicos e mais tarde bandos de ciganos que durante os festejos vendiam cestos de verga, flores e moinhos de papel. No próprio dia da festa, bem de madrugada, apareciam  doceiras, vendedores dos figos, as padeiras da Palhaça e de Nariz, com as suas padas de pão-trigo, e os retratistas que tiravam fotografias à la minuta. Figura que durante muitos anos nunca faltou às festas de Santo Amaro foi um pobre de pedir muito conhecido por estas bandas, chamado Santamarro. Todos os anos, fazia cuidadosamente um balão de papel de seda que durante a noitada subia aos céus perante o espanto de todos e uma alegria enorme da criançada.

 

O fogo lançado durante a procissão bem como as bandas de música, que tarde fora e noite dentro animavam com seus despiques o arraial, eram as grandes atracções dos festejos.

 

Há que salientar que ninguém trabalhava nos dois dias da festa, pois como a maioria das pessoas do lugar se dedicava à lavoura podiam fazer uma pausa no serviço por respeito a Santo Amaro. Uma estranha curiosidade era o lavar da imagem do santo que tinha lugar todos os anos e deveria ser sempre feita com vinho pois, caso a lavassem com água, poderiam contar com chuva e mau tempo durante os festejos.

 

No dia dezasseis, dia da oitava da festa, pelo início da tarde saía da capela, a tuna acompanhada dos juízes e mordomos para a entrega do ramo. Estes eram recebidos pelos novos juízes em suas casas onde serviam aos visitantes vinho fino e bolos sortidos. Ao regressarem à capela já vinham à frente os novos juízes empunhando o ramo. Eram esperados pelo povo que com grande curiosidade ladeava o caminho junto à capela, ansioso por saber quem havia sido escolhido para no ano seguinte organizar a festa. Entretanto a tuna tocava, os foguetes estralejavam e o sino repicava alegremente.

 

Nascida e criada no largo junto da capela de Santo Amaro, à sombra do centenário sobreiro, eu tinha por entretém, ao Domingo à noite, dar uma voltinha à roda da capela. Como ficava feliz quando meu Pai me autorizava a dar esse curto passeio! Durante toda a minha meninice, com muitas outras crianças, tomei sempre parte na procissão vestida de anjinho.

 

Já mais crescidita, muitas vezes ajudei a enfeitar e a cuidar da limpeza do templo e, como todas as pessoas, sabia que ali estavam enterrados muitos dos nossos antepassados. A capela foi demolida sem preservarem essas sepulturas, o que foi um grande erro.

 

Hoje os costumes são um pouco diferentes.

 

Carrosséis e pistas de carros eléctricos invadem os terrenos próximos, filas de tendas de vendedores quase transformam o arraial numa feira. No dia dezasseis o lugar é invadido por dezenas de autocarros, repletos de pessoal que de manhã se deslocam a Angeja, aos Santos Mártires, lá para os lados de Águeda, e vêm passar a tarde a Malhapão, dançando alegremente ao som da música popular no largo agora empedrado e urbanizado.

 

Os figos ainda por lá aparecem mas já não são tão procurados.

 

Malhapão, 16 de Novembro de 2004

Aida Viegas


      Página anterior   Índice geral   Página seguinte